Opinião

Decisão do Supremo na ADPF 548 merece ser recebida com euforia

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27 de maio de 2020, 9h07

O Supremo Tribunal Federal divulgou em seu sítio, no recente dia 15 de maio, importantíssima decisão proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 548, relatada pela ministra Cármen Lúcia, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, declarando, em conclusão de julgamento, a nulidade das decisões proferidas pela Justiça Eleitoral em cinco estados (Minas Gerais, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) que impuseram a interrupção de manifestações públicas de apreço ou reprovação a candidatos em ambiente virtual ou físico de universidades às vésperas do segundo turno da eleição de 2018. As decisões determinaram busca e apreensão de materiais de campanha eleitoral em universidades e associações de docentes e proibição de aulas com temática eleitoral e de reuniões e assembleias de natureza política.

No mesmo julgamento, o tribunal declarou inconstitucional a interpretação dos artigos 24 e 37 da Lei das Eleições (Lei 9.504/1997) para justificar atos judiciais ou administrativos que admitam o ingresso de agentes públicos em universidades, o recolhimento de documentos, a interrupção de aulas, debates ou manifestações e a coleta irregular de depoimentos pela manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento nos ambientes universitários ou em equipamentos sob a administração de universidades [1].

A ministra Cármen Lúcia havia concedido liminar na ação para assegurar a livre manifestação do pensamento e das ideias nas universidades, ratificada por unanimidade em sessão plenária no dia 31 de outubro de 2018 [2].

Em seu voto, a ministra disse que as decisões judiciais arrostaram o princípio constitucional da autonomia universitária e são contrárias à dignidade da pessoa, à autonomia dos espaços de ensinar e apreender, ao espaço social e político e ao princípio democrático. Em suas palavras, "sendo práticas determinadas por agentes estatais (juízes ou policiais) são mais inaceitáveis. Pensamento único é para ditadores. Verdade absoluta é para tiranos. A democracia é plural em sua essência. E é esse princípio que assegura a igualdade de direitos na diversidade dos indivíduos" [3].

A decisão vem em ótima hora, na medida em que se avizinham as eleições municipais, agendadas para outubro, ainda mantidas, apesar da pandemia provocada pelo coronavírus.

Os prédios das universidades públicas são bens públicos (de uso especial, nos termos do artigo 99, II, do Código Civil) e os das universidades particulares são bens de uso comum, para fins eleitorais, nos termos do § 4º do artigo 37 da Lei 9.504/97, sendo vedada a propaganda eleitoral em tais bens.

Segundo o caput do artigo 37, "nos bens cujo uso dependa de cessão ou permissão do poder público, ou que a ele pertençam, e nos bens de uso comum, inclusive postes de iluminação pública, sinalização de tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas de ônibus e outros equipamentos urbanos, é vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta e exposição de placas, estandartes, faixas, cavaletes, bonecos e assemelhados" (grifo do aurtor).

A conceituação de bens de uso comum, para fins eleitorais, conforme o já citado § 4º, são os assim definidos pelo Código Civil e também aqueles a que a população em geral tem acesso, tais como cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios, estádios, ainda que de propriedade privada.

A proibição de veiculação da propaganda eleitoral em bens públicos foi bem recebida por causa da poluição visual que provocava e dos altos custos financeiros para partidos, coligações e candidatos. Da mesma forma, a vedação da propaganda eleitoral em bens particulares, mas de uso comum, a exemplo de cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios e estádios, foi bem aceita, na medida em que ajuda a equilibrar a disputa entre os candidatos.

Então, por que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal merece efusivos elogios?

A resposta deve partir do princípio de que a Constituição, apesar de prever a obrigatoriedade do voto para os maiores de 18 e menores de 70 anos (artigo 14), não obriga a escolha de um candidato. A obrigatoriedade é de comparecer para votar, sendo permitido ao eleitor anular o voto ou votar em branco. Segundo dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os votos nulos somaram 7.206.205 (6,14%) no primeiro turno das eleições de 2018, sendo que no segundo turno o número aumentou para 8.608.105 (7,43%). Já os votos brancos somaram 2.486.593 no segundo turno e 3.106.936 no primeiro [4].

