Opinião

Pandemia da Covid-19 evidencia a invisibilidade das mulheres

Autor

  • Daniela Lustoza

    é doutora em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor) mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) juíza titular da 11ª Vara do Trabalho de Natal (RN) e vice-presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 21ª Região (Amatra 21).

23 de maio de 2020, 18h19

Estamos vivendo uma pandemia. Para alguns, uma guerra contra um inimigo imperceptível, silencioso e poderoso, que já tirou a vida, até agora, de muitas e muitas pessoas em todo o planeta. Para a presidente da Fiocruz, primeira mulher no cargo em 120 anos de existência da instituição, uma crise sanitária e humanitária e, no Brasil, a situação ainda é agravada por um ambiente de forte desigualdade social [1].

A Covid-19 não pediu licença para modificar a vida das pessoas no mundo inteiro, assim como fez com que as instituições se reinventassem, inclusive as mais tradicionais, que desenvolvem atividades do sistema de Justiça, possibilitando a não interrupção dos serviços públicos do Poder Judiciário, por exemplo, a partir dos mecanismos proporcionados pela tecnologia da informação, com o incremento das atividades profissionais não presenciais.

Nesse cenário, e atenta à nova realidade, no dia 12 de maio a Folha de São Paulo publicou a matéria intitulada "Em casa, procuradores, ministros e advogados conciliam processos com filhos e lives" [2]. Importantes atores foram ouvidos e compartilharam a rotina de trabalho desenhada para ser realizada em casa. O que chama a atenção? O lugar de fala é completamente masculino. Os personagens principais da narrativa são homens e as mulheres são referenciadas como coadjuvantes, mesmo quando dividem o espaço físico de trabalho e desempenham profissão também integrante do sistema de Justiça.

Algo está errado. Apesar de esforços de séculos, a invisibilidade das mulheres ainda é naturalizada por um grande e importante veículo de comunicação, e o papel que lhes é oferecido não é de protagonismo. É certo que não é apenas na mídia que as representações e estereótipos persistem. O fenômeno da invisibilidade naturalizada faz com que as pessoas "não percebam" a reprodução do homem como centro da história, do poder, como medida de todas as coisas, descrito pelo androcentrismo, criando a necessidade de se dizer, e repetir "que o rei está nu". Ainda está nu, mesmo nos dias de hoje, no século XXI, quando se observa a reprodução de estereótipos que reforçam a internalização do papel do homem no exercício do poder e tomada de decisão, quando a narrativa é vista do ponto de vista masculino.

Em artigo denominado "Mídia e estereótipos: as representações da diversidade social no discurso jornalístico" [3], Denise Mantovani reflete sobre o "discurso hegemônico presente no conteúdo noticioso dos meios de comunicação tradicionais, que tende a reforçar estereótipos de gênero, raça e posições de classe, colaborando, assim para a sustentação de hierarquias e posições socialmente dominantes". Para Mantovani, é necessário refletir sobre "as dinâmicas da construção discursiva numa perspectiva interseccional e, assim, verificar como determinadas visões de mundo atuam e dão forma para o texto jornalístico".

Atento ao viés de gênero e comunicação, a Área Prática de Gênero do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento da América Latina e Caribe elaborou o "Manual de Género para Periodistas" [4], indicando orientações, exemplos específicos, mas, principalmente, convidando os profissionais do jornalismo "ao desafio de olhar com diferentes lentes a realidade que nos cerca", mostrando formas de comunicação que contribuam à igualdade, construindo ativamente, além de informar.

No sistema de Justiça, muitas mulheres estão trabalhando em casa. São advogadas, magistradas, integrantes do Ministério Público, defensoras públicas, advogadas da União, procuradoras, servidoras públicas e a invisibilidade naturalizada em relação ao trabalho feminino merece ser rejeitada.

Adaptar-se ao trabalho em home office, em um momento de pandemia, exige de todos, mas, para muitas mulheres, exige-se o malabarismo próprio de quem ainda é responsável, em regra, pela amplidão das tarefas de cuidado [5]. Além disso, exige demais daquelas que enfrentam a violência doméstica em suas variadas formas, fenômeno multiplicado em tempos de pandemia, pela convivência diária com o próprio algoz, no lugar em que se vive.

