Opinião

Voto proporcional é causa da disfunção do sistema político brasileiro

Autor

  • Renato Rua de Almeida

    é advogado trabalhista professor aposentado da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne) membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo da ABDT do IBDSCJ e presidente do Instituto Jacques Maritain do Brasil.

25 de maio de 2020, 11h06

As formas de governo democrático, seja presidencialista, seja parlamentarista, têm sua eficácia em grande medida na representatividade política das eleições legislativas.

De fato, a representatividade política nas eleições legislativas é fundamental para a harmonia e a independência dos poderes constituídos, segundo a visão de Montesquieu em sua obra "O espírito das leis", especialmente entre os Poderes Executivo e Legislativo, tendo em vista a governabilidade.

Portanto, a funcionalidade do Estado democrático de Direito está condicionada à coexistência harmônica e independente dos poderes constituídos, que, por sua vez, depende da representatividade política nas eleições legislativas.

O filósofo Jacques Maritain ensina em sua obra "O homem e o Estado" que, segundo a teoria instrumentalista, a noção política do Estado prevê sua principal atividade na promoção do bem comum da sociedade.

Dessa forma, para a promoção do bem comum dos cidadãos é preciso que o moderno Estado democrático de Direito esteja instrumentalizado com a harmonia e a independência dos poderes constituídos, em especial entre os Poderes Executivo e Legislativo, tendo em vista a governabilidade, o que não ocorreu nem com o Estado absolutista da monarquia francesa, nem com a noção despótica do Estado nazista ou fascista, concebido pela teoria substancialista ou absolutista hegeliana.

Por outro lado, embora a democracia moderna não seja apenas representativa através do sufrágio universal, mas também participativa por meio da presença de setores organizados da população em conselhos governamentais, como ensina Georges Burdeau em sua obra "A democracia", o que se vê, contudo, no Brasil, é que nem mesmo a democracia representativa está suficientemente desenvolvida.

Com efeito, verifica-se no Brasil uma disfunção do seu sistema político em decorrência do anacronismo do voto proporcional para as eleições legislativas, que não enseja uma verdadeira representatividade parlamentar, gerando constante crise política de governabilidade.

Ora, é sabido que o sufrágio universal, segundo a lição de Jacques Maritain em sua obra "Os direitos do homem e a lei natural", é a forma mais elementar de o cidadão participar da vida política, e, por conseguinte, seu principal direito político para a escolha dos detentores da autoridade política, cuja função essencial é dirigir homens livres para o bem comum.

Nesse sentido, a Constituição de 1988 da República Federativa do Brasil prevê, em seu artigo 14, que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto.

No entanto, para que o sufrágio universal atinja seus objetivos, é preciso que o sistema eleitoral para as eleições legislativas contemple uma representatividade dos eleitos, de modo que o sistema político como um todo tenha governabilidade.

São três os sistemas eleitorais mais conhecidos para eleições legislativas nas democracias representativas, a saber: voto proporcional, voto distrital e voto distrital misto.

A grosso modo, o voto proporcional é unipessoal, isto é, dado a candidato de determinado partido político, sendo computados todos os votos recebidos pela legenda para a verificação final do número de eleitos que está relacionado ao atingimento tantas vezes do quociente eleitoral como resultado da divisão dos votos válidos com a quantidade de vagas disponíveis.

Portanto, a eleição do candidato votado é complexa e depende de vários fatores, tornando a relação entre eleitor e eleito bastante difusa e dispersa.

Por outro lado, trata-se de uma eleição bastante personalizada pelo candidato e o partido político torna-se entidade enfraquecida, servindo quase que exclusivamente para abrigar o candidato, sem exigir dele maiores compromissos programáticos, daí a recorrente fragmentação partidária.

Já o voto distrital é mais simples, pois o distrito é uma circunscrição eleitoral definida por lei por critérios geográficos e demográficos, e será eleito o candidato mais votado por distrito eleitoral.

Vê-se, dessa forma, que a relação entre o eleitor e o eleito é mais estreita e resulta que o número de partidos é pequeno, facilitando a formação de maioria parlamentar e, portanto, a governabilidade.

Por outro lado, dificulta a representação política das minorias ideológicas e a eleição de personalidades políticas sem maior vinculação distrital.

Por fim, o voto distrital misto é o resultado da soma dos votos proporcional e distrital, cujas vagas disponíveis nas eleições legislativas são igualmente divididas entre os dois sistemas, ao passo que o voto proporcional é dado na lista partidária de candidatos, cujo quociente eleitoral obtido favorece a ordem de inscrição desses candidatos.

