Opinião

O remédio não pode ser pior do que a doença — sobre a Lei carioca nº 8.842/20

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25 de maio de 2020, 14h05

"Positivamente, não é hora do impulso imoderado, mas do raciocínio prudente, racional e consequencialista, sob pena de a justiça, cujo o desígnio é dar a cada um o que é seu, transformar-se num paciente infectado por uma Covid que adoece a alma e a razão, ferindo de morte, a um só tempo, a vida dos que sofrem e a esperança dos que intentam viver".

O texto acima, de autoria do ministro do STF Luiz Fux ("Justiça Infectada A Hora da Prudência", Jornal O Globo 30/3/2020), dirigia-se claramente aos milhares de magistrados, quase como um alerta para que evitassem açodamento em decisões que pudessem afetar o mercado e a sociedade de modo nocivo. Alerta semelhante, aliás, efetuou o ministro João Otávio de Noronha, presidente do STJ, em webinar realizado na TV ConJur no dia 11 de maio.

Ao que parece, os "alertas" funcionaram bem, pois, ainda que através de decisões revisoras [1], o Poder Judiciário vem colaborando para manter as decisões primordiais "nas mãos" dos órgãos competentes, seja no que tange à saúde, seja no que tange à economia.

Mas, infelizmente, esse cuidado não está sendo verificado por alguns órgãos do complexo Poder Legislativo, que, conforme se verifica em reportagem da ConJur, mesmo em épocas de menor turbulência, ou seja, em condições normais, já não funcionavam (minimamente) a contento [2]. Exemplo deveras preocupante é a recente Lei nº 8.842/20, produzida pelo Estado do Rio de Janeiro, que foi considerado o campeão das leis inconstitucionais (nove em cada dez no ano de 2017 [3]).

Em apenas três artigos [4], com pouco mais de 200 palavras, o Legislativo fluminense resolveu intervir de maneira atécnica, mal escrita e, por que não dizer?, absurda no mercado de crédito, entregando ao Poder Executivo (?) a possibilidade de "suspender o pagamento" — por desconto de valores — dos empréstimos (consignados ou não).

Mas é óbvio que quando se interfere (de forma precipitada e desacertada) no sistema, as consequências não tardam a chegar.

Impulsionado pela falta de receitas, o mercado está se socorrendo do crédito para fazer frente às despesas e garantir a existência pós-pandemia. Sabe-se que não só os Poderes Executivo e Legislativo vêm tentando adotar medidas para uma travessia menos traumática dessa crise, como também há ações de credores [5] e, principalmente, instituições financeiras [6] que estão oferecendo condições especiais de pagamentos e até a suspensão de cobranças [7], demonstrando total consciência das dificuldades enfrentadas por todos.

Nessa mesma direção, há também a medida adotada pela ANBC – (Associação Nacional dos Birôs de Crédito) em conjunto com a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) que estendeu o prazo do artigo 43, §2º, do CPDC [8] de dez para 45 dias, concedendo prazo adicional para que credores, consumidores e empresas possam renegociar seus créditos

Embora sejam essas as medidas mais relevantes no tocante aos aspectos financeiros, não são as únicas, pois a cada dia surgem novas atitudes, campanhas e tentativas de se encontrar caminhos para amenizar os impactos da Covid-19.

Mesmo assim, ainda que todos (cada um dentro de suas possibilidades) se disponham a ajudar e colaborar, é utópico pensar que "tudo se resolverá" e não haverá grandes perdas. O (provável) aumento na inadimplência é tratado por Alexandre Rosa de Morais e Bárbara Guasque em recente artigo publicado:

"A pandemia e a crise econômica provocada pela quarentena impulsionaram sobremaneira a expectativa de inadimplência e o risco de crédito. Quanto maior a expectativa de inadimplência, maior será o provisionamento de perdas pelo não cumprimento das obrigações. O resultado é o aumento do spread e das taxas de juros para todas as operações de crédito. Quanto maior o risco de inadimplência, maior a necessidade de liquidez e, portanto, maior será o custo do capital e das taxas de juros exigidas pelos bancos nas operações de crédito. Dentre todos os riscos a que está exposta a atividade bancária, o risco de crédito é, sem dúvida, o de maior impacto. Ou seja, a probabilidade de não reaver o capital emprestado diante do inadimplemento das obrigações assumidas por parte do mutuário" [9].

E, não bastassem todos os riscos já existentes, agora a canetada da Assembleia Legislativa resolveu igualar todos os tomadores de crédito e seus instrumentos contratuais, decretando uma moratória de 120 dias.

