Opinião

Para lá de Marrakech… e do Tratado de Marrakech para cá

Autor

  • Paulo Armando Innocente de Souza

    é pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ) e advogados-sócio na Daniel Advogados.

24 de maio de 2020, 13h06

O Tratado de Marrakech, que busca facilitar a adaptação de obras literárias para formas acessíveis às pessoas cegas, com deficiências visuais ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso, teve a sua regulamentação debatida no último dia 8, em evento virtual promovido pela Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI) [1]. O debate ganha relevo pois a Secretaria Especial da Cultura (Secult) abriu, em 23 de abril, consulta pública sobre o decreto que regulamentará o tratado [2], que vem despertando oposições a cláusulas tendentes a limitar os principais avanços do próprio instrumento.

Em artigo elaborado pelos juristas Valerio de Oliveira Mazzuoli e Fernando César Costa Xavier, reportando-se a dados obtidos em pesquisas realizadas por organismos internacionais, é alegado que "esse ato internacional vem ao encontro da chamada 'fome de livro' (book famine), uma vez que menos de 1% dos livros impressos publicados no mundo são também publicados em formatos acessíveis para essa categoria de pessoas" [3], exaltando também a diplomacia brasileira, uma vez que a proposta de elaboração do tratado partiu do governo brasileiro, em conjunto com Paraguai, Equador, Argentina, México e outros países da América Latina e Caribe [4].

Firmado em 27 de junho de 2013 e ratificado pelo Brasil em 11 de dezembro de 2015, o referido tratado entrou em vigor no plano jurídico externo em 30 de setembro de 2016 [5]. Internamente, o tratado foi promulgado via decreto nº 9.522, de 8 de outubro de 2018 [6], sendo recepcionado como emenda constitucional, na forma do artigo 5º, §3º, da Constituição Federal [7] e, portanto, reconhecida como uma norma formalmente constitucional.

Obviamente, o maior desafio no campo literário vem da necessidade de acesso das obras dessa natureza aos cidadãos cegos, com deficiências visuais ou outras dificuldades de uso pleno das obras. Para isso, o Tratado de Marrakech tem por objetivo facilitar a adaptação para um formato acessível a essas pessoas, adaptando materiais escritos para formato em braile, conversão em formato audível etc., o que implica em limitações aos direitos de autor com a única finalidade de remover eventuais entraves ao acesso de importantes conteúdos por essa parte da população [8].

Sabe-se que o direito de autor tem como finalidade recompensar o esforço do criador, impulsionando a atividade criativa que constitui o arcabouço histórico e cultural da humanidade, tornando-se acessível ao público e protegível juridicamente quando inserido no denominado corpus mecchanicum, responsável pela veiculação das ideias corporificadas aos demais membros da sociedade. É justamente na democratização do "corpo" em que é inserida a obra que esse direito fundamental ganha tessitura constitucional, posto que o acesso à educação, à cultura, à ciência e à tecnologia faz parte dos direitos sociais [9].

Dito isso, o Tratado de Marrakech limita os direitos de autor para possibilitar a adaptação de obras protegidas para formatos acessíveis sem precisar pedir autorização ou remunerar o autor da obra original. Assim, deve seguir, primeiramente, os parâmetros gerais de exceção a direitos de autor previstos no artigo 9.2 da Convenção de Berna, o chamado "triplo teste", em que essas limitações devem ocorrer: I) em casos especiais; II) em casos em que a reprodução não afete a exploração normal da obra; e III) em casos em que não cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor [10].

Além desses parâmetros convencionais básicos, o próprio tratado prevê certas condições, em seu artigo 4.2 (a), para que entidades autorizadas [11] não precisem da autorização do titular dos direitos de autor para produzir um exemplar em formato acessível de obras e fornecê-las aos beneficiários [12]. É necessário, para tanto, que a entidade autorizada tenha acesso legal à obra que pretende adaptar e que a conversão da obra para formato acessível ocorra sem que haja introdução ou mudanças que não as necessárias para tornar a obra acessível aos beneficiários. Esses exemplares acessíveis também devem ser fornecidos exclusivamente para serem utilizados por beneficiários e a atividade deve ser realizada sem fins lucrativos [13].

