Paradoxo da corte

Alienação do direito litigioso num recente precedente do STJ

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

26 de maio de 2020, 8h00

A estrutura formal do processo judicial pressupõe sempre a existência de duas partes contrapostas. É famosa a máxima medieval, cuja paternidade é atribuída a Bulgarus: “iudicium est actus trium personarum, iudicis, actoris et rei” (“O processo é formado por um trio de pessoas: juiz, autor e réu”). Assim como ocorre com os elementos objetivos da demanda (causa petendi e petitum), que permanecem em regra inalterados até a sentença, as partes que se encontram presentes no início da ação conduzirão o processo até o seu final.

É possível, no entanto, haver modificação superveniente do elemento subjetivo da demanda durante a tramitação do processo, quando uma das partes falece ou, então, tratando-se de pessoa jurídica, é ela sucedida ou incorporada por outra. Nestes casos, havendo sucessão a título universal, aplicam-se as disposições dos artigos 110, 313 e 687 do Código de Processo Civil, procedendo-se à substituição da parte pelo seu sucessor legal, a quem são transferidas todas as posições jurídicas atinentes ao objeto da sucessão, inclusive as de natureza processual.

Regrando, por outro lado, as repercussões processuais da sucessão inter vivos, preceitua o artigo 109 do Código de Processo Civil que: “A alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a título particular, não altera a legitimidade das partes”. Infere-se que a pendência do processo não é óbice – e nem poderia ser – à fluência normal do comércio jurídico, inclusive no que concerne ao bem ou ao direito litigioso.

Todavia, julgada a demanda, os efeitos da sentença estendem-se, além das partes originárias, ao adquirente ou cessionário (artigo 109, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil).

O adquirente ou cessionário poderá ingressar no processo e substituir a autor ou o réu, dependendo de quem tenha sido o transmitente, desde que a parte contrária manifeste o seu consentimento (artigo 109, parágrafo 1º). Extrometida a parte substituída ou figurando apenas como assistente litisconsorcial, o sucessor, passando a atuar como parte, fica obviamente sujeito à coisa julgada.

Pela ampla possibilidade de o adquirente intervir no processo e assumir, a partir do negócio celebrado com o transmitente, a posição de parte, não é ele, pois, considerado terceiro. Daí, porque o adquirente passa a ser titular da posição jurídica, uma vez que a transferência do direito no curso do processo desponta válida, existente e eficaz, e, por essa razão, não pode ser ele considerado terceiro, tanto que intervém no processo na qualidade de parte. Decorre dessa conclusão que o adquirente do direito litigioso é considerado parte no sentido do artigo 506 do Código de Processo Civil, sujeito, portanto, a todas as consequências daí decorrentes.

Existem, no entanto, apenas duas situações nas quais o direito material ressalva a boa-fé do terceiro adquirente, podendo este furtar-se à eficácia da sentença por meio de remédio processual próprio. Sim, porque se escusável o não conhecimento da litispendência, fica o adquirente, em consequência, obstado a participar do processo. Nesse caso, não se afigura admissível sujeitá-lo à autoridade da coisa julgada. Mas, quando tudo se passa de maneira clara: tanto o alienante quanto o adquirente praticam conscientemente negócio sobre o bem que sabem constituir objeto de disputa judicial, a comunicação da coisa julgada material ao sucessor é inegável.

Recente julgado da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça examinou situação que ensejou interessante interpretação do supra citado artigo 109, no julgamento do Recurso Especial n. 1.837.413-PR, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze.

A controvérsia, objeto desse recurso especial, recaiu sobre a alegada ilegalidade de penhora sobre ativos da conta bancária do cedente (exequente originário), depois de ter efetivado a cessão do crédito exigido no processo, com a respectiva sucessão processual no polo ativo da demanda.

Tendo então ocorrido a exclusão do cedente como parte do processo, sem objeção do outro litigante, fica ele eximido de qualquer consequência posterior. Desse modo, o cessionário se sub-roga em todos os direitos e obrigações da posição que assumiu, liberando definitivamente o cedente dos ônus do processo.

 O ponto que torna o aludido precedente realmente incomum é que, por ocasião do cumprimento da sentença, apurou-se a existência de um débito em desfavor da parte cessionária, ou invés de um crédito!

Com efeito, o banco cedente, no curso da execução por ele ajuizada, bem como no dos embargos do devedor, cedeu o seu suposto crédito e a sua posição processual a um terceiro, que então assumiu a qualidade de parte.

Iniciado o cumprimento de sentença proferida nos embargos à execução, julgados procedentes, liquidou-se, como acima frisado, um débito contra a parte cessionária.

É certo que o banco cedente, não mais integrando a relação jurídica de direito material e processual, na condição de terceiro, estranho ao processo, não poderia sofrer prejuízo. Não obstante, foi determinada a constrição judicial sobre valores disponíveis. Diante dessa circunstância, o banco opôs embargos de terceiro.

Enfrentando de forma magistral essa questão, a indigitada 3ª Turma negou provimento ao recurso especial manejado pelo credor, ao prestigiar o acerto do tribunal de origem, que, provendo o recurso de apelação interposto pelo banco, reconheceu a procedência dos embargos de terceiro, dada a inequívoca ilegalidade da penhora.

O substancioso voto condutor da lavra do ministro Marco Aurélio Bellizze, secundado à unanimidade pelos seus pares, assentou a seguinte tese:

“Em que pese a sentença de procedência dos embargos à execução transitada em julgado e a apuração de um débito em desfavor da cessionária, ao invés de crédito, esse fato não conduz ao automático desfazimento da cessão efetivada e à reinserção da casa bancária nos autos do feito executivo.

Não pode a adquirente/cessionária favorecer-se apenas dos bônus provenientes da cessão, se sabidamente adquiriu um crédito litigioso do banco sucedido, passando a ingressar na ação executiva defendendo direito próprio.

Se a cessionária assim o fez, conclui-se que ela assumiu o risco do negócio jurídico, cuja completude deve ser discutida apenas entre cedente e cessionária em nova demanda, devendo ela, portanto, suportar os encargos dele oriundo na referida ação executiva.

Outrossim, estendendo-se os efeitos da sentença ao cessionário da coisa ou direito litigioso (artigo 109, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil), mesmo quando este não integre o processo, com mais razão, ainda, deve operar apenas sobre ele a coisa julgada material, quando ele participa diretamente da demanda judicial, sucedendo o alienante/cedente.

(…) Portanto, não mais integrando o banco a relação jurídica de direito material e processual constante do feito executivo, em que se reconheceu serem credores os primitivos executados, e não devedores, ostenta, de fato, a instituição financeira recorrida a condição de terceiro, revelando-se indevida a constrição efetivada sobre os valores constantes de sua conta bancária, a ensejar, pois, a procedência dos embargos de terceiro, conforme assentado no acórdão recorrido…”.

Permito-me concluir salientando que esse importante julgado bem revela que a atividade jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça não desempenha apenas uma tarefa institucional para conferir unidade à interpretação e aplicação da lei e, assim, segurança ao direito, mas, também, de desenvolver e complementar a lei naquelas situações inusitadas oferecidas pela dinâmica negocial da sociedade.

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