Contas à vista

O federalismo fiscal de ódio e o necessário endividamento da União

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

26 de maio de 2020, 8h01

A Constituição de 1988 desenhou para o Brasil um sistema de federalismo cooperativo, em especial no âmbito fiscal, seja com: 1) a divisão de competências impositivas tributárias entre os três entes federados, a qual se denomina de receitas próprias; 2) a divisão do produto arrecadado de alguns tributos e dos royalties de seus recursos naturais (federalismo patrimonial), que se se denomina de receita transferida; 3) outras especificidades que não cabe descrever neste espaço.

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Esse desenho foi sendo minado ao longo dos anos. Inicialmente através de subterfúgios na arrecadação compartilhada, isto é, na instituição e majoração das contribuições, cuja receita não era dividida federativamente, ficando apenas nos cofres da União. Um bom exemplo disso é a CSLL — Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (criada pela Medida Provisória 22, de dezembro de 1988), que nada mais é do que um acréscimo do IRPJ (Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas). Sendo uma "contribuição", sua arrecadação não é dividida com Estados e municípios, o que ocorreria se fosse um "imposto". Exemplos nesse sentido poderiam se multiplicar.

O problema maior está no porvir imediato, fruto da pandemia da Covid-19, e diz respeito à correlação entre os aspectos tributários e financeiros do problema. Tentarei ser didático.

No âmbito da receita, Estados e municípios viram sua arrecadação tributária desabar, seja a própria, seja a transferida. A União, que só conta com receitas próprias, também teve enorme queda de receita.

No âmbito da despesa, constata-se que tanto a União quanto Estados e municípios estão com muitos gastos extraordinários na área de saúde, em face do combate à pandemia. E mantém muitos gastos rígidos, que não podem ser reduzidos, como os salários dos servidores públicos, sejam os da ativa, sejam os aposentados, além dos gastos com o serviço da dívida.

Consequentemente, haverá forte desequilíbrio orçamentário, com as despesas superando fortemente as receitas. Logo, como compensar esse desequilíbrio sabendo-se que as penalidades previstas na Constituição e na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) já foram afastadas pelo Decreto Legislativo 6/20, pela ADI 6357 e pela EC 106?

A única resposta válida, na emergência em que vivemos, é através do endividamento.

Ocorre que no Brasil só a União pode se endividar. Estados e municípios até podem fazê-lo, porém só com o aval da União. Se esta não concordar, estes não poderão se endividar.

Aqui entra a questão do federalismo de ódio. Se antes a União adotava uma fórmula de subterfúgio, para desviar receitas que deixavam de ser compartilhadas, agora desponta uma nova fase, que é a da asfixia de Estados e municípios, podendo até mesmo ocorrer com a própria União, gerando a hipótese de submissão de toda a sociedade hipóteses que gostaria de ver negadas.

Vamos aos cenários que se desenham no horizonte.

Primeiro cenário: Em mais alguns dias Estados e municípios ficarão sem recursos até mesmo para pagamento do pessoal da área de saúde e demais gastos nesse setor, pois suas fontes de receita cessaram. Minas Gerais já aponta nesse sentido, referente a outros gastos. Pode ocorrer de a União decidir se endividar e não partilhar os recursos com Estados e municípios. Nessa hipótese, apenas o ente central teria dinheiro, deixando os demais entes federados asfixiados e os obrigando a aceitar qualquer termo de acordo federativo para que possam manter suas atividades. Consequência: Estados e municípios aos pés da União para que possam pagar suas despesas.

Segundo cenário, a partir do primeiro: A União também não se endivida, sob o argumento que os indicadores financeiros estão péssimos e ficarão ainda piores, ou expondo argumentos semelhantes. Nessa hipótese faltará dinheiro até mesmo para a União realizar seus gastos correntes, não havendo dinheiro nem mesmo para transferir a Estados e municípios. Consequência: toda a sociedade fragilizada. Nessa hipótese a saída será através de uma trágica e desordenada política de redução de gastos públicos e da venda do patrimônio público na bacia das almas, a qualquer preço.

Ensaio nesse sentido se vê na demora em sancionar o Projeto de Lei Complementar 39, vastamente debatido no Congresso, e que concederá R$ 60 bilhões de dinheiro novo a Estados e municípios, partilhado de forma já criticada em outro texto. Esse montante não supre o desequilíbrio orçamentário de alguns desses entes federados nem por 60 dias. O argumento político para essa demora é que se está discutindo o veto ao uso desses recursos no aumento da remuneração de servidores públicos estaduais, o que parece consensual entre os governadores.

Enfim, espero que haja bom senso da União em se endividar e repartir esses recursos com Estados e municípios, a fim de permitir um combate mais eficaz à Covid-19, inimiga comum de toda a humanidade. As políticas de redução do tamanho do Estado devem ser discutidas com a sociedade, através dos mecanismos políticos Poderes Legislativo e Executivo —, nos limites da Constituição. E eventuais desvios devem ser coibidos pelo Judiciário, sob o olhar atento do Ministério Público, dos Tribunais de Contas e de toda a sociedade. Fazê-lo de forma atabalhoada só trará prejuízos a todos. Usar mecanismos financeiros para asfixiar Estados e municípios, ou mesmo toda a sociedade, será irradiar ainda mais o ódio em nosso país em todos os sentidos.

Confesso estar na torcida para que as duas hipóteses acima expostas sejam apenas um pesadelo do qual acordaremos com más lembranças.

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