Consultor Tributário

Não cumulatividade na incidência monofásica do PIS/Cofins

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

27 de maio de 2020, 8h18

Spacca
O princípio constitucional de não cumulatividade é uniforme quanto ao tratamento da plurifasia, ao exigir que seja compensado o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, tanto para o IPI (art. 153, § 3º, II) quanto para o ICMS (art. 155, § 2º, I). No que concerne à base de cálculo do PIS e da Cofins, o § 12, do art. 195, da Constituição determina a competência para instituir o regime de não cumulatividade conforme o setor de atividade econômica. Nada dispôs sobre o método.

Este dever de eliminação da “cumulatividade” do PIS e à Cofins define-se pela apuração das “receitas brutas” ou “faturamento”, mediante um sistema de “base-contra-base”, ao estipular os descontos (art. 3º, da Lei nº 10.637/02 e da Lei nº 10.833/03 e art. 15, da Lei nº 10.865/04), na forma de “créditos”, relativos aos elementos que ingressaram na sociedade empresária, como “insumos” e outros.1

A Constituição está a exigir a aplicação de um eficiente sistema de abatimentos, de deduções dos créditos apurados nas operações anteriores para compensação com as seguintes. Nestas, a alíquota (conhecida como “de entrada”), a ser usada na apuração dos descontos (i), deverá ser a mesma alíquota (chamada “de saída”) a ser empregada na apuração do débito tributário (ii), pela determinação da base de cálculo (PIS: 1,65%; Cofins: 7,6%), salvo a aplicação de eventuais regimes especiais, relativos à apuração das bases ou mesmo das alíquotas aplicáveis. Por isso, efetuar a devolução de tributos pagos nas etapas anteriores e que se agregaram ao preço dos bens ou serviços, mediante aproveitamento de créditos do regime não cumulativo, é dever que se impõe como garantia dos princípios de eficiência administrativa e da não cumulatividade.

O modelo de tributação das contribuições ao PIS e a Cofins assume a não cumulatividade como sua regra geral.2 Ao lado desta, tem-se o regime cumulativo e outros regimes especiais, como a substituição tributária ou mesmo o tratamento monofásico em determinadas cadeias, por concentração de alíquotas.

Importante destacar que não cumulatividade não é benefício fiscal, mas mecanismo técnico de garantia da desoneração da cadeia, pela tributação do valor agregado, mediante redução do tributo aplicável, mesmo quando sob a forma de monofasia, sem qualquer privilégio ou vocação extrafiscal.

O regime de tributação monofásica ou concentrada de recolhimento do PIS e da Cofins unifica em uma só alíquota o valor das contribuições que o legislador admite, por presunção absoluta, que seria uma média da arrecadação da cadeia plurifásica, com atribuição de alíquota-zero para as etapas seguintes.

O regime de concentração de alíquotas aplicável ao primeiro elo da cadeia de plurifasia foi o meio encontrado pelo legislador para garantir a cobrança dos tributos devidos por toda a cadeia econômica, com o propósito de garantir eficiência arrecadatória e menor impacto nos preços, além de evitar sonegações.

Dizer monofásico não equivale a afirmar que só há uma incidência na cadeia de circulação e produção das mercadorias. Aplicada a incidência monofásica, não se elimina a continuidade da cadeia plurifásica. Ao longo desta, aplicar-se-á, a cada etapa, uma “alíquota-zero” ou outro tratamento jurídico que afaste o ônus tributário, até chegar ao ato último da aquisição, que se pode dar como venda direta ao consumidor ou na forma de insumo.

Assim, a tributação monofásica, à semelhança da substituição tributária, propõe-se a garantir a arrecadação das contribuições ao PIS e à Cofins e evitar distorções econômicas eventualmente acarretadas pelo não recolhimento desses tributos, especialmente em cadeias muito pulverizadas, como é o caso dos setores de combustíveis, medicamentos, cosméticos, produtos de higiene, de produtos farmacêuticos, do setor de bebidas ou mesmo do setor automotivo.

Sem presumir a ocorrência de fatos geradores futuros, mediante a adoção de bases de incidência fictícias (a partir da determinação de Margens de Valor Agregado – MVA), como na hipótese de substituição tributária, optou o legislador, pois, no estágio inicial da cadeia, por uma concentração de alíquotas fixas, para garantia da arrecadação do PIS e da Cofins.

Portanto, a não cumulatividade pode ser igualmente efetivada pela tributação monofásica ou concentrada, porquanto, entre as distintas operações tributáveis em uma cadeia de produção e comercialização, a lei pode eleger um elo para concentrar a tributação.

