Direito Civil Atual

Como voltar à normalidade contratual no Direito do Trabalho?

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27 de maio de 2020, 12h09

Esse artigo busca discutir os limites daquilo que vem sendo denominado Direito do Trabalho Emergencial. Não exatamente um ramo novo dentro do Direito ou do Direito do Trabalho, mas mais exatamente um fenômeno normativo temporal, consistente na edição de profusa legislação transitória, necessária e suficiente a adequação do ordenamento jurídico, sobretudo no que concerne às relações contratuais de trabalho, enquanto perduram e são relevantes as medidas de isolamento social e paralisação de atividades econômicas.

O Direito do Trabalho, que regula as relações de trabalho, principalmente a partir do contrato de trabalho destinado às relações de emprego (arts. 3º e 443, da CLT), se expressa a partir de institutos de nítida natureza jurídica contratual e sinalagmática – ainda que os contratos de trabalho sejam fortemente regulados pelo Estado e possuam um inegável viés protetivo aos trabalhadores (conforme art. 7º, caput, da Constituição Federal).

A legislação trabalhista emergencial, consubstanciada especialmente nas Medidas Provisórias 927 e 936, permitiu a flexibilização de diversos importantes direitos trabalhistas a partir da alteração contratual ou de modificações na execução dos contratos de trabalho em andamento: redução de jornada com redução proporcional de salários, concessão de férias individuais ou coletivas, suspensões de contrato, determinação de teletrabalho para quem até então desempenhava trabalho presencial, banco de horas, dentre outras medidas.

Tais medidas devem perdurar até quando? Como ocorrerá o retorno à normalidade contratual no Direito do Trabalho?

Dentro do próprio ordenamento jurídico há várias balizas muito claras no sentido de que a legislação trabalhista emergencial deva ter apenas caráter transitório, devendo ser buscado o retorno à normalidade contratual trabalhista tão pronto cessada a situação econômica anormal decorrente das medidas de isolamento social.

Tomando-se por parâmetro o PL 1.179/2020, que cria o RJET – Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado, aplicável durante o período da pandemia do Coronavírus (Covid-19), constata-se que sua natureza e eficácia serão transitórias, sendo destinado tão somente a regular as questões contratuais durante o período excepcional:

Art. 1º o Esta Lei institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19).

Um pilar importante do Direito Privado, a cláusula rebus sic stantibus, revela-se insuficiente para a compreensão desse fenômeno do Direito do Trabalho Emergencial. Segundo definição de De Plácido e Silva:

Rebus sic stantibus. É a locução latina utilizada na terminologia jurídica para designar a cláusula contratual, que se julga inserta nas convenções, em virtude da qual o devedor é obrigado a cumprir o contrato, somente, quando subsistem as condições econômicas existentes quando fundado o ajuste.”

(Vocabulário Jurídico, 28ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1.151)

A cláusula rebus sic stantibus expressa a ideia de que o contrato se cumpre se forem conservadas as condições preexistentes quando de sua estipulação, isto é, desde que não tenham sofrido modificações essenciais.

Porém, esse raciocínio não pode ser aplicado indistintamente ao contrato de trabalho. Ainda que o contrato de trabalho, que é o instrumento jurídico da relação de emprego, possua inegável natureza contratual, sinalagmática, trata-se de um arranjo jurídico fortemente regulado pelo Estado, com o objetivo de equilibrar as assimetrias sócio-econômicas que caracterizam as partes que compõem a relação de emprego: empregador e empregado.

Atualmente, o conteúdo regulatório mínimo do contrato de trabalho encontra-se radicado na Constituição Federal (em particular o art. 7º), bem como em inúmeros Tratados de Direito Internacional de que o Brasil é signatário – especialmente as Convenções da OIT – Organização Internacional do Trabalho. A partir deste bloco de constitucionalidade e de convencionalidade espraia-se o modelo protetivo pela legislação ordinária, capitaneada pela CLT.

