Opinião

Como ficam o empenho e a liquidação da despesa no pagamento antecipado?

Autores

  • Rodrigo Luís Kanayama

    é doutor em Direito do Estado pela UFPR professor do Departamento de Direito Público da UFPR e advogado em Curitiba.

  • Thiago Lima Breus

    é advogado sócio do escritório Vernalha Guimarães e Pereira Advogados professor adjunto de Estado Direito e Administração Pública da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutor e mestre em Direito do Estado.

25 de maio de 2020, 6h02

No Brasil, a execução das despesas públicas é vinculada por lei e ocorre por fases: empenho, liquidação e ordem de pagamento. Na prática, a administração pública promove o processo licitatório (ou justifica a dispensa ou inexigibilidade), celebra (ou não) o contrato administrativo e, na sequência, pratica o ato de empenho.

Empenhar, em tese, é reservar a respectiva dotação orçamentária para futuro pagamento ao credor (fornecedor do bem ou prestador de serviço). O artigo 58 da Lei 4.320/64 define empenho como ato que "cria para Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição". A finalidade do empenho é dar ordem às finanças do Poder Público, organizando-as para que, no futuro, o orçamento público permaneça nos limites aprovados pelo Poder Legislativo.

Por força da Covid-19, foi editada a Medida Provisória 961, de 6 de maio de 2020, aplicável "aos atos realizados durante o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020" (artigo 2º, Medida Provisória 961). Entre outras normas, estabelece o pagamento antecipado nas licitações e nos contratos pela Administração, obedecidas algumas condições para a mitigação do risco de inadimplemento contratual, o qual, se superveniente, ensejará a devolução integral pelo particular do valor a ele antecipado pelo poder público.

Entre as medidas de cautela, destacam-se: I) a comprovação da execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente; II) a prestação de garantia de até trinta por cento do valor do objeto pelo contratado; III) a emissão de título de crédito pelo contratado; IV) o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração; e V) a exigência de certificação do produto ou do fornecedor.

Observadas as condições acima e demonstrado que o pagamento antecipado representa: I) condição indispensável para obter o bem ou a prestação do serviço; ou II) que ele propicie significativa economia de recursos, ele poderá ser utilizado, com sua previsão expressa no edital ou no instrumento formal de adjudicação.

Embora não expressamente reguladas pela Medida Provisória 961, observamos que as fases da execução da despesa pública foram ligeiramente alteradas enquanto perdurar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo 6/2020 e para os casos por ela abrangidos.

A dúvida que surge é quanto: I) ao empenho; e II) à liquidação da despesa. À primeira leitura da medida provisória, parecem ser exigidos apenas o processo licitatório (ou sua dispensa) e o imediato pagamento do credor, dispensando-se o ato de empenho e a liquidação. Não nos parece, porém, a interpretação mais adequada à luz do conjunto de normas, constitucionais e legais, que disciplinam a execução da despesa pública.

Como dissemos acima, o ato de empenho tem como função a reserva da dotação orçamentária, visando a preservar o crédito para futuro pagamento ao credor, após regular liquidação. Como ele constitui expediente fundamental para o correto funcionamento do orçamento público e porque todas as despesas públicas devem ser autorizadas por leis orçamentárias , é correto afirmar que o empenho continua imprescindível.

Uma despesa pública "antecipada" sem o devido empenho representa a ausência de correspondência no orçamento público, na contabilidade pública e, eventualmente, na prestação de contas. Ademais, não há regra de exceção à Lei 4.320/64, que estabelece, em seu artigo 60, que "é vedada a realização de despesa sem prévio empenho", norma repetida no artigo 24 do Decreto 93.872/86 (este, só para a União).

Quanto à segunda fase da execução da despesa pública, que é a liquidação, a Medida Provisória 961 trouxe pontual regime de exceção embora a antecipação se assemelhe com "suprimento de fundos" [1], mas a restringiu para uso somente quando a antecipação de pagamento contratual for vantajosa à Administração Pública [2].

Em regra, sobrevirá a liquidação da despesa pois o "pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação".

O artigo 63 da Lei 4.320/64 prevê que a "liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito". A finalidade é determinar a origem, o objeto, o valor e o credor do crédito (§1º) e será fundada no contrato, na nota de empenho, e nos "comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço" (inciso III, §2º, artigo 63 da Lei 4.320/64).

Durante a vigência do Decreto Legislativo 6/2020 (durante o estado de calamidade pública da Covid-19), será possível realizar o pagamento após liquidação, mesmo sem a entrega do material e antes da prestação do serviço, desde que a liquidação se baseie no contrato, na nota de empenho ou em estudos fundamentados que comprovem sua real necessidade ou economicidade para a Administração, além de, obviamente, terem sido cumpridos os demais requisitos da medida provisória.

No período excepcional em que vivemos, a autorização legal para o pagamento antecipado pelo poder público aproxima a realização da despesa pública à prática comercial privada. No entanto, ela não significa a supressão das fases da execução da despesa pública, muito menos liberação para a realização de gastos indevidos.

 


[1] Conferir: artigo 68, Lei 4.320/64; artigo 45 e ss., Decreto 93.872/86; Manual do SIAFI (suprimento de fundos).

[2] Conferir: Lei 8.666/93, artigo 40, XIV, “d”; Decreto 93.872/86, artigo 38; TCU, acórdão 1826/2017, Plenário, Representação, Rel. Ministro Vital do Rêgo.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Kanayama Advocacia, professor da Faculdade de Direito da UFPR, membro-fundador do Centro de Estudos da Constituição (CCONS/UFPR) e membro do Núcleo de Direito e Política (DIRPOL/UFPR).

  • é advogado, sócio do escritório Vernalha Guimarães e Pereira Advogados, professor adjunto de Estado, Direito e Administração Pública da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutor e mestre em Direito do Estado.

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