Direito Civil Atual

Presidente deve sancionar Projeto de Lei 1.179 antes que seja tarde

Autores

  • Adroaldo Agner Rosa Neto

    é mestrando em Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação em Direito da UFPR; membro efetivo do Instituto dos Advogados do Paraná; e advogado sócio do PX Advogados.

  • Marina Amari

    é advogada integrante do escritório Assis Gonçalves Kloss Neto Advogados Associados e mestranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.

25 de maio de 2020, 11h35

Nas noites escuras e de águas revoltas, os faróis ajudam a navegação. Não só neste tempo de incertezas trazidas pela Covid-19, a coluna Direito Civil Atual, mantida pela prestigiosa Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, é guia seguro no qual os estudiosos e operadores podem orientar-se pelos mares do Direito. Outras luzes, todavia, são igualmente bem-vindas. A aprovação de uma legislação emergencial dispondo sobre as relações de Direito Privado é uma delas.

A lei é ato de maior importância no Estado Democrático de Direito. Sendo fruto, por excelência, da decisão política e produzida mediante procedimento constitucional qualificado, desempenha função de regulamentação fundamental. Propicia à sociedade modelos de conduta para que seus integrantes se orientem na concretização de seus interesses1. E mesmo que se tenha superado o paradigma Iluminista, assentado no postulado de que leis boas fazem sociedades boas2, a função ordenadora da legislação, revista, permanece, mormente do Direito Privado. Isso porque seus atores “têm necessidade de diretrizes relativamente estáveis e precisas que lhes permitam conhecer e antecipar, com um grau razoável de certeza, os comportamentos dos outros atores sociais ou ligados ao Estado”3.

A tarefa do Legislador, delicada por si só, foi comparada por Victor Nunes Leal ao acondicionamento de explosivos. “As consequências da imprevisão e da imperícia não serão tão espetaculares, e quase sempre só de modo indireto atingirão o manipulador, mas podem causar danos irreparáveis”4. Some-se a ela a complexidade da vida moderna, exigindo respostas rápidas e eficazes do Poder Legislativo às vicissitudes que se apresentam.5

O momento atual é exemplo disso. A crise em vários aspectos da vida de relação, gerada pela pandemia da Covid-19, demanda atuação dos três Poderes. A incerteza atinge as relações privadas e o Legislador vê-se chamado a atuar. No estrangeiro, é o caso da Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht6, já vigente na Alemanha, regulamentando temas como insolvência, contratos, permanência de dirigentes em associações e fundações, e locações. No Brasil, dentre outros, destaca-se o Projeto de Lei 1.179/20207, abrangendo normas de Direito Civil, Direito do Consumidor, Direito Agrário, Direito Societário e Concorrencial.

Porém, é preciso se perguntar: o Projeto de Lei 1.179/2020 é adequado sob o ponto de vista da boa técnica legislativa? Quer crer-se que sim.

A análise é pertinente. A confluência dos fatores inicialmente apontados formam ambiente fértil para gerar leis deficientes. Falta de reflexão e pressa em atender os reclamos sociais potencializam o risco. Em tempos de normalidade, vícios de assistematicidade, incongruência, falta de apuro técnico e linguístico já são frequentes8. Pensando apenas no Direito Privado brasileiro, citem-se a inserção do “direito de laje” no Código Civil, criando um “direito-possibilidade”9 na sistemática dos direito reais, e a Lei do Distrato, confundindo conceitos e criando uma “mora à brasileira”10, dentre outros exemplos recentes11. Problemas como esses dificultam o manejo da legislação e, por força de consequência, não suprem as necessidades de previsibilidade e estabilidade em razão das quais foram criadas.

Decorrência disso é a preocupação com a boa técnica legislativa. A questão não é nova, Montesquieu, no De l’espirit des lois12, e Bentham, no Nomography: or the art of inditing laws13, se ocuparam da temática. Entre nós, parece ter sido pioneira a conferência de Aurelino Leal no Instituto dos Advogados Brasileiros14, no início do século passado, seguida por outros estudos especializados15. O problema recebeu assento constitucional com o art. 59, par. único, da Constituição da República de 1988 que determinou a edição de lei complementar sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação de leis. O mandamento foi consolidado na importante Lei Complementar n.º 95/1998. Contemporaneamente, a matéria ganha refinamento na seara da Legística16.