Exemplificando sua aplicação, o Brasil adota o sistema do voto proporcional para as eleições legislativas da Câmara dos Deputados, das Assembleias Legislativas estaduais e das Câmaras municipais de vereadores, a França adota o sistema do voto distrital para a Assembleia Nacional e a Alemanha, o sistema do voto distrital misto para o Parlamento Federal (Bundestag).

No Brasil, embora o Senado Federal seja também órgão do Poder Legislativo, a eleição dos senadores dá-se pelo sistema do voto majoritário.

O sistema proporcional no Brasil faz com que o candidato a deputado federal dispute uma vaga para a Câmara dos Deputados no âmbito do território do Estado federado ao qual pertença eleitoralmente, uma vez que o Brasil é uma República Federativa com vários Estados federados.

Esse sistema eleitoral proporcional para as eleições legislativas provoca uma série de problemas que causam uma disfunção no sistema político brasileiro como um todo, gerando uma falta de governabilidade constante.

Primeiramente, em razão de a disputa ser travada no âmbito territorial de um Estado federado brasileiro, a campanha eleitoral torna-se muito dispendiosa, gerando escândalos como o "mensalão" e o "petrolão", que se tornaram formas criminosas de financiamento eleitoral.

Em segundo lugar, o voto proporcional para eleições legislativas brasileiras provoca uma fragmentação partidária, levando à atual configuração absurda de 35 partidos políticos.

Consequentemente, essas mazelas do sistema eleitoral proporcional para as eleições legislativas causam uma disfunção do sistema político brasileiro na figura do presidencialismo de coalizão, que é um sistema político utilizado para formar uma maioria parlamentar artificial, tendo em vista a governabilidade, comprometendo muitas vezes a promoção de políticas públicas e do desenvolvimento nacional, em favor dos interesses subalternos e corporativistas desses representantes eleitos que formam a maioria artificial.

Aliás, a propósito, a França, com o voto proporcional, foi ingovernável de 1946 a 1958, o que obrigou o general Charles de Gaulle a reassumir o poder para implementar a V República, com a aprovação da Constituição de 1958 e a adoção do voto distrital para as eleições legislativas.

A partir da adoção do voto distrital, a França deixou de ser conhecida como uma espécie de regime parlamentarista de coalizão, ou, em outras palavras, um regime de gabinetes, que era o resultado da disfunção política provocada pelo voto proporcional das eleições legislativas, o que causava permanente queda de gabinetes parlamentares por falta de uma maioria governamental consistente e ideologicamente orgânica, afetando seu desenvolvimento social e econômico.

Desde então, com o voto distrital, a França conheceu um permanente processo de desenvolvimento em todas as áreas da sociedade, graças a governos consistentes, em que a harmonia e a independência entre os poderes executivo e legislativo foram asseguradas.

É verdade que na França o sistema de voto distrital sofre críticas parciais no sentido de que não contempla minorias ideológicas, bem como dificulta as eleições de parlamentares mais afinados com as grandes questões nacionais e que sentem certa dificuldade de atuação no âmbito menor dos distritos eleitorais.

Por essas e outras razões é que o presidente Emmanuel Macron, após as eleições legislativas de 2017, assumiu o compromisso para com a nação francesa de encaminhar projeto de lei propondo certa dose de proporcionalidade no sistema distrital, talvez reconhecendo implicitamente que o melhor sistema eleitoral para eleições legislativas seja o do voto distrital misto, como adotado na Alemanha, em que o eleitor vota duas vezes, uma escolhendo o candidato do distrito eleitoral e outra na lista partidária dos candidatos pelo sistema proporcional, que se diferencia do sistema eleitoral proporcional unipessoal, em que o voto é no candidato e não na lista partidária, enfraquecendo e fragmentando os partidos políticos, como ocorre no Brasil.

De fato, é provável que o sistema do voto distrital misto adotado para as eleições legislativas pela Alemanha seja a principal razão da funcionalidade de seu sistema político e, em consequência, da sua governabilidade.

Sem dúvida, pode-se dizer que o sistema eleitoral do voto distrital misto apresenta-se como o instrumento mais apropriado para dar eficácia ao sufrágio universal, como princípio básico da democracia representativa, assim preconizado pelo grande filósofo humanista e cristão Jacques Maritain ao desenvolver seus estudos e publicações sobre filosofia política.

O Brasil passou recentemente por grande discussão sobre a reforma política após a descoberta dos escândalos de corrupção do "mensalão" e do "petrolão", formando-se o consenso em torno da necessidade da adoção do voto distrital misto para as eleições legislativas de 2022.