Não obstante, desde a vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015 [14]) autoridades e editoras vêm adotando no Brasil medidas para aproximar os livros das pessoas com deficiências visuais ou outras dificuldades de acesso, como a criação do Portal do Livro Acessível, resultado de um termo de ajustamento de conduta (TAC) entre o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e o Ministério Público Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF), em julho de 2017. No referido portal há diversas editoras cadastradas no sistema e que devem inserir em seus websites o ícone do Portal do Livro Acessível para indicar aos interessados que é possível solicitar os títulos que desejam adquirir em formato acessível [15].

As editoras também tiveram importante papel para a noticiada consulta pública aberta pela Secult, pois participaram do debate no grupo de trabalho organizado pela Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual (SDAPI) entre outubro e dezembro de 2019, juntamente com associações e institutos envolvidos com pessoas cegas, resultando na minuta do decreto de regulamentação do Tratado de Marrakech submetido a consulta (Consulta Pública nº 01/2020) [16].

Entre as instituições participantes do debate, também se destaca a Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas da Informação e Instituições (Febab), representando as bibliotecas. A Febab expõe sérias preocupações com o citado decreto, principalmente com a possibilidade de adoção da cláusula de disponibilidade comercial, facultada no artigo 4º, item 4, do tratado [17], em que uma entidade autorizada ficaria impedida de converter uma obra ao formato acessível, para atender a um beneficiário, caso essa obra já conste de um catálogo nacional como disponível comercialmente no formato requisitado e em condições razoáveis de acesso, entendendo ser uma descabida "limitação da limitação".

Reforçando que o tratado não tem por condão aquecer o mercado editorial, mas, sim, garantir um direito ao usuário, a federação também aponta problemas na dificultosa conceituação de obra em formato acessível para nortear a adesão à citada cláusula, pois os beneficiários são pessoas com dificuldades diversas e que a aplicação da norma restringiria a individualização do atendimento, pois a obra acessível no catálogo poderia ser acessível para uma pessoa, mas ainda assim não ser plenamente acessível a outros beneficiários que eventualmente demandem um formato acessível específico. O mesmo ocorreria com as condições razoáveis de acesso, pois dependem do aparato tecnológico das entidades quanto aos suportes dos formatos acessíveis, o que pode gerar divergências entre as próprias entidades.

Mas a maior preocupação talvez seja em relação aos entraves que tal cláusula traria no que se considera o avanço mais importante na adesão ao tratado: os intercâmbios transfronteiriços de obras em formatos acessíveis. Isso porque os artigos 5 e 6 do Tratado de Marrakech ampliam ao máximo as disponibilizações dessas obras adaptadas entre as partes contratantes. Essas cláusulas determinam que se um exemplar dessa natureza é produzido respaldado em uma limitação de direitos de autor, ele pode ser distribuído a uma entidade autorizada ou a um beneficiário de outro país aderente, o que se estende à importação da obra acessível pelo próprio beneficiário ou por quem aja em seu nome.

Esses dispositivos vieram para eliminar as dificuldades que países em desenvolvimento e países menos desenvolvidos têm em importar obras estrangeiras em condições aceitáveis de acessibilidade. São tão importantes que inclusive há expressa previsão de que mecanismos tecnológicos eficazes de proteção a direitos de autor não devem impedir a reprodução de obras para fins de adaptação ao formato acessível, conforme artigo 7º do tratado [18].

Portanto, é muito pertinente o questionamento crítico da Febab sobre a adição da cláusula de disponibilidade comercial como um dificultador das importações de obras tornadas acessíveis no exterior, caso conste de algum catálogo nacional que essa obra já existe em formato acessível no Brasil, o que impediria um melhor aproveitamento dos intercâmbios transfronteiriços permitidos pelo tratado principalmente pelas bibliotecas, tradicionais gestoras de grandes acervos [19].

Importante ressaltar que o Brasil não optou pela limitação da cláusula de disponibilidade comercial quando da ratificação do tratado e, caso venha a implementá-la no decreto que regulamentará o tratado, deverá declarar a opção por meio de notificação depositada junto ao diretor-geral da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual).