 No resumo técnico "Covid 19: um olhar para o gênero. Proteção da saúde e dos direitos sexuais reprodutivos e promoção da igualdade de gênero" [6], elaborado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), publicado em março de 2020, duas de suas mensagens-chave evidenciam que: 1) "Os surtos de doenças afetam mulheres e homens de maneira diferente, e as pandemias tornam piores as desigualdades existentes para mulheres e meninas e a discriminação de outros grupos em situação de vulnerabilidade, como pessoas com deficiência e pessoas em extrema pobreza. Isso precisa ser considerado, dados os diferentes impactos em torno da detecção e acesso ao tratamento para mulheres e homens"; 2) "Em tempos de crise, como um surto, mulheres e meninas podem estar em maior risco de violência por parceiro íntimo e outras formas de violência doméstica devido ao aumento das tensões na família. Como os sistemas que protegem mulheres e meninas, incluindo estruturas comunitárias, podem enfraquecer ou quebrar, medidas específicas devem ser implementadas para proteger mulheres e meninas do risco de violência por parceiro íntimo com a dinâmica de risco imposta pela Covid-19".

A crise humanitária e de saúde pública trazida pela Covid-19 precisa de muita solidariedade em seu enfrentamento. Muitos perderam a vida, cidades no mundo ficaram desertas, pessoas perderam seus postos de trabalho, empresas se redescobriram e se redesenharam para continuar funcionando e outras, infelizmente, não sobreviveram ou não se manterão ativas quando tudo melhorar, quando tudo residir no passado.

E, mesmo assim, em um cenário tão difícil e triste, ainda é necessário que se ilumine, com a luz de uma lua inspiradamente cheia, a condição das mulheres, principalmente quando inseridas em uma situação de crise como a da pandemia da Covid-19. Foi o que fez o coletivo UMA União de Mulheres Advogadas e a Rede Feminista de Juristas deFEMde, publicando manifesto de descontentamento em relação à matéria publicada pela Folha de São Paulo, devidamente publicizado pelo veículo jornalístico [7].

Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, com a competência de dirigir a instituição em meio a uma pandemia extremamente grave, e que leva em seu nome a lembrança do nome de uma brasileira, potiguar, reconhecida internacionalmente, que lutou pelo avanço das mulheres, Nísia Floresta, nos alerta que as "mulheres são maioria entre trabalhadoras e pesquisadoras, mas minoria nos cargos diretivos", e assume a responsabilidade quando sentencia "que a minha posição na presidência não sirva só como exemplo, mas como motor de reduzir essa iniquidade".

A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmou que se não forem tomadas ações firmes, o coronavírus pode se tornar uma doença endêmica e não desaparecer, sendo muitos os desafios para controlar a doença, mesmo com uma vacina. Temos muito trabalho pela frente e, certamente, a humanidade vencerá a Covid-19, com um legado de aprendizado importante. Mas não é somente esse vírus que precisamos combater. Precisamos, todas e todos, ser agentes de transformação para eliminar de vez o vírus que provoca a invisibilidade das mulheres. Há muito trabalho a ser feito.

 


[1] Disponível em <http://cienciahoje.org.br/artigo/a-fiocruz-diante-da-covid-19/>. Acesso em 13 de maio de 2020.

[3] MANTOVANI, Denise. Mídia e estereótipos: as representações da diversidade social no discurso jornalístico. In Feminismos em rede. Organizado por Danusa Marques, Daniela Rezende, Maíra Kubik Mano, Rayza Sarmento, Viviane Gonçalves Freitas. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2019.

[6] Disponível em: < https://www.unfpa.org/sites/default/files/resource-pdf/Portoguese-covid19_olhar_genero.pdf>. Acesso em: 13 de maio de 2020.

[7] Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/entidade-de-advogadas-e-rede-feminista-criticam-ausencia-de-mulheres-em-reportagem-da-folha.shtml>. Acesso em: 13 de maio de 2020.

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    é juíza titular da 11ª Vara do Trabalho de Natal, vice-presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 21ª Região (Amatra 21), integrante do Conselho Fiscal da Anamatra, membro da Comissão Anamatra Mulheres e doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza (Unifor).

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