Ambiente jurídico

Responsabilidade por improbidade administrativa na gestão do patrimônio cultural

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

23 de maio de 2020, 8h00

Spacca
A Constituição federal de 1988, refletindo o sentimento e as aspirações do povo brasileiro ao longo de várias décadas — sofrido com o desvio de verbas públicas, ausência de serviços essenciais em prol da sociedade, falta de transparência e abusos por parte de governantes —, manifestou especial preocupação com a lisura no trato dos interesses públicos e proclamou os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade como de observância obrigatória em todas as ações da administração pública (art. 37, caput).

A Carta Magna também definiu como imprescritíveis as ações de reparação ao erário público, bem como estabeleceu que os atos de improbidade administrativa podem importar a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível (art. 37, §§ 4º e 5º).

No ano de 1992, dando concretude aos mandamentos constitucionais, adveio ao nosso ordenamento jurídico a chamada Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), com previsão de sanções envolvendo, conforme a gravidade da conduta, por exemplo, a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio do agente, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil, proibição de contratar com o Poder Público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.

Vale ressaltar que as sanções previstas na lei de improbidade possuem natureza civil, podendo ser cumuladas com outras de natureza administrativa ou criminal, em razão da conhecida independência das instâncias que vigora em nosso ordenamento.

Por força dos textos acima referidos, o dever de probidade tornou-se mandamento de observância obrigatória aos agentes públicos do nosso país, compreendendo todos aqueles que exercem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades da administração direta, indireta ou fundacional, bem como de empresas ou entidades cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de 50% da receita anual.

A responsabilização por prática de ato de improbidade administrativa insere-se como ferramenta de relevo para o combate a ações lesivas ao patrimônio cultural brasileiro e pode ser considerada como um dos mecanismos decorrentes do mandamento inserto no art. 216, § 4º. da Constituição Federal, que estabelece que os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. Referido dispositivo também dialoga com o art. 225. § 3º da CF/88, que dispõe que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente (e neste insere-se o patrimônio cultural) sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Com efeito, os bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro, também chamado meio ambiente cultural, estão submetidos a um especial regime de proteção jurídica e a sua gestão é sempre subordinada a ações de controle e fiscalização por parte de órgãos públicos, nos três níveis da Federação.

Em âmbito federal, por exemplo, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) toca promover a salvaguarda e a conservação do patrimônio cultural acautelado pela União, a exemplo dos bens tombados, sítios arqueológicos, patrimônio ferroviário, entre outros; ao Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) incumbe a tutela dos bens musealizados; ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA) ou ao Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBI, conforme o caso, a gestão das cavidades naturais subterrâneas (grutas, cavernas, abrigos etc.) e à Agência Nacional de Mineração (ANM) a gestão do patrimônio paleontológico ou fossilífero.

Nos Estados e Municípios, em geral, há também órgãos incumbidos da tutela dos bens culturais e igualmente sujeitos à lei de improbidade administrativa, que alcança, inclusive, os integrantes de órgãos colegiados que exercem função não remunerada, a exemplo dos representantes em conselhos municipais de patrimônio cultural.

Por isso, é imprescindível muita seriedade e responsabilidade na tomada de decisões envolvendo a gestão dos bens culturais, sob pena de cometimento de ato de improbidade administrativa, passível de graves sanções nos termos da Lei 8.429/92, que exige dos agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia estrita observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos (art. 4º).

Conquanto o dever de probidade não se limite ao campo do patrimônio cultural, ele ganha maior relevo em tal temática, considerando a natureza fundamental, indisponível, difusa, imprescritível, infungível e intergeracional desse bem jurídico, expressamente reconhecido como patrimônio público pelo art. 1º, § 1º. da Lei 4.717/65, sejam os bens culturais tombados ou não.

A Lei 8.429/92 estrutura os atos de improbidade administrativa em três categorias, abrangendo aqueles que importam enriquecimento ilícito (art. 9º.), os que causam prejuízo ao erário (art. 10) e os que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11), cujas penas são previstas no art. 12, conforme a gravidade das condutas, podendo, no grau máximo, implicar a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos.