Por meio desse torto juízo de valor, as instituições financeiras, que precisam remunerar seus depositantes e investidores (donos do capital emprestado), ficarão quatro meses sem as receitas dos empréstimos (consignados ou não), ainda que os tomadores de crédito estejam recebendo suas remunerações de forma integral, como por exemplo está ocorrendo com os nobres deputados e, também, os funcionários públicos estaduais e municipais.

Medidas como essas causarão, num primeiro momento, a retração (empoçamento de recursos por falta de "apetite ao risco" por parte dos concedentes) e, no momento seguinte, o aumento na taxa de juros [10].

Conclusão
Essa Lei 8.842/20 é, sem dúvida, uma péssima tentativa de superar os efeitos econômicos da pandemia [11]. A interferência indevida, talvez de cunho eleitoreiro, em matérias que fogem de sua competência e que deveriam ser tratadas por políticas monetárias via Poder Executivo e Banco Central contribuem para aumentar ainda mais o risco de crédito, provocando consequências negativas no mercado de crédito e na economia nacional.

Sob pena de graves danos (justamente) àqueles que se quer proteger, ou seja, os tomadores de crédito, aguarda-se, então, o chamamento do Poder Judiciário para, mais uma vez, declarar a inconstitucionalidade de legislações que, como se disse no título, "matam os doentes".

 


[1] "Nesse sentido, impõe-se ressaltar que a interferência do Poder Judiciário deve ser pautada por critérios de cautela e prudência invulgares, que não aprofundem a tensão entre os elaboradores e executores de políticas públicas, tampouco desequilibrem a repartição das competências constitucionais concretizadas por normas e atos materiais efetivadores das políticas necessárias a manter os serviços públicos em funcionamento durante à pandemia". (TRF3 – Gabinete da Presidência, Suspensão de Liminar nos autos nº 5008282-19.2020.4.03.0000, j. 14/04/2020);

"Nessa perspectiva, o enfrentamento da crise econômico-financeira severa causada pela pandemia exige que sejam observadas, em princípio, as ações adotadas pelo Banco Central do Brasil, órgão dotado de capacidade técnica para implementar as medidas de alcance macroeconômico que se revelarem eficazes nesse contexto, com intervenção apenas excepcional do Poder Judiciário. (…) Isso mostra que o SFN tem cumprido seu papel de intermediação financeira e a importância da atuação do Banco Central no fornecimento de liquidez para o SFN, visando à manutenção do normal funcionamento dos mercados". Além da possibilidade de lesão grave à economia pública, decorrente da interferência do Judiciário na liquidez do sistema financeiro, na oferta de crédito e no limite das taxas de juros praticadas no mercado, a tutela de urgência pode, ainda, produzir efeito contrário ao de fomento do crédito produtivo. Isso porque "sem acesso à liquidez necessária, a renegociação ou rolagem de créditos bancários existentes, por exemplo, podem ser prejudicadas e outros mercados importantes para o financiamento do setor produtivo, a exemplo do mercado de capitais, podem ser contagiados". (…) (TRF1 – Gabinete da Presidência, Des. Italo Fioravante Sabo Mendes, Suspensão de Liminar nos autos nº 1010248-42.2020.4.01.0000, j. 22/04/2020);

"(…) Inegáveis os prejuízos aos empresários decorrentes da paralisação das atividades por ordem da autoridade administrativa. Todavia, considerando a solenidade e formalidade do protesto, sendo ato pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida, e o objetivo final das sociedades representadas pela autora, qual seja, a obtenção de empréstimos bancários emergenciais sem os entraves decorrentes do eventual registro de protestos (minimização ou supressão do risco para obtenção de crédito bancário), a tutela jurisdicional não pode ser tão lesiva e tão abrangente ao ponto de criar riscos sistêmicos que superam os efeitos deletérios da própria interrupção das atividades empresariais. (…) A suspensão irrestrita dos registros de protesto, da forma que foi concedida em provimento liminar, genericamente, poderá beneficiar sociedades empresárias que sequer tiveram redução substancial em seu faturamento, ou seja, as que tiveram incremento da atividade pelo serviço de entregas. Ademais, a cobrança judicial dos débitos não foi obstada, de modo que, para evitar prejuízos – inadimplemento deliberado com fundamento nos efeitos da pandemia e má-fé no descumprimento de obrigações – é recomendável que as situações excepcionais sejam analisadas de forma individualizada, observadas as peculiaridades de cada caso em concreto. Nessa toada, num juízo de cognição sumária, portanto, não vislumbro a plausibilidade do direito a justificar a manutenção da decisão agravada". (TJDF – 6ª Turma Cível, Agravo nº 0708677-11.2020.8.07.0000, Rel. Des. José Divino de Oliveira, j. 16/04/2020)