Para além das disposições do Diploma n.º 95/1998, não se verifica uma unidade entre os autores acerca dos requisitos de uma “boa lei”. Todavia, algumas diretrizes são comuns: redação direta, concisa17, dosando a terminologia técnica com a linguagem comum18; o cuidado sistemático, zelando pela coerência e harmonia interna e externa de suas disposições19; a atenção para o conflito de leis no tempo20 e a participação de especialistas, principalmente juristas, em sua elaboração. Sobre este último aspecto, há interessante passagem de Victor Nunes Leal: “[é] aconselhável a incumbência da redação das leis a juristas que, além de sólida cultura, tenham muito tirocínio na aplicação do direito, quer como advogados, quer como juízes, e que sejam homens de mentalidade receptiva, de alma aberta para as transformações do mundo”21.

O Projeto de Lei 1.179/2020 observa todos esses parâmetros.

Antes de tudo, trata-se de iniciativa necessária. As suas disposições respondem às mais urgentes questões enfrentadas nas relações entre privados neste momento de incerteza. O Projeto equilibra a rapidez na elaboração ━ entre o reconhecimento do estado de calamidade pública, em 20 de março, e a apresentação do projeto no Senado Federal, em 30 de março, passaram-se dez dias ━ com o apuro da técnica legislativa. Redigido de maneira clara, direta e concisa, o Projeto alinha-se com o sistema de Direito Privado que pretende regulamentar. Não altera seus elementos. De mais a mais, segue o espírito de nosso tempo que está revalorizando a livre iniciativa e a obrigatoriedade dos contratos, como na recente Lei da Liberdade Econômica. Sem se falar no grupo de juristas notáveis que colaborou com sua elaboração22. Liderada pelo Min. Dias Toffoli, teve coordenação técnica do Min. Antonio Carlos Ferreira e do Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr., em equipe composta pelos Professores Rodrigo Xavier Leonardo, Rafael Peteffi da Silva, José Manoel Arruda Alvim, Fernando Campos Scaff, Paula Forgioni, Marcelo von Adamek e Francisco Satyro, além dos advogados Roberta Rangel e Gabriel Nogueira Dias.

A auto delimitação de sua eficácia no tempo, instituindo como termo inicial do regime de emergência o dia 20 de março e final o dia 30 de outubro de 2020, amolda-se à transitoriedade da situação enquanto mantém coerência interna e externa. Não intervém em situações jurídicas consolidadas e evita oportunismos daqueles que almejam, sob o pretexto da pandemia, beneficiar-se. De um lado, por exemplo, exclui das hipóteses de força maior e caso fortuito os acontecimentos ocorridos antes do dia 20 de março. E, de outro lado, procura resguardar o direito daqueles prejudicados pela crise, suspendendo, interrompendo ou dilatando, conforme o caso, os prazos prescricionais, decadenciais, da aquisição da usucapião e do abertura e término de inventários. A importância da medida fica facilmente visível quando se pensa nos prazos para reclamação de vícios aparentes, estabelecidos no art. 26, inciso I e II, do Código de Defesa do Consumidor.

Outro exemplo de preocupação sistemática é o tratamento dado às reuniões assembleares, incluídas as condominiais. Realizadas no primeiro semestre do exercício financeiro por disposição legal, a exemplo das sociedades anônimas – art. 132 da Lei nº 6.404/76, prevê-se que poderão se dar por meio eletrônico.

Na mesma linha caminham as previsões sobre revisão, resolução e resilição contratual. A organicidade reflete-se, mais uma vez, na positivação de entendimentos jurisprudenciais e de interpretações sistemáticas da própria legislação vigente. O Projeto prioriza o conteúdo contratual originalmente programado, com a mínima intervenção possível do Poder Judiciário, sem descurar dos impactos da crise na economia e, consequentemente, nos contratos. No art. 7º, caput, foi consagrado o sólido posicionamento dos tribunais de não considerar fatos imprevisíveis “o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário”. Reforça-se que a questão inflacionária, problema histórico brasileiro, não caracteriza motivo para revisão e/ou resolução, focando as discussões nas reverberações próprias da pandemia na base contratual. Igualmente, quando o §1º do mesmo artigo determina que as regras de revisão contratual inscritas no Código Civil não se aplicam aos contratos de consumo e de locação, respeitam-se as soluções de cada diploma para as relações específicas que regem.

