Opinião

MP 966 não representa um obstáculo à punição de gestores desonestos

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25 de maio de 2020, 20h03

Foi publicada no último dia 14 a Medida Provisória nº 966/2020, que trata da responsabilidade de gestores em relação a atos praticados durante o período de pandemia da Covid-19. Inicialmente, merece ser objeto de reflexão a moldura na qual as novas normas foram encaixadas.

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Nos termos do artigo 62 da Constituição Federal, somente em casos de relevância e urgência devem ser editadas medidas provisórias. Não se deve confundir a emergência quanto ao enfrentamento da pandemia com a eventual urgência na edição de normas que tratem da responsabilização dos agentes públicos nesse período, de forma que, até mesmo em decorrência do período atípico ora enfrentado e do lapso temporal de tramitação dos processos brasileiros, por certo, há questões mais emergenciais do que as veiculadas na Medida Provisória nº 966/2020, o que atrai uma sombra de inconstitucionalidade cuja análise deve ser aprofundada.

Quanto ao conteúdo, em suma, o artigo 1º da MP preceitua que: "Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de enfrentamento da atual pandemia nas searas econômica, social e de saúde".

Algumas vozes verberam que o diploma normativo em referência livraria agentes públicos de punição em casos de atos ilícitos ou de erros na execução de medidas de combate às mazelas da pandemia.

Todavia, com o óbvio respeito a entendimentos divergentes, a norma não parece representar grande inovação no nosso ordenamento jurídico.

É que, já em 2018, a Lei nº 13.655 introduziu o artigo 28 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), passando a determinar que "o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro".

Deveras, a necessidade de responsabilização apenas no caso de erro grosseiro ou dolo já estava, pois, prevista em nosso ordenamento jurídico. A MP em apreço aparenta constituir mais uma norma interpretativa do que modificadora de direitos.

Desde a introdução do artigo 28 à LINDB, surgiram inúmeras dúvidas quanto ao seu âmbito de incidência. Agora, a MP nº 966/2018 traz parâmetros, conquanto também indeterminados, um tanto mais assertivos sobre ao tema, vez que intenta, em seu artigo 2º, definir o "erro grosseiro" e, em seu artigo 3º, apontar circunstâncias a serem consideradas quando da aferição de tal requisito.

A bem da verdade, o artigo 28 da LINDB poderia ser considerado até mais abrangente do que a nova medida provisória, pois aquele não trouxe norte interpretativo para concretização do denominado "erro grosseiro", precisando-se buscar, na doutrina, o balizamento hermenêutico.

Colacionamos, nesse sentido, a conhecida lição do professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, para quem "culpa grave é caracterizada por uma conduta em que há uma imprudência ou imperícia extraordinária e inescusável, que consiste na omissão de um grau mínimo e elementar de diligência que todos observam" (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. São Paulo: Atlas, p. 169).

Ainda nessa trilha, o Superior Tribunal de Justiça possui firme jurisprudência no sentido de que "a Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé" (REsp 1819704/MG, ministro Herman Benjamin, DJe 11/10/2019).

O fato é que, aparentemente, e em análise rápida, a nova medida provisória não parece representar salvo-conduto a eventuais gestores desonestos, infratores, corruptos.

Não é juridicamente sensato que se pretenda condenar alguém por inabilidade, mormente em período instável e atípico, que exige decisões firmes e rápidas, o que constitui, por certo, questão diversa da malfadada corrupção.

Noutro turno, e tratando especificamente do período atípico que vivenciamos, será possível apreciar, em processo que obedeça às garantias constitucionais, se o gestor atuou com irresponsabilidade frente à realidade atual, desrespeitando parâmetros básicos de enfrentamento à pandemia e quais as consequências dos seus atos, seja no campo econômico, social ou da saúde.

Os órgãos de controle e o Judiciário não possuem a função de, necessariamente, buscar condenação ou condenar, mas de analisar os fatos à luz das normas vigentes e, ao cabo, se restar comprovada a perpetração de ato ilegal, aplicar as sanções pertinentes. Ao revés, não restando comprovado o ato desonesto, eivado de má-fé, ou o erro grave, não pode haver condenação, ainda que se trate de decisão contramajoritária.

A corrupção nunca foi e nunca será "erro grosseiro", independentemente da definição que se pretenda empregar a referido conceito indeterminado. Cabe aos juristas e, notadamente, em processos judiciais, aos magistrados conferir a interpretação adequada às novas disposições legais, de sorte que a medida provisória em exame, de per si, além de não representar destacada novidade, não parece ensejar obstáculo à punição de gestores desonestos.

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