É de se chamar a atenção para o fato de que as disposições da Lei de Improbidade Administrativa são aplicáveis mesmo àquele que, não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato ímprobo ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta, a exemplo de uma empresa que obtenha autorização indevida para destruir cavernas, sítios arqueológicos ou qualquer outro bem protegido em razão de seu valor cultural (art. 3º). A Lei de Improbidade, com o intuito de combater o enriquecimento ilícito, dispõe que, nesses casos, perderá o agente público ou terceiro beneficiário os bens ou valores acrescidos ao seu patrimônio (art. 6º.). Ademais, o sucessor daquele que causar lesão ao patrimônio público ou se enriquecer ilicitamente está sujeito às cominações da Lei de Improbidade, até o limite do valor da herança.

O ato ímprobo que importa enriquecimento ilícito do agente público compreende a conduta de auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades públicas, podendo abranger, por exemplo: o recebimento de propina para aprovar, com maior agilidade, intervenções em bem cultural tombado (mesmo que lícitas); receber presentes de alto valor para retardar o embargo de atividades lesivas ao patrimônio cultural; aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para uma empresa mineradora ou de construção civil que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público.

Já no que pertine aos atos de improbidade administrativa que causam lesão ao erário, eles podem compreender qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades públicas, podendo abranger, por exemplo, a conduta do servidor que valida orçamento superfaturado para intervenção em bem cultural com recursos públicos; do gerente de unidade de conservação que se omite deliberadamente na tomada de medidas para conservação de sítios arqueológicos; do secretário de cultura que autoriza a demolição de bem tombado ou que concede isenção de IPTU a proprietário de bem cultural que não preencha os requisitos legais; do policial que se omite no dever de deter pessoa que está executando pichação em monumento urbano.

Segundo a doutrina de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves1, o dispositivo em comenta tutela a perda patrimonial em sentido lato, não se resumindo ao mero aspecto econômico de lesão ao erário público e citam como hipóteses de configuração de tal tipo de improbidade: Presidente da República que, em viagem ao exterior, doa a Pontífice estátua incorporada ao patrimônio cultural brasileiro (art. 10, III); agente público que realiza a alienação, para fins de loteamento, de área que abriga sítio detentor de reminiscências históricas dos antigos quilombos, afrontando o art. 216, § 5º. da Constituição (art. 10, V); agente público que permite a deterioração de prédio que abriga repartição pública e que se encontra tombado e incorporado ao patrimônio histórico e cultural (art. 10, X).

Encampando esse entendimento, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais registra condenação de um prefeito municipal que, por ato próprio, sem consulta ao conselho municipal de patrimônio cultural, autorizou a demolição de um casarão histórico tombado, de propriedade privada. Ao chefe do Poder Executivo o Poder Judiciário aplicou as sanções de ressarcimento integral do dano, proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos, suspensão dos direitos políticos por cinco anos e pagamento de multa civil em 40% (quarenta por cento) do valor da extensão do dano, nos moldes do art. 10, caput, da Lei nº 8.429/92, cuja decisão restou assim ementada:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – CANCELAMENTO DE TOMBAMENTO – AUSÊNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL – DILAPIDAÇÃO DE BEM PÚBLICO – VIOLAÇÃO AO ART. 10 DA LEI Nº 8.429/92 – DANO AO ERÁRIO. O agente que pratica ato ímprobo, causador de prejuízo ao erário, nos termos do art. 10 da Lei nº 8.429/92, se sujeita as penalidades previstas no art. 12, inc. II, da aludida Lei, na proporção da gravidade do seu ato. O cancelamento do tombamento não resulta de avaliação discricionária da Administração Pública, estando estritamente vinculado ao parecer do respectivo órgão competente de proteção ao patrimônio cultural. (TJMG – Apelação Cível 1.0456.10.007276-2/001, Relator: Des. Jair Varão , 3ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 18/06/2015, publicação da súmula em 30/06/2015)