Ainda dentro do tema contratual, ganha destaque a proposta trazida no âmbito das locações. Frente às dificuldades econômicas de boa parte da população, o Projeto impede a concessão de liminares em ações de despejo ajuizadas depois de 20 de março, até o final do ano de 2020, na maioria das hipóteses do art. 59, da Lei de Locações. Assegura-se, assim, não só o direito de moradia nesse período conturbado, como atende-se à razões de ordem sanitária ao impedir o contato inevitável entre pessoas no ato de cumprimento da ordem e a possível ocorrência de desabrigados durante o isolamento social.

A preocupação sanitária também é vista em outros dispositivos. Como no art. 11, ao impor aos síndicos de condomínios edilícios que restrinjam festividades, proibindo-se, inclusive, o uso das áreas comuns. E no art. 15, estabelecendo o cumprimento da prisão por dívida de alimentos na modalidade domiciliar.

Como medida de ordem prática, pensando na paralisação gradual do comércio, o projeto determinou que fosse suspenso o prazo para exercício do direito de arrependimento, de 7 dias, de vendas por delivery, em caso de fornecimento de produtos perecíveis, de consumo imediato e medicamentos. Impede-se que paire sobre os comerciantes a incerteza da consolidação contratual nessa modalidade de vendas, tão utilizada no período, principalmente para produtos alimentícios e medicamentos.

Com essas breves considerações, tem-se clara a observância da boa técnica legislativa pelo Projeto de Lei 1.179/2020. Não só do ponto de vista formal como material. Consolida-se como proposta adequada a um período tão imprevisível como o que se vive. Quando aprovado, trará previsibilidade e, consequentemente, segurança jurídica para um contexto de múltiplos posicionamentos nos tribunais, acionados pelas variadas demandas originadas pela pandemia. Mais: é régua segura não só para o período atual, mas pode contribuir com o desenvolvimento do Direito nacional, pois, citando Victor Nunes Leal novamente, a boa técnica legislativa “contribui para elevar o nível da cultura jurídica, redundando, pois, num elemento de formação ou aperfeiçoamento daquela condição primária (cultura jurídica) que cada povo precisa possuir para ter boas leis”2324.

Todos esses motivos tornam absolutamente impreterível a sanção pela Presidência da República. Para que serviria uma lei que se propõe reger as relações durante a pandemia, de forma tecnicamente adequada, adotada depois dela?

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 SILVA, José Afonso da. O Estado Democrático de Direito. In: Revista de direito administrativo, v. 173, jul./set. 1988, p. 23.

2 FLÜCKIGER, Alexandre; DELLEY, Jean-Daniel. A elaboração racional do direito privado: da codificação à legística. In: Cadernos da escola do legislativo, Belo Horizonte, v. 9, n. 14, jan./dez. 2007, p. 55

3 MADER, Luzius. Legislação e jurisprudência. In: Cadernos da escola do legislativo, Belo Horizonte, v. 9, n. 14, jan./dez. 2007, p. 196.

4 NUNES LEAL, Victor. Problemas de técnica legislativa. In: Revista de direito administrativo, v. 2, n.1, 1945, p. 430.

5 MENDES, Gilmar Ferreira. Questões fundamentais de técnicas legislativa. In: Cadernos de direito constitucional e ciência política, v. 01, n. 02, jan./mar. 1993, p. 37.

6 A versão em inglês da lei está disponível em <https://www.bmjv.de/SharedDocs/Gesetzgebungsverfahren/Dokumente/Bgbl_Corona-Pandemie_EN.pdf;jsessionid=888A0914BA9B45BCE009DBD7753CA27B.1_cid289?__blob=publicationFile&v=2>. Acesso em 09/05/2020.