[2] https://www.conjur.com.br/2018-mai-02/oito-cada-dez-leis-foram-julgadas-inconstitucionais-stf

[3] Idem

[4] Lei 8.842/20 – Artigo 1º – Fica autorizado o Poder Executivo a suspender pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias os descontos das mensalidades dos empréstimos celebrados e de empréstimos consignados. § 1º- Fica vedada a posterior incidência de juros, multa ou qualquer forma de atualização, enquanto perdurar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia provocada pelo Corona Vírus (COVID-19), estabelecido no Decreto nº 46.984, de 20 de março de 2020. § 2º- Nenhum contratante de empréstimo, mencionado no caput do artigo 1º poderá ter o nome inserido nos sistemas de proteção ao crédito em função da suspensão dos pagamentos que se refere o caput deste artigo. § 3º- A presente Lei não se aplica aos descontos sindicais que sejam realizados através do sistema de consignação. Artigo 2º – Os contratos dos empréstimos consignados ficam automaticamente prorrogados pelo período mencionado no artigo primeiro. Parágrafo Único -A suspensão e a posterior prorrogação dos contratos de empréstimo de que trata a presente Lei, não ensejará acréscimos de juros, multa, correção monetária ou qualquer outro acréscimo no valor da parcela. Artigo 3º – Esta Lei entrará em vigor na data da sua publicação.

 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/santander-anuncia-prorrogacao-automatica-para-tirar-cliente-da- inadimplencia-no-coronavirus.shtml

 https://emtempo.com.br/economia/194580/Covid-19-principais-bancos-prorrogam-cobrancas-por-60-dias

[6] Ressalta-se que na entrevista do Sr. Cândido Bracher, Presidente do Itaú Unibanco, ao "Valor", veiculada no Youtube (https://m.youtube.com/watch?v=zgMGdz0yFSM&feature=youtu.be), foi mencionado que o número de empréstimos nos meses de março e abril foi 80% (oitenta por cento) maior do que no mesmo período do ano passado.

[7] A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) divulgou que cinco de seus maiores bancos associados vão atender ao pedido de prorrogação do vencimento de dívidas por até 60 dias, concedido às pessoas físicas e empresas de pequeno porte que estejam em dia com os seus pagamentos. (Ricardo Kalil Lage: Responsabilidade social dos bancos privados na crise do coronavírus, colhido do site Migalhas em 25/4/2020 – https://m.migalhas.com.br/depeso/324123/responsabilidade-social-dos-bancos-privados-na-crise-do-coronavirus)

 

[8] CPDC — Artigo 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no artigo 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes. (…) § 2° A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

[9] Alexandre Morais da Rosa e Bárbara Guasque: As decisões judiciais e a tragédia do mercado de crédito em tempos de pandemia., colhido do site MIGALHAS em 27 de abril de 2020: https://www.migalhas.com.br/depeso/325572/as-decisoes-judiciais-e-a-tragedia-do-mercado-de-credito-em-tempos-de-pandemia

[10] "…a incerteza jurídica no mercado de crédito impinge tanto a escassez do crédito, como o aumento nos spreads bancários. Duas variáveis de enorme relevo para o desenvolvimento de qualquer atividade comercial. Logo, o favoritismo pró-devedor, com o intento de justiça social, acaba por, no mais das vezes, agravar os problemas que pretende corrigir" (Alexandre Morais da Rosa e Bárbara Guasque: op. cit., https://www.migalhas.com.br/depeso/325572/as-decisoes-judiciais-e-a-tragedia-do-mercado-de-credito-em-tempos-de-pandemia)

[11] Outras pautas extremamente nocivas ao sistema e que estão tramitando (hoje, 22/5/2020) no Congresso Nacional, são: PL 1328/2020 que suspende por 120 dias o pagamento das parcelas mensais do empréstimo consignado, incluindo para os servidores e aposentados que não tiveram redução de salário (esses últimos representam R$ 370 bilhões de um total de R$ 393 bilhões); PL 911/2020 que aumenta a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) dos bancos de 20% para 50% (levando a uma das maiores alíquotas do país e do mundo); PL 1116/2020 que fixa um teto de 20% ao ano para as taxas de juros do cheque especial e congela os limites de crédito; PL 675/2020 que proíbe aos bancos negativar o cliente que parou de pagar, devendo suspender as execuções judiciais cíveis propostas contra consumidores, retroativo a 1º de janeiro 2020, anterior à pandemia no Brasil.

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