Opinião

O controle pelo STF do dever de análise integral da prova penal

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26 de maio de 2020, 13h30

Advogados criminalistas com atuação perante o Supremo Tribunal Federal reconhecem, pela própria experiência, a baixíssima taxa de acolhimento de recursos extraordinários criminais interpostos em favor do réu. Há pouco tempo, quando ainda se discutia a constitucionalidade do artigo 283 do CPP, que instituiu como marco para início da execução da pena o trânsito em julgado da condenação, emergiu um debate sobre o grau de eficácia do recurso extraordinário defensivo. Em pesquisa mencionada pelo ministro Luís Roberto Barroso no julgamento do HC nº 126.292, entre os anos de 2009 e 2016, o percentual de recursos extraordinários providos em favor do réu foi inferior a 1,5%, sendo que em apenas 0,035% do total de casos o STF havia absolvido o réu.

A despeito do fato de que a maior parte das decisões do STF favoráveis à defesa é tomada em sede de Habeas Corpus, pode-se afirmar que, como regra, o STF sequer examina o mérito dos recursos extraordinários criminais, seja por considerar que tal exame demanda reexame de provas (Súmula 279-STF), seja por afirmar a natureza meramente infraconstitucional da controvérsia (Súmula 280-STF).

É verdade que, em toda parte do mundo, o percentual de condenações criminais anuladas ou revistas por tribunais constitucionais é baixo. E nem poderia ser diferente, já que não cabe ao tribunal constitucional aferir a justiça ou injustiça de cada decisão penal condenatória. Apesar disso, uma função do recurso extraordinário criminal até aqui desprezada pela jurisprudência pode contribuir para o aperfeiçoamento do sistema de justiça criminal brasileiro: o controle pelo STF da observância pelas instâncias ordinárias do dever de análise integral do conjunto probatório [1]. A lição é simples: o juiz criminal não pode fundamentar a decisão condenatória na análise de uma parcela das provas produzidas, simplesmente desprezando outras que não favoreçam a conclusão pela culpa do acusado. Em situações mais graves, nas quais a ausência de análise integral do conjunto probatório esteja clara, o STF deve dar provimento ao recurso extraordinário da defesa por violação ao dever de motivação das decisões judiciais e ao direito à presunção de inocência. A experiência de outros tribunais constitucionais funciona como sinal de alerta para esse ponto cego da nossa jurisdição constitucional no campo penal. O objetivo deste breve ensaio é o de iluminar uma importante funcionalidade do recurso extraordinário criminal no Brasil que nunca se desenvolveu.   

O dever de análise integral do conjunto probatório produzido em contraditório
O dever de motivação das decisões judiciais decorre diretamente da cláusula do devido processo legal, mas também se encontra positivado no artigo 93, IX, da Constituição Federal, que estabelece que as decisões judiciais serão devidamente motivadas, sob pena de nulidade. A propósito desse tema, são dignas de nota as inovações inseridas no Código de Processo Civil de 2015, que, além de reproduzir o supracitado preceito constitucional [2], elenca expressamente algumas hipóteses em que as decisões não se consideram devidamente fundamentadas [3].

Esse dever de motivação das decisões judiciais está intimamente ligado à ideia de contraditório efetivo. O contraditório efetivo abrange, para além do direito de conhecer e reagir às informações incorporadas aos autos, a possibilidade de a parte influenciar o resultado do processo. Nesse sentido, as partes têm o direito de ver as suas alegações e provas devidamente apreciadas pelo julgador. A essa garantia das partes processuais, corresponde o ônus que recai sobre o julgador de apreciar os elementos por elas introduzidos no processo, seja para acolhê-los ou rejeitá-los. Essa tarefa inclui a adequada exposição dos fundamentos e das provas que contribuíram para a formação do seu convencimento.

Aspecto fundamental que decorre do dever de motivação da decisões judiciais nem sempre lembrado pela doutrina e jurisprudência nacionais é aquele relacionado à necessidade de o julgador promover a análise integral do conjunto probatório produzido em contraditório. A ideia tem sido melhor desenvolvida no Brasil no campo do Direito Processual Civil. Tal dever de análise integral da prova foi enfatizado por Marinoni e Arenhart ao assinalarem que o juiz "não justifica as suas razões apenas ao aludir às provas produzidas por uma das partes. Para que possa realmente justificar a sua decisão, o magistrado não pode deixar de demonstrar que as eventuais provas produzidas pela parte perdedora não lhe convenceram. (…) é preciso eliminar a ideia de que justificar a decisão é o mesmo do que lembrar as provas e argumentos que servem ao vencedor" [4]. Em igual sentido, Fredie Didier Jr., depois de diagnosticar que é frequente ver nas decisões judiciais uma estratégia de realçar apenas as provas que dão sustentação à tese vencedora, adverte que é imprescindível que o juiz indique também o motivo de as provas trazidas pela parte vencida não o terem convencido da solução contrária [5].