Para justificar o retorno à normalidade contratual trabalhista também é possível trazer a baila o princípio constitucional da vedação do retrocesso social, insculpido tanto na Constituição Federal de 1988 como em diversos Tratados de Direito Internacional de que o Brasil é signatário. Esse princípio traduz a ideia de que não se toleram reduções do nível dos direitos sociais existentes.

Neste enfoque, ainda que sejam momentaneamente alterados os contratos de trabalho, cessado o momento de excepcionalidade deve-se primar pela retomada das condições contratuais anteriores, tendo em vista a ideia de proteção à dignidade da pessoa inserida na relação de trabalho.

A proibição da alteração contratual lesiva é objeto do art. 468, da CLT:

Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

Embora esse dispositivo não tenha sido concebido para as situações de excepcionalidade que tem sido vividas, não se pode afirmar que não seja uma perspectiva protetiva relevante e que deve ser considerada no momento posterior à cessação das medidas destinada ao enfrentamento da pandemia.

A CLT também cuidou de tratar do tema da força maior e como esse fenômeno pode afetar os contratos de trabalho:

Art. 501 – Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.

§ 1º – A imprevidência do empregador exclui a razão de força maior.

§ 2º – À ocorrência do motivo de força maior que não afetar substancialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa não se aplicam as restrições desta Lei referentes ao disposto neste Capítulo.

O art. 1º, parágrafo único, da Medida Provisória 927/2020, considera, com fundamento no Decreto Legislativo 6/2020, que estamos vivenciando um período que configura força maior para a finalidade prevista na legislação trabalhista:

Art. 1º (…)

Parágrafo único. O disposto nesta Medida Provisória se aplica durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020, e, para fins trabalhistas, constitui hipótese de força maior, nos termos do disposto no art. 501 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.

Nas situações de força maior, em dispositivo legal cuja recepção pela Constituição Federal é contestada pela maior parte da doutrina (porque não exige negociação coletiva), a legislação trabalhista admite a possibilidade de redução de salários. Porém, tão logo cessados os efeitos decorrentes do motivo de força maior é assegurado o restabelecimento dos salários reduzidos:

Art. 503 – É lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região.

Parágrafo único – Cessados os efeitos decorrentes do motivo de força maior, é garantido o restabelecimento dos salários reduzidos.

Cogita-se que o retorno ao patamar salarial anterior à vigência das Medidas Provisórias 927 e 936 siga este mesmo raciocínio contido no art. 503, p. único, da CLT, que tem como respaldo normativo a perspectiva protetiva típica do Direito do Trabalho. Da mesma forma, almeja-se o retorno ao mesmo nível de proteção em relação às demais condições trabalhistas alteradas com fundamento na legislação trabalhista emergencial: jornada, modalidade de trabalho, etc.

Não se pode negar que o Direito do Trabalho possui uma relevante dependência de possibilidade que é condicionada ao ambiente econômico, sobretudo a cenários de prosperidade. Porém, essa conexão do Direito do Trabalho com a Economia não pode se traduzir em uma pura e simples captura dos direitos trabalhistas pelo campo econômico.

Até porque se espera que a atividade econômica seja retomada após o término desse período estranho. De outro lado, não se pode olvidar que o Governo Federal tem dado andamento a diversas políticas econômicas que correm paralelas às medidas de ordem trabalhista, no intento de propiciar a manutenção e retomada da circulação econômica: linha de crédito da Medida Provisória 944; algumas modalidades de moratória tributária (FGTS, na Medida Provisória 927 e contribuições previdenciárias, em outros atos); criação do auxílio emergencial (Lei 13.982/2020) e do benefício emergencial (Medida Provisória 936/2020).

Apesar da incerteza quanto ao cenário econômico futuro, procuramos demonstrar neste artigo que o Direito do Trabalho não poderá admitir, pura e simplesmente, opções normativas que sejam tendentes à precarização e à desproteção, devendo buscar o retorno à normalidade contratual trabalhista, sobretudo em um modelo que dê conta das finalidades constitucionais protetivas.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

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