Opinião

A inconstitucionalidade da Portaria nº 1.348/19 e a Covid-19

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24 de maio de 2020, 15h05

A Portaria nº 1.348/19 da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia definiu em seu artigo 1º, inciso I, alínea "a", que até 31 de julho Estados, Distrito Federal e municípios devem aprovar a vigência de lei que adeque suas alíquotas de contribuição ao RPPS "(…) para atendimento ao disposto no § 4º do artigo 9º da Emenda Constitucional nº 103, de 2019, aos artigos 2º e 3º da Lei nº 9.717, de 1998, e ao inciso XIV do artigo 5º da Portaria MPS nº 204, de 2008".

O artigo 9º parágrafo 4º da Emenda Constitucional nº 103/2019 assim dispõe:

"Os Estados, o Distrito Federal e os municípios não poderão estabelecer alíquota inferior à da contribuição dos servidores da União, exceto se demonstrado que o respectivo regime próprio de previdência social não possui déficit atuarial a ser equacionado, hipótese em que a alíquota não poderá ser inferior às alíquotas aplicáveis ao Regime Geral de Previdência Social".

A Lei nº 9.717 de 1998, alterada pela Lei nº 13.846 de 2019, a cuja menção faz a portaria, afirma o seguinte em seu artigo 9º, IV:

"Artigo 9º — Compete à União, por intermédio da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, em relação aos regimes próprios de previdência social e aos seus fundos previdenciários: IV a emissão do Certificado de Regularidade Previdenciária (CRP), que atestará, para os fins do disposto no artigo 7º desta lei, o cumprimento, pelos Estados, Distrito Federal e municípios, dos critérios e exigências aplicáveis aos regimes próprios de previdência social e aos seus fundos previdenciários" (grifo do autor).

A Portaria MPS Nº 204/2008, também mencionada, por sua vez, dispõe em seu artigo 4º:

"Artigo 4º — O CRP será exigido nos seguintes casos: I realização de transferências voluntárias de recursos pela União; II celebração de acordos, contratos, convênios ou ajustes, bem como recebimento de empréstimos, financiamentos, avais e subvenções em geral de órgãos ou entidades da Administração direta e indireta da União; III liberação de recursos de empréstimos e financiamentos por instituições financeiras federais; e IV – pagamento dos valores devidos pelo Regime Geral de o Previdência Social – RGPS, em razão do disposto na Lei nº 9.796, de 5 de maio de 1999" (grifo do autor).

Conjugando a interpretação do artigo 9º da referida emenda constitucional, com o artigo 9º da Lei nº 9.717 de 1998 e artigos 4º e 5º da Portaria MPS Nº 204/2008, observa-se que é de competência da mesma secretaria especial, expedidora do ato administrativo sob análise, a emissão de Certificado de Regularidade Previdenciária, documento imprescindível aos estados, DF e municípios para obtenção de repasses voluntários da União, assim como a celebração de acordos, subvenções, empréstimos de bancos federais e afins.

A Portaria nº 1.348/19 ignorou a opção do Congresso Nacional de fatiar a votação da reforma da previdência acerca da inclusão ou não de Estados, DF e Municípios na reforma previdenciária da União, consubstanciada na Proposta de Emenda Constitucional nº 133/2019, criando não só um prazo por ato administrativo inconstitucional que ofende o pacto federativo ao subjugar a vontade de estados e municípios a um poder central originariamente inexistente no texto constitucional, mas silenciosamente apontando uma sanção, que ameaça a continuidade de repasses após 31 de julho.

Portanto, com a chegada da Covid-19, o que era crítico tornou-se decisivo. A Emenda Constitucional nº 106/2020, promulgada em maio, popularmente conhecida como "orçamento de guerra", pretende conceder um reforço ao cenário caótico que se avizinha para entes estaduais e municipais. Contudo, se a receita originária for prejudicada, de pouco adiantará.

Visando à sustação dos efeitos da Portaria nº 1.348/19, exatamente por ter exorbitado do poder regulamentar artigo 49, V, da CF , está em análise na Câmara dos Deputados o Projeto de Decreto Legislativo nº 761/19, sob a seguinte justificativa:

"O PSOL foi surpreendido com a publicação da Portaria nº 1348, de 04 de dezembro de 2019, assinada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, que impõe, de forma arbitrária e em clara violação ao Pacto Federativo, um prazo (31 de julho de 2020) para a adequação dos entes subnacionais às regras constantes na Emenda Constitucional nº 103/2019 referentes à estruturação das alíquotas de contribuição ordinária e para encaminharem ao Poder Executivo Federal uma série de demonstrativos atuariais e contábeis referentes aos seus regimes próprios" [1].

A título de exemplo acerca da gravidade da situação, em 30 de abril o governador do Distrito Federal alterou, por meio da Circular nº 5/2020, as alíquotas previdenciárias a serem pagas pelos servidores ativos, inativos e pensionistas ao sistema previdenciário local, igualando-as ao modelo federal. Posteriormente, em face dos questionamentos e da liminar exarada pela 4ª Vara da Fazenda Pública do DF, desistiu da medida, comprometendo-se a fazê-la por meio de lei.

Tal processo de aprovação, contudo, é sempre complexo. Seguindo o exemplo do caso distrital, exige-se quórum de maioria absoluta para alterar a alíquota de 11% prevista nos artigos 60 e 61 da Lei Complementar Distrital nº 769/2009, não se esquecendo também do princípio da anterioridade nonagesimal, elencada no parágrafo 6º do artigo 195 da Constituição Federal, impedindo que qualquer alteração seja cobrada antes de 90 dias da publicação da lei modificadora.

A inconstitucionalidade do prazo e da sanção indicados pela Portaria nº 1.348/19 da Secretaria Especial do Ministério da Economia é evidente, exigindo sua anulação, seja pela via judicial, seja pela via legislativa. Mesmo porque a tramitação de emenda constitucional ou projeto de lei complementar estadual ou municipal possui condições especiais e prazos exíguos, sem contar que o tema de fundo, em cenário de crise econômica causada pela Covid-19, é ainda mais sensível. Com o cenário fiscal que se avizinha, acaso prolongada a discussão legislativa e extrapolado o prazo limite previsto de 31 de julho de 2020 ainda que inconstitucionalmente definido , as supressões de repasses voluntários federais, empréstimos e subvenções afins poderão ter efeitos deletérios.

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