Quanto aos atos de improbidade que atentam contra os princípios da administração pública, eles compreendem qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, podendo abranger condutas tais como: negar publicidade a atos relativos à intervenção em bens culturais; retardar a aplicação de sanções administrativas a pessoas que violam as regras de proteção do patrimônio cultural; expedir licença ou autorização para intervenção em bem cultural em desconformidade com as exigências legais; dispensar, indevidamente, a realização de estudos de impacto ao patrimônio cultural para empreendimentos sujeitos à obrigação; dar tratamento diferenciado na tramitação de procedimentos administrativos envolvendo intervenções em bens culturais, seja para beneficiar ou prejudicar o interessado.

Para a configuração dessa modalidade de atos de improbidade exige-se que a conduta seja dolosa, não havendo necessidade de qualquer tipo de dano concreto em detrimento do patrimônio cultural. Pune-se a desconformidade da conduta, independentemente de seus resultados.

Por óbvio, a ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa não pode ser banalizada. Deve ser utilizada criteriosamente para combater somente os atos que transbordam a mera ilegalidade, violando de maneira grave o dever de servir à Administração Pública de forma imparcial, leal e honesta.

No campo processual, a ação de improbidade administrativa possui características especiais. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada. Estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias. Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita Recebida a petição inicial, será o réu citado para apresentar contestação, seguindo-se o rito ordinário.

Quanto a essa notificação preliminar, ela se presta a evitar o nascimento de ações de improbidade que sejam absolutamente despropositadas ou temerárias, que mereçam ser abortadas no início por cabal descabimento. Havendo dúvidas sobre a caracterização ou não da improbidade, a inicial deverá ser recebida e o processo ser iniciado, pois, em tal momento, a dúvida beneficia o interesse público na apuração da suposta conduta ímproba, prevalecendo o adágio “in dubio pro societate”.

Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

Existindo indícios de improbidade administrativa por agente político causador de prejuízos ao patrimônio histórico e cultural público, deve o Juiz receber a inicial de ação civil pública para inaugurar o contraditório e julgar a final, tudo em homenagem à garantia da jurisdição judicial assegurada pelo art. 5º, item XXXV da Constituição da República. (TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0480.09.132906-4/002, Relator(a): Des.(a) Belizário de Lacerda , 7ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 28/04/2015, publicação da súmula em 08/05/2015)

Enfim, a ação de improbidade administrativa insere-se no rol dos “outros instrumentos de acautelamento e preservação” de que fala a Constituição Federal em seu art. 216, § 1º., integrando o arsenal colocado à disposição dos legitimados, entre os quais destaca-se o Ministério Público, para o combate aos atos de gestão desonesta ou lesiva aos bens que integram o patrimônio cultural brasileiro.


1 Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Iuris. 3ª Edição. 2006. p. 263.


Referências bibliográficas

AJNHORN, Fernanda. A ação de improbidade administrativa como meio de proteção ao patrimônio histórico e cultural. In: SARLET, Ingo Wolfgang. LUDWIG, Roberto José (Orgs). A proteção judicial da probidade pública e da sustentabilidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2017. p. 116-133.

DICK, Maria Elmira Evangelina do Amaral. Improbidade administrativa e lesão ao patrimônio cultural. Porto Alegre: Magister. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico nº 26 – Out/Nov de 2009.

ELLOVITCH, Mauro da Fonseca. Improbidade administrativa e patrimônio cultural. p. 217-238. In: ALMEIDA, Gregório Assagra, SOARES JÚNIOR, Jarbas. MIRANDA, Marcos Paulo de Souza (Orgs). Patrimônio Cultural. Coleção Ministério Público e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey. 2013.

GARCIA. Emerson. ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Iuris. 3ª Edição. 2006. p. 263.

HENRIQUES FILHO, Tarcísio. Improbidade administrativa ambiental. Belo Horizonte: Arraes. 2010.

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