Espera-se, portanto, um debate razoável sobre a controversa cláusula de disponibilidade comercial, sobretudo quanto à questão do fomento de um mercado editorial de obras em formatos acessíveis em contraponto ao direito fundamental de acesso, com a limitação de direitos de autor, que vem a ser o escopo principal do documento. De toda forma, instituições como editoras ou bibliotecas, potencialmente entidades autorizadas, não podem exercer tais atividades com finalidade lucrativa, o que deve amenizar discussões mais acaloradas pois não se vislumbra, pelo menos em princípio, a necessidade de tomar atitudes como a de alimentar catálogos imprecisos para impor objeções a intercâmbios transfronteiriços para atender a necessidades específicas de beneficiários.

Sendo assim, aguarda-se com expectativa os resultados da consulta pública sobre o decreto que regulamentará o Tratado de Marrakech para que este venha a desempenhar um importante papel nas iniciativas legislativas no Brasil, compondo, juntamente com as leis de acessibilidade e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, entre outros, um arcabouço jurídico que torne possível uma acessibilidade plena em todas as formas de exercício da cidadania e pleno gozo dos direitos fundamentais por todos os cidadãos que de algum modo possuam dificuldades sensoriais, mecânicas e cognitivas.

 


[3] WECHSLER, Andrea. WIPO’s Global Copyright Policy Priorities: The Marrakesh Treaty to Facilitate Access to Published Works for Persons Who Are Blind, Visually Impaired, or Otherwise Print Disabled. In: HERRMANN, Christoph; KRAJEWSKI, Markus; TERHECHTE, Jörg Philipp (eds.). European Yearbook of International Economic 2015. Berlin/Heidelberg: Springer-Verlag, 2015, p. 391-406.

[4]MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; XAVIER, Fernando César Costa. Entra em vigor tratado que facilita acesso para cegos a livros. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-out-06/entrou-vigor-tratado-facilita-acesso-cegos-livros#44. Acessado em 10/5/2020.

[7] "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".

[9] BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 22.

[11] De acordo com o artigo 2º, item "c" do tratado de Marrakech, entidades autorizadas "significa uma entidade que é autorizada ou reconhecida pelo governo para prover aos beneficiários, sem intuito de lucro, educação, formação pedagógica, leitura adaptada ou acesso à informação. Inclui, também, instituição governamental ou organização sem fins lucrativos que preste os mesmos serviços aos beneficiários como uma de suas atividades principais ou obrigações institucionais".

[12] O artigo 3º do tratado de Marrakech define que "Será beneficiário toda pessoa: a) cega; b) que tenha deficiência visual ou outra deficiência de percepção ou de leitura que não possa ser corrigida para se obter uma acuidade visual substancialmente equivalente à de uma pessoa que não tenha esse tipo de deficiência ou dificuldade, e para quem é impossível ler material impresso de uma forma substancialmente equivalente à de uma pessoa sem deficiência ou dificuldade; ou c) que esteja, impossibilitada, de qualquer outra maneira, devido a uma deficiência física, de sustentar ou manipular um livro ou focar ou mover os olhos da forma que normalmente seria apropriado para a leitura; independentemente de quaisquer outras deficiências".

[17] Uma parte contratante poderá restringir as limitações ou exceções nos termos deste Artigo às obras que, no formato acessível em questão, não possam ser obtidas comercialmente sob condições razoáveis para os beneficiários naquele mercado. Qualquer parte contratante que exercer essa faculdade deverá declará-la em uma notificação depositada junto ao Diretor-Geral da OMPI no momento da ratificação, aceitação ou adesão a esse tratado ou em qualquer momento posterior.

[18] O artigo 7º do tratado de Marrakech assim dispõe: "As Partes Contratantes adotarão medidas adequadas que sejam necessárias, para assegurar que, quando estabeleçam proteção legal adequada e recursos jurídicos efetivos contra a neutralização de medidas tecnológicas efetivas, essa proteção legal não impeça que os beneficiários desfrutem das limitações e exceções previstas neste tratado".

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!