Desse modo, a tributação monofásica, que seria a negação da tributação em cadeia (cumulativa ou não cumulativa), na espécie, alinha-se à não cumulatividade para servir como instrumento hábil à antecipação dos tributos, com carga tributária compatível com o que seria a arrecadação própria do circuito plurifásico, segundo critérios pertinentes à política fiscal que se pretenda perpetrar na ordem econômica e no setor designado.

Eis porque a tributação monofásica aplicada ao primeiro sujeito de uma dada cadeia de consumo pode perfeitamente conviver com a atribuição de direito de crédito aos sujeitos que se encontram na etapa subsequente, haja vista a agregação do tributo ao custo do produto ou do serviço.

De fato, a lei somente exclui, de modo expresso, a tomada de crédito, quando não há tributação na operação de entrada e na saída (salvo os casos de créditos presumidos) a saber:

“Art. 3º, (…) § 2º Não dará direito a crédito o valor: (Redação dada pela Lei nº 10.865/04) (…)

II – da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição, inclusive no caso de isenção, esse último quando revendidos ou utilizados como insumo em produtos ou serviços sujeitos à alíquota 0 (zero), isentos ou não alcançados pela contribuição. (Incluído pela Lei nº 10.865/04)”.

Deveras, desde que haja tributação nas etapas anteriores, afirma-se como inafastável o direito à tomada do crédito. E, de outra banda, somente não dará direito ao crédito a aquisição de produtos ou serviços quando estes forem isentos, sujeitos à alíquota-zero ou não alcançados por estas contribuições.

Para os fins da tomada do crédito importa unicamente que a operação anterior seja tributada. Portanto, mesmo nas operações nas quais a “saída” de mercadorias se der com suspensão, isenção, alíquota-zero ou não incidência, a restituição dos créditos será sempre obrigatória.

Neste sentido, o art. 17 da Lei n. 11.033/2004 não poderia ser mais esclarecedor, ao confirmar a tomada do crédito nestes casos de saídas não tributadas, com prevalência da regra da tomada do crédito pela operação precedente tributada. Não é demasiado repetir o regime normativo assinalado:

“Art. 17. As vendas efetuadas com suspensão, isenção, alíquota 0 (zero) ou não incidência da Contribuição para o PIS/PASEP e da Cofins não impedem a manutenção, pelo vendedor, dos créditos vinculados a essas operações.”

Essa regra confere ao contribuinte o direito subjetivo, em cada apuração da base de cálculo do tributo devido, ao abatimento do tributo cobrado na operação anterior, como forma de assegurar o cumprimento dos valores inerentes ao princípio de não cumulatividade.

Qualquer vínculo de exclusividade entre o artigo 17 da lei nº 11.033/04 e o REPORTO deve ser afastado de plano, haja vista a sua natureza interpretativa, de modo que esse dispositivo apenas esclarece que a realização da não cumulatividade independe de benefícios fiscais nas operações de saída, afora o fato de a Lei nº 11.033/04 disciplinar diversas outras matérias, a demover o argumento de natureza puramente topográfica. Em verdade, a Lei nº 11.033/04 não trata apenas do REPORTO, mas de diversos temas relacionados à legislação tributária, com alterações em matérias variadas da incidência das contribuições PIS e Cofins, tais como tributação do mercado financeiro e de capitais.

Vê-se, o revendedor que adquire os bens diretamente do produtor ou importador, com tributação monofásica, permanece enquadrado no regime não cumulativo. E o fato de as vendas subsequentes se sujeitarem à alíquota-zero não tem o condão de inibir o desconto dos créditos das aquisições anteriores.

O artigo 17 da lei nº 11.033/04, como assinalado, autoriza a tomada de créditos de PIS e Cofins vinculados às vendas efetuadas com suspensão, isenção, alíquota zero ou não incidência da Contribuição ao PIS e da Cofins. Ora se o beneficiário do REPORTO deve destinar os bens adquiridos ao seu ativo imobilizado, não haveria qualquer sentido, para o usuário deste regime, em adotar medida que opera com a expectativa de circulação de bens ou serviços.

Ora, após a vigência da Lei nº 10.865/04, não há dúvidas acerca da possibilidade de cômputo da receita proveniente da venda de produtos sujeitos à incidência monofásica, ainda que submetida à suspensão, isenção, alíquota-zero ou não incidência das contribuições ao PIS e à Cofins, no cálculo do rateio proporcional de créditos em relação às referidas contribuições, apurado mensalmente e que impacta diretamente no volume de créditos a ser apropriado efetivamente pela pessoa jurídica.

O princípio da não cumulatividade do PIS e da Cofins, como qualquer outro “princípio”, tem o seu âmbito normativo, e, por isso, todo o ordenamento deve assegurar a sua efetividade e proteção (efeito de bloqueio). Assim, o direito de crédito deve ser interpretado com meio para imputar a máxima realização da não cumulatividade (efetividade); e qualquer restrição somente pode ser oposta por lei, quando não macule o conteúdo essencial do direito à não cumulatividade.