É imprescindível respeitar a vontade dos eleitores que decidiram, por qualquer razão, não participar efetivamente da escolha dos agentes políticos e vimos acima que o número é expressivo, na casa dos milhões. Como consequência disso, parece razoável restringir e até proibir como o fez a nossa legislação a propaganda eleitoral em espaços que pertencem a todos (bens públicos) ou mesmo em espaços privados de frequentação livre, pois tais espaços poderão ser ocupados tanto por pessoas engajadas na escolha dos agentes políticos quanto por pessoas desinteressadas pelo processo político, e a legislação eleitoral cuidou de garantir a divulgação da propaganda de modo eficaz de diversas outras formas. A despeito de não haver incompatibilidade, tais espaços certamente não foram construídos para servir ao debate de ideias.

A situação das universidades é completamente diferente, pois elas são espaços vocacionados ao debate, ao confronto de ideias, à manifestação do pensamento, à pluralidade e à resistência. Consequentemente, mostram-se ilegítimas as decisões e os atos do poder público que, a pretexto do exercício do poder de polícia, proíbem as manifestações de apreço ou desapreço a candidatos a cargos políticos em suas dependências.

A Constituição da República, no artigo 205, estabelece que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. O artigo 206, ao enunciar vários princípios do ensino, ressalta a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento (inciso II); o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (inciso III); e a gestão democrática do ensino público (inciso VI). Por fim, especificamente em relação às universidades, o artigo 207 garante a autonomia didático-científica.

A ministra Rosa Weber, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, disse no julgamento da ADPF 548 que a Justiça Eleitoral não pode fechar os olhos para os direitos, as liberdades e os princípios fundamentais assegurados na Constituição, "em particular a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, o pluralismo de ideias e a autonomia didático-científica e administrativa das universidades" [5].

O ministro Roberto Barroso colocou muito bem a questão ao dizer que as decisões e atos do poder público confundiram liberdade de expressão com propaganda eleitoral. Em suas palavras, "pensamento único é para ditadores e a verdade absoluta é própria da tirania" [6].

Também rememoro as palavras do ministro Alexandre de Moraes no julgamento da ADPF 457/GO, quando assentou que o direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões e interpretações supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também àquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias, ressaltando que mesmo as declarações errôneas estão sob a guarda dessa garantia constitucional [7].

Cabe recordar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a ADI 4451, declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da mesma Lei das Eleições que impediam emissoras de rádio e televisão de veicular programas de humor envolvendo candidatos, partidos e coligações nos três meses anteriores ao pleito, como forma de evitar que sejam ridicularizados ou satirizados.

Pluralismo é palavra que muito bem adjetiva o Brasil desde a chegada do europeu. Sem me preocupar com o emprego de expressão já acostumada, "há muitos Brasis dentro do Brasil", tamanha a diversidade de seu povo, que teve influências diferentes no início da formação do país e ainda precisou se adaptar a climas e terrenos nada uniformes.

Se não é fácil apreender o conteúdo jurídico da palavra democracia, não há pessoa que não seja tomada pelos sentimentos de tranquilidade e segurança quando a pronuncia.

A manifestação do pensamento empodera e permite que a pessoa desenvolva sua personalidade; proibi-la é impedir o exercício de uma capacidade que nos torna humanos. Tão importante é esse direito que nos governos autoritários a liberdade de expressão é o primeiro inimigo identificado e, por isso mesmo, eliminado.

A decisão merece ser recebida com bastante euforia, na medida em que merecidamente homenageia e reforça a importância do princípio democrático no país. As mensagens são claras: a) a relação entre democracia, liberdade de manifestação do pensamento e pluralidade é total; b) violar a liberdade de manifestação do pensamento é medida tendente a matar a própria democracia; c) o exercício do poder de polícia encontra limites claros, expressos e inolvidáveis nos direitos e garantias fundamentais, tal como a liberdade de manifestação do pensamento, sendo ilegítima e inconstitucional qualquer tipo de censura prévia; e d) a democracia, para muito além do respeito à maioria, exige deferência incondicional aos direitos e garantias fundamentais, mormente pelo poder público. Uma democracia que se quer efetiva não se contenta com a garantia de poder escolher representantes periodicamente, mas antes e, principalmente, preocupa-se em assegurar o acesso à informação por variadas fontes e a possibilidade de participar do debate, expondo livremente seu pensamento (liberdade de expressão em sentido positivo), sem prejuízo da responsabilização posterior caso o direito seja exercido de forma abusiva.

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