7 A presente análise foi baseada no Projeto enviado à Câmara. Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=A0277E0D593D3E2A0B10FF11C3AFA773.proposicoesWebExterno1?codteor=1880267&filename=Tramitacao-PL+1179/2020>. Acesso em 10/05/2020.

8 MENDES, ob. cit., p. 37.

9 O termo é de Otavio Luiz Rodrigues Jr.: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Retrospectiva 2016: um ano longo demais e seus impactos no direito civil contemporâneo. In: Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-dez-26/retrospectiva-2016-ano-longo-impactos-direito-civil-contemporaneo>. Acesso em 09/05/2020.

10 Outra vez, a feliz expressão é de Otavio Luiz Rodrigues Jr.: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Retrospectiva 2018: leis, livros e efemérides do direito civil. In: Revista Consultor Jurídico. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-jan-02/retrospectiva-2018-leis-livros-efemerides-direito-civil>. Acesso em 09/05/2020.

11 Importante frisar que não se está a criticar a escolha dos valores reputados como merecedores de tutela, mas sim as vestes normativas que assumiram, em razão da má técnica legislativa, das quais derivam problemas na dimensão funcional.

12 Consultamos MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Apresentação de Renato Janine Ribeiro. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

13 Consultamos BENTHAM, Jeremy. Nomography: or the art of inditing laws. In: BOWRING, John (org.). The works of Jeremy Bentham – v. 3. Edinburgh: William Tait, 1843, p. 231-296.

14 Publicado como LEAL, Aureliano. Technica constitucional brazileira. Rio de Janeiro: Typographia do Jornal do Commercio, 1914.

15 Além do já citado trabalho de Victor Nunes Leal, é referência constante na bibliografia consultada o livro de Hésio Fernandes Pinheiro: Técnica legislativa e as constituições e leis institucionais do Brasil. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1945. Listagem de obras sobre o tema foi feita, na década de 1980, pelo professor da Faculdade de Direito de Recife, Pinto Ribeiro: Técnica legislativa como a arte de redigir leis. In: Revista de informação legislativa, a. 23, n. 89, jan./mar. 1986, p. 169 e ss. Já sob o advento da Lei Complementar n.º 95/1998 veja-se: FREIRE, Natália de Miranda. Técnica e processo legislativo: comentários à lei complementar n. 95/98. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

16 LAURENTIS, Lucas de; DIAS, Roberto. A qualidade legislativa no direito brasileiro: teoria, vícios e análise do caso do RDC. In: Revista de informação legislativa, a. 52, n. 208, out./dez. 2015, p. 167 e ss.

17 MONTESQUIEU, ob. cit., p. 611; LEAL, ob. cit., p. 4.

18 NUNES LEAL, ob. cit., p. 42-443.

19 MENDES, ob. cit., p. 39.

20 NUNES LEAL, ob. cit., p. 446.

21 NUNES LEAL, ob. cit., p. 439.

22 A participação de juristas reconhecidos, principalmente de doutrinadores, na elaboração de grandes marcos legislativos faz parte de nossa cultura. É histórica a justificação, pelo Ministro da Justiça Epitácio Pessoa, da escolha de Clóvis Beviláqua para elaborar o Projeto do que viria a ser o Código Civil de 1916: “O Dr. Clóvis Beviláqua estava como que naturalmente indicado para a grandiosa empreza, não só como um de nossos mais profundos jurisconsultos, mas também por já haver desenvolvido, em eminentes obras de doutrina – o Direito da Família, o Direito das Obrigações, o Direito das Sucessões – quasi todo o Direito Civil” (in: Código civil brasileiro: trabalhos relativos à sua elaboração – v. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917, p. 651).

23 NUNES LEAL, ob. cit., p. 436.

24 É o que se dá, por exemplo, atualmente na China, já que no início dos anos 2000, o país suportou o surto da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV) e criou, à época, soluções temporárias que tendem a se repetir na atualidade. ALMEIDA, Luis Felipe Rasmuss de; RODRIGUES JR, Otávio Luiz. O direito contratual chinês em face da pandemia de Covid-19. In: Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-09/direito-civil-atual-direito-contratual-chines-face-pandemia-covid-19>. Acesso em: 09/05/2020.

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