Opinião

Direito, Estado e religião fazem uma mistura antidemocrática?

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28 de maio de 2020, 20h07

A pandemia causada pelo novo coronavírus, que assolou nosso planeta, tem gerado ataques à saúde mental das pessoas e dos governantes. Pululam notícias de escândalos envolvendo desvios de recursos públicos, polarização política da doença, a abertura das veias de um federalismo não integrativo e caótico [1] e a tradicional falta de diálogo na resolução dos conflitos que permeia o Brasil há tempos, jogando tudo nas mãos do Poder Judiciário.

Tal fato fica explicitado na notícia dada pela ConJur [2] com o título "Prefeito decreta 21 dias de orações e um de jejum para combater Covid-19", dizendo que "Na justificativa, Soares diz que Ladário é uma 'cidade cristã' e que 'Deus ouve a oração de um povo quebrantado'. No artigo 1º, o decreto prevê orações diárias nos lares, mas sem aglomeração de pessoas".

Das duas uma, ou o ilustre prefeito não sabe o que é Estado laico ou não tem conhecimento do que seja o direito fundamental à liberdade de consciência e de crença, previsto no artigo 5º, VI, da Constituição Federal de 1988, assegurando ainda o livre exercício de cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas liturgias.

Todavia, o caso é emblemático, e nos traz uma importante reflexão em tempos angustiantes, já que no Brasil a arte e a atividade de dizer o óbvio tem virado exercício corriqueiro.

Parece que estamos regredindo em direitos duramente construídos ao longo de séculos, que vivem ameaçados e permeados pelo extremismo subjacente, muitas vezes camuflado ora pela mistura entre política e religião, ora pela mistura entre Direito, Estado e religião.

A confusão conceitual e metodológica faz o eleitor escolher seus candidatos não pela sua capacidade gerencial ou por seus projetos políticos, mas simplesmente por sua opção religiosa.

Com a devida vênia, por mais religioso que eu seja, o que isso me credencia para ser um bom gestor público?

A resposta é óbvia e cristalina. No dito popular, "não se confunde alhos com bugalhos".

No Brasil há uma generalizada confusão entre capacidade gerencial, projeto governamental e aptidão para desenvolvimento de políticas públicas com opção religiosa, mas não se percebe que a imposição da minha consciência religiosa por meio do Direito ou do Estado é antidemocrática e inconstitucional.

Apesar de Direito e religião serem instrumentos de controle social, a coercitividade e a generalidade do primeiro o impedem de ser considerado expressão da vontade divina. Ora, a alteridade essencial ao Direito e à sanção jurídica em nada se confunde com a individualidade religiosa e a sanção espiritual, bem como com o seu misticismo calcado na fé.

Direito exige prova, exige respeito ao diferente, exige liberdade de expressão, exige a não imposição de dogmas ou formas de pensar e mais, exige segurança jurídica, que é quebrantada pela imersão da religião no Direito, ainda mais em um país como o Brasil, que está submetido a um Estado democrático de Direito.

Os conceitos de democracia são muitos: ora procedimentais, como defendem Joseph Schumpeter, Scott Mainwaring, Daniel Brinks, Aníbal Pérez Liñan, Dahl; ora substanciais, como defende Dworkin.

Todavia, independentemente do conceito de democracia que se adote, ao trabalhar os desacordos razoáveis como elemento básico em qualquer democracia e a fraternidade conflitual como característica fundamental do nosso sistema constitucional, ainda que de maneira implícita, não restam dúvidas de que qualquer imposição religiosa pelo Estado é flagrantemente antidemocrática.

Não podemos olvidar que o estado moderno só se firmou a partir da secularização. Estado e religião separados. Tanto é que o criador da teoria garantista do Direito, Luigi Ferrajoli, tem no princípio da secularização um dos seus pilares fundamentais.

Nesse diapasão, o Direito e o Estado caminham a serviço da religião não no seu aspecto substancial ou de conteúdo, mas para dentro da adequação, necessidade e proporcionalidade estrito senso garantirem a concretude do já mencionado direito fundamental à liberdade de consciência e de crença.

Ora, o respeito à diversidade religiosa é ínsito a qualquer democracia e o esquecimento de que o Estado brasileiro é laico gera o odioso retorno a períodos sombrios de punições por pensamentos, ideias e criminalização por estilo de vida ou por concepção religiosa.

Fiquemos atentos e repudiemos tais "decretos" e tais "religiosidades político-estatais", ainda que baseados em "boas intenções", pois não existem "cidade-cristã" nem religiosidade que deem capacidade política ou gerencial para ser um bom governante.

Na verdade, o que temos hoje, parafraseando o decreto citado no início deste texto, é "jejum" conceitual e de desrespeito aos direitos fundamentais, que infelizmente dura muito mais que um dia como sugere o prefeito.

Lembremo-nos do alerta de Cazuza em sua canção "O tempo não para", pois não devemos encher nossas piscinas de ratos, com ideias que não correspondem aos fatos, e repudiemos o futuro que quer repetir o passado, já que o que temos visto é apenas um museu de grandes novidades.

O tempo, assim como a democracia, não para!!

 


[1] Já tivemos a oportunidade de tratar do tema no artigo "Coronavírus: o federalismo ainda respira?" Disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/coronavirus-o-federalismo-ainda-respira/. Acesso em 18/5/2020.

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