A própria Receita Federal do Brasil tem reconhecido a compatibilidade entre o regime de incidência monofásica e a apuração não cumulativa de PIS e Cofins, assentando a diferença entre o regime de incidência (ou de recolhimento) monofásico e a sistemática de apuração das referidas contribuições, conforme se vê em algumas Soluções de Consulta.

De igual modo, o Ato Declaratório RFB nº 4, de 07 de junho de 2016, esclareceu, com caráter vinculativo para a Administração, que a partir de 1º de agosto de 2004, com a entrada em vigor dos arts. 21 e 37 da Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004, as receitas decorrentes da venda de produtos submetidos à incidência concentrada ou monofásica do PIS e da Cofins estão, em regra, sujeitas ao regime de apuração não cumulativa das referidas contribuições, salvo as disposições contrárias estabelecidas pela legislação.

Por força destes valores da não cumulatividade, a interpretação da tipicidade das hipóteses de fatos geradores de créditos deve conferir máxima efetividade ao princípio da não cumulatividade (ou otimização, no sentido atribuído por Robert Alexy3), cuja restrição aos referidos fatos somente pode ser introduzida por lei expressa, o que não ocorre na espécie.

Logo, só há “proibição” da tomada de crédito quando a lei, não atos administrativos, o faça expressamente. Se não está proibido, interpreta-se de modo favorável ao direito de crédito, por força do comando constitucional. Como a não cumulatividade é um princípio constitucional (art. 195, § 12 da CF) exigido para vincular os tributos PIS e Cofins, e como estão em vigor os regimes gerais e especiais que prescrevem os meios para efetividade da não cumulatividade, toda e qualquer interpretação das leis somente pode concluir pelo direito de crédito, excetuado os casos de expressa proibição legal.

Em conclusão, a manutenção da cumulatividade nas cadeias submetidas ao regime monofásico de recolhimento do PIS e da Cofins, mediante a negativa de desconto de créditos às etapas intermediárias cujas aquisições sofreram a incidência concentrada das referidas contribuições, equivale a um aumento disfarçado da carga tributária imposta às empresas integrantes dos setores sujeitos à tributação monofásica, cujo ônus econômico fatalmente será repassado – senão todo, em grande parte – ao consumidor final.

Numa interpretação conforme a Constituição dos artigos das Leis nº 10.637/02 e nº 10.833/03, em relação à não cumulatividade na apuração do PIS e da Cofins, a aplicabilidade do regime de concentração de alíquotas impõe o direito ao reconhecimento do crédito na operação seguinte da cadeia. Situação diversa, implicaria contrariar o art. 150, II da CF (princípio da não discriminação), na medida que seriam tratados em modo diferente aqueles que suportam tributação nas etapas anteriores e estão desonerados nas de saída, por alíquota-zero.

Negar ao contribuinte o aproveitamento de saldos credores de PIS e Cofins, acumulados em virtude de vendas submetidas à alíquota-zero, porquanto inseridas na cadeia de incidência monofásica das referidas contribuições, com tributação concentrada na fase inicial do ciclo produtivo, implica afronta aos princípios da não cumulatividade e da não discriminação, além de afetação ao próprio princípio-garantia da segurança jurídica.


1 Ver: TORRES, Ricardo Lobo. A não cumulatividade no PIS/Cofins. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; FISCHER, Octavio Campos. PIS – COFINS: questões atuais e polêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 53-74; TÔRRES, Heleno Taveira. Monofasia e não cumulatividade das contribuições ao PIS e COFINS no setor de petróleo (refinarias). In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.); CATÃO, Marcos André Vinhas (Coord). Tributação no setor de petróleo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 179-206; GRECO, Marco Aurélio. Não cumulatividade no PIS e na Cofins. In: PAULSEN, Leandro (Coord.). Não cumulatividade do PIS/PASEP e da Cofins. São Paulo: IOB Thomson; Porto Alegre: I.E.T. – Instituto de estudos tributários, 2004, p. 101-122; TOMÉ, Fabiana Del Padre. Natureza jurídica da ''não cumulatividade'' da contribuição ao PIS/PASEP e da COFINS: consequências e aplicabilidade. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; FISCHER, Octavio Campos. PIS – COFINS: questões atuais e polêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 535-555.

2 Cf. MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2012, p. 453 e seguintes.

3 Para Alexy, os mandamentos de otimização comportam a indeterminação, se não dos pressupostos de aplicação (existência ou não de fato jurídico), da consequência jurídica, porquanto nas regras isso viria bem determinado, enquanto nos princípios haveria um amplo campo de possibilidades. Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 153.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro e livre-docente em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado, foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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