Diário de Classe

Uma defesa hermenêutica da democracia

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23 de maio de 2020, 9h56

A democracia não vai bem no mundo todo. Amplamente associada à representação política, essa forma de organização do poder enfrenta, na atualidade, um amplo catálogo de interrogações não apenas sobre o seu sentido — ou seja, sobre o simbólico muito bem guardado na horizontalidade do poder —, mas, mais que isso, sobre a qualidade daquilo que ela oferece.

Como diz Giacomo Marramaono seu Poder e Secularização, o problema da democracia não é exatamente a clara lacuna deixada pela representatividade — tão evidente em países de tíbias e patrimonializadas instituições, como o Brasil —, mas os limites de efetividade dessas mesmas democracias. Até aí, nada de novo na lição do filósofo político italiano que, no limite, vale mais pela síntese daquilo que a História e a Política não nos cansam de mostrar: a França pós-revolução questionou a República diante de uma vida não muito diferente daquela enfrentada no Antigo Regime. Tocqueville alertou sobre a neutralidade do “grande teatro de opiniões” que nos mantém presos aos modelos do passado, mostrando que nem sempre a democracia é, paradoxalmente, democrática. Mesmo Marx atravessou lá suas críticas que, agora, alcançam um amplo leque de entusiastas, à esquerda e à direta, de qualquer coisa que não seja de cariz democrático.

Tudo isso faz repensar algumas decantadas teorias, como a do fim da História ou a da pós-modernidade (sociologicamente entendida). O capitalismo vem segurando bem as pontas, entrando e saindo de suas cíclicas crises e aninhando-se, inclusive,em fechados e até então impensados modelos políticos, como o chinês, por exemplo. Mas a democracia, que faz(ia) colar os liberalismos econômico e político,parece agora equilibrar-se numa certa corda bamba, já temporalmente distante das grandes e históricas tensões que a tornaram, digamos, um regime pop. É como se, diante da crise de efetividade bem observada por Marramao, pudéssemos olhar para a democracia e sentenciar: “Podemos viver sem isso”. Mais: “Seria melhor viver sem isso”.

Bom exemplo disso é o estudo que observa como pandemias seriam enfrentadas mais eficazmente em regimes políticos fechados. Projetado a partir de pesquisadores da Central EuropeanUniversity e da Universidade Estadual Paulista, Political Regimes and Deaths in theEarlyStagesofthe Covid-19 Pandemic[2] conclui que, observados os 100 primeiros dias de combate à pandemia em mais de uma centena de países, nações com instituições autoritárias mostraram-se mais eficientes no seu enfrentamento. Embora não seja exatamente uma conclusão surpreendente, uma vez que uma das mais importantes políticas públicas de bloqueio ao vírus está no isolamento social (que, por sua vez, dialoga com o cerceamento de liberdades), o que disso parece relevante é o fato de que seu desfecho reforça um possível argumento contra a democracia. Quero dizer, embora o estudo não conclua assim em nenhum momento, a crise de saúde pública principiada globalmente pelo coronavírus e as diferentes respostas a seu enfrentamento engrossam o coro dos possíveis argumentos dos críticos da democracia (que, no Brasil, projetam dias melhores com o STF e o Congresso fechados).

Por princípio, claro, intuo que esses mesmos argumentos, ainda que projetados em um plano idealizado, merecem resposta. Fugindo de uma certa fetichização da democracia (em que ela seria melhor que tudo o tempo todo), entendo ainda que o caminho mais oportuno para isso é à margem da elaboração de uma espécie de catálogo de possíveis vantagens democráticas, em detrimento a qualquer outro regime. Afinal de contas, essa contrapartida pressuporia um certo tipo de consequencialismo, em que os fins justificam os meios. No mais, o próprio estudo que mostra regimes autoritários mais eficientes no combate à Covid-19permite — a qualquer hater democrático — essa perigosa e indesejável possibilidade argumentativa, tão bem demarcada teleologicamente.

Como, então, enfrentar essa questão?

Por tradição acadêmica, ensaio uma resposta hermenêutica, a partir dos alicerces de sustentação da Crítica Hermenêutica do Direito[3]. Mais que uma Teoria do Direito (ou da Decisão), impondo uma série de necessários  constrangimentos orientadores àquilo que LenioStreck põe como uma resposta constitucionalmente adequada, a CHD traz à luz da discussão um paradigma intersubjetivo que (não apenas por ele, mas em nome dele) impede decisionismos de toda sorte, fechando uma espécie de círculo virtuoso: o constrangimento a decisões subjetivas faz do Sistema de Justiça de uma determinada nação um composto institucional democrático, mas o contrário também é verdadeiro: somente por ser democrático e mover-se na intersubjetividade é que pode constranger decisões arbitrárias.

Esse é o ponto. Embora a democracia coloque-se como um regime de incerteza e, no mais, de riscos, a óbvia contrapartida a tudo isso é não apenas um regime de melhores possibilidades de futuro, mas, ainda, um regime que permite constranger suas instituições aos limites de uma linguagem necessariamente pública. Democracias iliberais[4] (como são chamadas essas novíssimas versões soft de autoritarismo) blindam, no limite, esse típico traço democrático.

Como se pode ver, o exemplo como essas “democracias” (entre aspas mesmo) lidam — ou podem lidar — com o Direito permite, através de um olhar hermenêutico, desvelar muito sucintamente como as respostas sempre prontas desses regimes impõem um preço alto a uma determinada comunidade política, mas sem entregar, nesse espectro de certezas, a efetividade que põe a própria democracia em xeque. Esse é, mais uma vez, o ponto, que vai além de uma vantagem democrática. Trata-se, na verdade, de uma condição de possibilidade politicamente possível apenas a partir de um intersubjetivo paradigma filosófico que, no mais, é sempre inconciliável com o autoritarismo. Por isso — e não por outra razão — fiquemos — por princípio — com a democracia.           

 


[3]A Crítica Hermenêutica do Direito é uma “tese, postura ou teoria”, criada e desenvolvida ao longo dos últimos vinte anos, produto do trabalho do professor Lenio Luiz Streck. Surgida inicialmente como Nova Crítica do Direito, a proposta assenta-se, muito sinteticamente, “entre dois grandes paradigmas filosóficos: o objetivismo e o subjetivismo”, visando o estabelecimento das “condições para a construção de uma teoria da decisão, fechando, assim, um gap existente na teoria e nas práticas cotidianas dos juízes”. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 11.

[4] Por todos, a Hungria de Viktor Orbán. A democracia limita-se à escolha de representantes políticos que, uma vez eleitos, manejam as instituições à margem de constrangimentos públicos.

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