Nessa direção, a doutrina brasileira tem chamado a atenção para o fato de ser "atentatória à plenitude da motivação a inferência parcial às provas, a conduta do juiz que se limita a mencionar apenas as que confirmam e corroboram com a sua conclusão, desprezando as demais, como se fosse possível uma espécie de seleção artificial em matéria probatória, acarretando, desse modo, nulidade do pronunciamento judicial" [6]. De acordo com Barbosa Moreira, o dever de motivação das decisões judiciais não é atendido por afirmações genéricas no sentido de que "a prova produzida pelo autor não convence" ou de que "as alegações do réu não ficaram comprovadas". Para o mestre fluminense, "(…) com isso o juiz de maneira alguma se desincumbiu do dever de motivar: ele tem que explicar por que não lhe pareceu convincente a prova produzida pelo autor" ou "se as provas produzidas pelo réu não o convenceram, que ele exponha os motivos pelos quais não ficou convencido" [7].

Essa ideia de ônus judicial de análise integral do conjunto probatório — como decorrência do dever constitucional de motivação das decisões judiciais , embora tenha recebido maior desenvolvimento no Direito Processual Civil, ganhou mais recentemente particular importância no controle da legitimidade das sentenças penais. Mais do que isso: o descumprimento desse dever de exame integral das provas produzidas em contraditório no processo penal passou a ser reconhecido por tribunais constitucionais como uma modalidade de violação direta das cláusulas constitucionais do dever de motivação das decisões judiciais e da presunção de inocência.

Uma nota de Direito Constitucional comparado
A jurisprudência constitucional comparada tem oferecido importante contribuição no tratamento da questão concernente ao controle da motivação das decisões que se omitem na apreciação de parte relevante do conjunto probatório. Nesse sentido, o Tribunal Constitucional da Espanha tem reconhecido a violação ao direito à tutela jurisdicional efetiva, na perspectiva que tem o jurisdicionado de obter uma resposta judicial motivada sobre a pretensão pleiteada, nos casos em que as sentenças não promovem a valoração expressa ou tácita do conjunto probatório como um todo. Tal omissão impede que as partes conheçam as razões que conduziram o órgão judicial a descartar a valoração de parte das provas produzidas [8]. A jurisprudência do Tribunal Constitucional da Espanha afirma ainda que o direito à tutela jurisdicional efetiva encontra máxima efetividade no campo do processo penal, no qual a preterição da prova introduzida pela defesa importa igualmente vulneração ao princípio da presunção de inocência [9].

Em igual direção, a jurisprudência da Corte Constitucional da Colômbia caracteriza a omissão da decisão em realizar a valoração integral do acerco probatório dos autos como um defeito fático sujeito a controle judicial estrito das instâncias revisoras [10]. O defeito fático se configura nas hipóteses em que o julgador ignora uma realidade probatória determinante para o resultado do processo. Nesses casos, a Corte Constitucional colombiana tem reiterado que o controle dos defeitos fáticos se fundamenta na premissa de que, apesar de a análise do acervo probatório ser orientado por certa margem de discricionariedade, o juiz deve decidir com base em critérios objetivos e racionais [11].

Ainda segundo a jurisprudência colombiana, a independência e a autonomia judiciais "jamais poderão ser exercidas de maneira arbitrárias; sua atividade valorativa implica, necessariamente, a adoção de critérios objetivos, não simplesmente pressupostos pelo juiz, racionais, é dizer, que ponderem a magnitude e o impacto de cada uma das provas alegadas, e que materializem a função da administração da Justiça que se exige dos funcionários judiciais sobre a base de provas colhidas" [12]. Sob essa perspectiva, o princípio do livre convencimento motivado não afasta a possibilidade do reconhecimento de um defeito fático por ausência de valoração do conjunto probatório.

A jurisprudência dos tribunais constitucionais da Espanha e da Colômbia mostra que é necessário construir parâmetros que permitam o controle por parte da jurisdição constitucional da violação pelas instâncias ordinárias do dever de motivação das decisões judiciais decorrente da omissão relevante na análise integral do conjunto probatório. Embora seja comum aos tribunais constitucionais a preocupação em evitar a jurisdição constitucional seja acionada para revisar o exame das provas empreendido pelas instâncias ordinárias, a jurisprudência comparada tem mostrado a relevância do controle realizado pelos tribunais constitucionais da observância do dever de análise integral da prova, especialmente no âmbito do processo penal.

