Opinião

Margeando o Rio Estige: limites aos discursos de ódio na internet

Autores

  • Adriana Filizzola D'Urso

    é advogada criminalista professora mestre e doutoranda pela Universidade de Salamanca (Espanha).

  • Rodrigo Fuziger

    é advogado PhD e mestre em Direito Penal pela USP PhD em Estado de Direito e Governança Global pela Universidade de Salamanca e professor da pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

22 de maio de 2020, 15h03

A História é testemunha do ódio como um afeto perene à condição humana, externalizado em demonstrações usualmente fundamentadas em toda sorte de preconceitos (raça, gênero, religião, ideologia, entre outros). É certo que o ódio acompanhou a humanidade no paulatino e decisivo câmbio para vidas cada vez mais virtuais. Assim, o problema das manifestações de ódio por meio online é absolutamente central à contemporaneidade, com contornos cada vez mais notáveis e perniciosos.

Nesse sentido, nos breves minutos da leitura deste texto, seguramente milhares de condutas tipificáveis como crimes de ódio ocorreram na internet. Um número absolutamente superior à sua ocorrência offline e que parece aumentar cada vez mais em tempos atuais, diante do panorama de recolhimento social, estresse decorrente do cenário de pandemia e do acirramento de disputas político-ideológicas.

Na magistral "Divina Comédia", Dante Alighieri descreve, na primeira parte da obra, um inferno concebido por nove círculos, alguns dos quais são banhados por rios. Um deles é o Rio Estige, que banha o quinto círculo. Trata-se de um rio de águas lodosas e frias, uma referência de Dante à mitologia grega, sendo Estige (ou Styx) uma representação mítica do ódio na cultura helênica.

Usando de tal metáfora, é inconteste afirmar que as águas do Rio Estige permanecem caudalosas em nosso tempo, com um leito alargado que se espraia sobre um novo solo fértil (inconcebível mesmo nos mais inventivos cenários dantescos): um plano virtual. Mas será esse plano da internet realmente uma terra sem lei banhada pelo rio do ódio? Há, em nosso país, mecanismos jurídicos de proteção a indivíduos e grupos aviltados por discursos odiosos nos meios virtuais? E se tais mecanismos existem, por que a percepção de impunidade salta aos olhos vidrados em telas?

Apesar dessa percepção e da falsa ideia de anonimato, a internet não é terra sem lei, aplicando-se, mesmo no mundo virtual, a legislação brasileira, que prevê responsabilidade civil e criminal a quem apregoa o ódio.

Dependendo do conteúdo, mensagens odiosas divulgadas pela internet podem ensejar a obrigação do pagamento de uma indenização (e aqui cita-se como exemplo o caso público de um jornalista que foi condenado a pagar R$ 100 mil de indenização a Chico Buarque e sua família por comentários ofensivos no Instagram da filha do cantor e compositor).

Também existe a possibilidade de responsabilização criminal daquele que destila o ódio na internet, com a consequente imposição de pena privativa de liberdade, restritiva de direitos e/ou multa, a depender da situação.

Caso o teor odioso publicado na internet tenha conteúdo caluniador, difamatório ou injurioso, a pessoa que o propala pode responder por um dos crimes contra a honra previstos, respectivamente, nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, com pena máxima de até três anos de reclusão e multa, quando se tratar de injúria que utilize elementos de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência (artigo 140, §3º, do Código Penal).

Na hipótese de um indivíduo vir a praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, por meio da demonstração de ódio na internet, fica caracterizado o crime de racismo, previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/89, um crime grave, imprescritível, inafiançável e sujeito a uma pena de um a três anos de reclusão e multa.

Ademais, manifestações homofóbicas na internet, desde 13 de junho de 2019, podem ensejar a responsabilização criminal do agente, em razão de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que estabeleceu que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero passasse a ser crime no Brasil, punida pela Lei de Racismo (Lei nº 7.716/89).

Isso posto, por premissa, é fundamental compreender o fenômeno do ódio como um afeto humano, hiperbolizado em nossas relações sociais construídas usualmente a partir de relações de semelhança e diferença (e Stendhal, em "O vermelho e o Negro", já afirmava "que a diferença leva ao ódio"). A ideia central, a partir desse olhar que foge à ingenuidade de uma visão de mundo livre de afetos negativos, é compreender e, por consequência, buscar desconstruir o ódio, uma tarefa que embora orientável pelo incentivo à informação, ao esclarecimento e à reflexão é, no limite, solipsista, a partir da autonomia deliberativa de cada sujeito.

No entanto, a sociedade e o Direito (inclusive o Penal, em casos extremados), como forma de controle social, devem assegurar que a liberdade de expressão seja, de fato, livre de amarras prévias, mas não imune a consequências, uma vez que a experiência histórica é pródiga em episódios nos quais (feito um ovo de serpente) o ódio como verbo contra a diferença acabou por se concretizar em tragédia sobre biografias e em tragédia sobre sociedades, eis que o totalitarismo, de qualquer cariz ideológico, é o instrumento privilegiado do ódio como afeto político.

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