A adoção desse sistema eleitoral traz a esperança de que o Brasil venha a encontrar uma funcionalidade do sistema político, deixando de lado definitivamente o voto proporcional que gerou, em razão da necessidade da governabilidade, o presidencialismo de coalizão, com todas suas mazelas, como ocorreu na França, a partir de 1958, quando adotou o voto distrital, abandonando o voto proporcional para as eleições legislativas, que, por sua vez, gerou uma espécie de parlamentarismo de coalizão, de triste memória, e, assim, venha encontrar a nação brasileira a senda do desenvolvimento político, social e econômico, como a encontrou a França com a adoção do voto distrital.

A grande discussão sobre a reforma política e eleitoral por que passou recentemente o Brasil, desde o início dos movimentos de rua em meados de 2013, já possibilitou, ao menos, que fossem aprovadas para as próximas eleições legislativas de 2022 a vedação das coligações partidárias e a exigência da cláusula de desempenho eleitoral dos partidos políticos, medidas essas que implicarão certamente a redução drástica dos partidos políticos e a melhoria da representatividade dos eleitos para a Câmara dos Deputados, as Assembleias Legislativas estaduais e as Câmaras municipais de vereadores.

Mas é do conhecimento de todos que apenas essas medidas não resolverão a questão da falta de representatividade nas eleições legislativas, pois ela só ocorrerá com a reforma do sistema eleitoral legislativo, adotando-se o voto distrital misto, até porque há o entendimento de que sua adoção não implicaria reforma do texto constitucional, diferentemente do voto distrital puro.

A gravidade da questão da representatividade nas eleições legislativas, em razão da falta de governabilidade, fica manifesta com as crises políticas desde a adoção do voto proporcional pela Constituição Federal de 1946.

De fato, embora o presidente da República Jânio Quadros tenha sido eleito com expressiva votação, o voto proporcional para a Câmara dos Deputados não lhe garantiu maioria parlamentar para governar, levando-o à renúncia do mandato, o que provocou toda uma crise política com a posse do vice-presidente João Goulart, que passou a adotar posição mais à esquerda no espectro político e provocou forte reação à direita mais conservadora.

Essa crise política resultou no afastamento do presidente da República João Goulart, iniciando-se, em consequência, uma sucessão de eleições indiretas de presidentes da República com origem militar.

Os governos militares que se sucederam, em razão de formas excepcionais de governar, algumas delas contrárias aos direitos humanos, formaram uma maioria parlamentar, mesmo com o voto proporcional para as eleições legislativas da Câmara dos Deputados.

Com a redemocratização advinda com a aprovação da Constituição Federal de 1988, mas com a manutenção do voto proporcional para as eleições legislativas, todos os presidentes da República tiveram que se valer do sistema presidencialista de coalizão para governar com uma maioria artificial e precária.

Dois dos presidentes da República eleitos, Fernando Collor de Melo e Dilma Roussef, sofreram impedimento e foram destituídos dos cargos, o que demonstra a efemeridade da maioria parlamentar formada com o presidencialismo de coalizão.

O atual presidente da República eleito, Jair Bolsonaro, alentado pela expressiva votação, tentou, a princípio, governar sem se valer do presidencialismo de coalizão.

No entanto, diante do imperativo de formar uma maioria parlamentar para governar, o atual presidente da República teve que se valer do presidencialismo de coalizão com a participação dos partidos do chamado Centrão.

Por fim, para demonstrar a falta de funcionalidade do sistema político em decorrência do voto proporcional para as eleições legislativas, dificultando enormemente a governabilidade, basta comparar as consequências políticas dos movimentos de rua ocorridos em 1968 na França e em 2013 no Brasil.

Enquanto a França, por adotar o voto distrital, soube transformar em leis as reivindicações de rua em torno das questões da reforma educacional e da representação sindical nas empresas, o Brasil, por sua vez, não conseguiu transformar as reivindicações de rua a partir de 2013 em lei federal, em razão do voto proporcional que não forma uma maioria parlamentar coesa, restando latentes as frustrações coletivas com o risco institucional que ensejam.

Mas ainda há tempo para a aprovação do voto distrital misto para as eleições municipais do ano de 2020 em curso, como experiência-piloto, tomando-se por base o projeto de lei do senador paulista José Serra em tramitação no Congresso Nacional.

Seria uma experiência notável para que se aprovasse a seguir o voto distrital misto para as eleições parlamentares de 2022.

Espera-se que a reforma do sistema político brasileiro, com o fim do voto proporcional para eleições legislativas e a aprovação do voto distrital misto, possa proporcionar governabilidade em função do bem comum da sociedade.

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  • é advogado trabalhista, professor aposentado da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo, da ABDT, do IBDSCJ e presidente do Instituto Jacques Maritain do Brasil.

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