A propósito do tema, a jurisprudência do Tribunal Constitucional da Espanha firmou-se no sentido de que o procedimento constitucional de amparo que naquele país é recurso análogo aos nossos recursos de natureza extraordinária é o meio adequado para que o Tribunal Constitucional promova a revisão das decisões tomadas pelos órgãos jurisdicionais que tenham promovido uma análise incompleta do acervo probatório. De acordo com o Tribunal Constitucional daquele país, a possibilidade de controle judicial da motivação das decisões que valoram provas se insere no âmbito do direito à tutela jurisdicional efetiva [13]. Exatamente no mesmo sentido é a orientação jurisprudencial do Tribunal Constitucional da Colômbia firmada a propósito dos defeitos fáticos [14].

Tudo isso recomenda que o recurso extraordinário criminal seja reabilitado como mecanismo de controle do descumprimento do dever de análise integral do conjunto probatório. Afinal, como alerta corretamente a doutrina brasileira, "não há pretensão de formação de nova convicção sobre as provas". O que existe é "apenas a afirmação de que a decisão deixou de tomar em conta uma prova ou um fato provado ou considerou um fato não provado", sendo essa questão completamente "estranha ao material probatório" [15]. Embora seja correto afirmar que, em regra, o controle da observância do dever de análise integral do conjunto probatório deva ser exercido pelo Superior Tribunal de Justiça pela via do recurso especial especialmente em razão da aplicação do artigo 489 do CPC, por analogia, ao processo penal , não há dúvida de que o Supremo Tribunal Federal possui relevante função subsidiária na fiscalização da observância desse importante requisito de validade das sentenças penais condenatórias. Nesse sentido, o recurso extraordinário criminal pode ser reabilitado, ainda que de forma subsidiária, como mecanismo apto a aperfeiçoar o sistema de justiça criminal brasileiro, sem banalizar o acesso individual do réu ao STF, mas garantindo que a jurisdição constitucional parametrize de forma adequada o ônus de motivação do qual deve se desincumbir o juiz para impor uma condenação criminal ao acusado.

Conclusão
Em síntese, a afirmação indiscriminada da ausência de repercussão geral nos recursos extraordinários criminais que versam sobre a violação do dever de motivação [16] tem impedido a construção de parâmetros adequados de controle por parte da jurisdição constitucional do dever de análise integral do conjunto probatório no campo processual penal. O esboço de estudo de direito comparado aqui apresentado sobre o tema acende um alerta de que não estamos no caminho certo na delimitação do papel a ser desempenhado pelo recurso extraordinário criminal no Brasil. É necessário construir um distinguish entre a generalidade dos casos em que a suposta violação ao dever de motivação da decisões judiciais não passa de tema infraconstitucional e aquelas situações especialmente no campo penal em razão da ameaça à liberdade de locomoção em que a ausência de análise integral do conjunto probatório viola direta e gravemente o direito à tutela jurisdicional efetiva e à presunção de inocência, dando ensejo ao acolhimento do recurso extraordinário criminal defensivo.

 


[1] Para uma visão mais ampla sobre a importante função da jurisdição constitucional na constitucionalização do campo penal no Brasil, v. o meu: SOUSA FILHO, Ademar Borges de. O controle de constitucionalidade de leis penais no Brasil: graus de deferência ao legislador, parâmetros materiais e técnicas de decisão. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

[2] Artigo 11  Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.

[3] Artigo 489  § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 4ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 461.

[5] DIDIER JR; Fredie. Sobre a fundamentação da decisão judicial, p. 5. Disponível em: https://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2012/02/sobre-a-fundamentacao-da-decisao-judicial.pdf. Acesso em: 20 de agosto de 2019.

[6] SIQUEIRA, Fernando. Implicações do dever de esclarecimento na valoração da prova. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-13/fernando-siqueira-dever-esclarecimento-valoracao-prova. Acesso em: 20 de agosto de 2019.

[7] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O que deve e o que não deve figurar na sentença. In Temas de Direito Processual – 8ª série, p. 121.

[8] SSTC 9/2015, de 2 de fevereiro de 2015 e SSTC 139/2009, de 17 de julho de 2009.

[9] SSTC 61/2019, de 10 de junho de 2019.

[10] Sentença T-671/17.

[11] Sentença T-969/09.

[12] Sentença SU-074/14. Tradução livre.

[13] SSTC 61/2019, de 6 de maio de 2019.

[14] Sentença SU-774, de 2014 e Sentença T-926, de 2014.

[15] MARINONI, Luiz Guilherme. Reexame da prova diante dos recursos especial e extraordinário. Disponível em: http://www.marinoni.adv.br/wp-content/uploads/2012/06/PROF-MARINONI-REEXAME-DA-PROVA-DIANTE-DOS-RECURSOS-ESPECIAL-E-EXTRAORDIN%C3%81RIO.pdf. Acesso em 20 de agosto de 2019.

[16] STF. AI 791.292 QO-RG, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 23.06.2010.

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público, mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense e doutor em Direito Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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