Opinião

Monitoramento estatal é uma afronta ao direito de ir e vir

Autor

  • Eduardo Saldanha

    é professor de Direito Internacional e Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e pós-doutor em Direito Internacional.

24 de maio de 2020, 11h05

Vivemos tempos de vigilância constante, mas é necessário impedir que ela se torne pervasiva, que busque infiltração e espalhamento como se fosse natural, tornando-se instrumento nocivo à sociedade livre que tanto buscamos proteger.

A utilização da tecnologia de monitoramento de celulares afeta diretamente uma das grandes encruzilhadas do Direito: garantir a liberdade com medidas que necessariamente privem de liberdade, vez que a limitação de liberdade é o grande instrumental do Direito para permitir que sejamos verdadeiramente indivíduos inseridos em uma coletividade.

A medida de monitoramento invade também a privacidade individual e afronta o direito de ir e vir, sendo uma iniciativa que exerce controle social e restrições policialescas à liberdade, afrontas essas que o discurso político tende a travestir em bem comum, retórica muito facilitada pelo sentimento de medo.

Não vivemos em estado de sítio (descrito no artigo 137 da Constituição), o qual investiria ao Executivo o poder para adoção de medidas excepcionais e gravosas à liberdade, como restrições ao direito de ir e vir e flexibilização do direito à privacidade. Para que o estado de sítio possa ser adotado, é preciso que se decrete primeiro o estado de defesa, algo que não cabe a prefeitos ou governadores, mas tão somente ao presidente da República. Tal previsão constitucional inviabiliza a adoção de medidas restritivas de direitos por parte dos estados e municípios, o que configuraria evidente abuso de autoridade no caso de adoção de meios para o monitoramento de celulares.

A própria Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu artigo 11, estabelece que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência; ela determina ainda que toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências. Não podemos ser levados a crer que este momento extraordinário possa justificar medidas que normalmente não seriam justificáveis em tempos de tranquilidade.

A ausência de transparência por parte do aparato estatal na adoção de medidas restritivas à liberdade, efetivadas no afogadilho que a crise induz, pode levar a uma escalada de violação de direitos de privacidade sem que os indivíduos percebam a sua extensão e consequências, vez que não se protege pessoas das violações aos seus direitos à privacidade sem que haja transparência quanto aos mecanismos adotados. O risco está no fato de o Estado, como aparato, tender a ser um labirinto tão grande que mascare a própria obrigação constitucional de transparência. Não se combate aquilo que não se sabe que está acontecendo.

Todo e qualquer aumento na vigilância estatal sobre o indivíduo deve ser transparente e de vida curta, sendo ainda necessário que sejam traçados limites legais sobre o tratamento e armazenamento dos dados coletados, pois medidas com nuances autoritárias travestidas de medidas para promover o bem comum podem estar sendo adotadas sem o devido escrutínio social e previsão legal, instalando-se um estado de exceção incompatível com o momento em que vivemos. Devemos ter em perspectiva que direitos que perdemos raramente são recuperados da mesma forma como existiam antes.

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Internacional e Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e pós-doutor em Direito Internacional.

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