Direito do Agronegócio

Tributação de agropecuárias que exercem outras atividades econômicas

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

22 de maio de 2020, 8h45

Spacca
Neste texto pretendemos tratar de discussão jurídica voltada para a pessoa jurídica empregadora produtora rural (agropecuária), a qual, além do exercício da atividade rural, possui, ainda, receitas decorrentes de outras atividades econômicas, seja comercial, industrial ou serviço.

Quando existe mais de uma atividade para esta pessoa jurídica, qual a forma de tributação desta agropecuária? Há tributação pela receita ou folha/remuneração?

Como regra geral, partindo do art. 195, da Constituição Federal, temos o art. 22 da Lei n. 8.212/91, o qual impõe ao empregador a tributação sobre a remuneração e/ou folha de salários.1

Portanto, em regra, a tradição de nossa legislação impõe a tributação sobre a folha e/ou remuneração.

Todavia, existem exceções diante de peculiaridades para certas atividades, como aquelas voltadas para área da atividade rural.

Neste sentido, segundo dispõe o art. 25 da Lei n. 8.870/94, quanto à pessoa jurídica produtora rural empregadora (agropecuária):

Art. 25. A contribuição devida à seguridade social pelo empregador, pessoa jurídica, que se dedique à produção rural, em substituição à prevista nos incisos I e II do art. 22 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, passa a ser a seguinte: (Redação dada pela Lei nº 10.256, de 9.7.2001)

I – 1,7% (um inteiro e sete décimos por cento) da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção; (Redação dada pela Lei nº 13.606, de 20180

II – um décimo por cento da receita bruta proveniente da comercialização de sua produção, para o financiamento da complementação das prestações por acidente de trabalho”.2

Por sua vez, o Decreto n. 3.048/2009, consoante art. 201, especialmente, § 22, enuncia que:

 “Art. 201. A contribuição a cargo da empresa, destinada à seguridade social, é de:

(…)

IV – dois vírgula cinco por cento sobre o total da receita bruta proveniente da comercialização da produção rural, em substituição às contribuições previstas no inciso I do caput e no art. 202, quando se tratar de pessoa jurídica que tenha como fim apenas a atividade de produção rural.(Redação dada pelo Decreto nº 4.032, de 2001)

(…)

§ 21. O disposto no inciso IV do caput não se aplica às operações relativas à prestação de serviços a terceiros, cujas contribuições previdenciárias continuam sendo devidas na forma deste artigo e do art. 202.(Incluído pelo Decreto nº 4.032, de 2001)

§ 22. A pessoa jurídica, exceto a agroindústria, que, além da atividade rural, explorar também outra atividade econômica autônoma, quer seja comercial, industrial ou de serviços, no mesmo ou em estabelecimento distinto, independentemente de qual seja a atividade preponderante, contribuirá de acordo com os incisos I, II e III do art. 201 e art. 202.(Incluído pelo Decreto nº 4.032, de 2001)”.

A legislação previdenciária, portanto, identifica dois regimes de tributação para a pessoa jurídica produtora rural, ou seja, a regra geral como as demais empresas incidente sobre a folha de salário/remuneração ou a substituição desta pela tributação decorrente da receita da comercialização da atividade rural (Funrural).

Segundo a lei e regulamentação (art. 25 da Lei n. 8.870/94 e art. 201 do Decreto 3.048/2009), podemos notar que a tributação pelo Funrural é a exceção, de maneira que para se gozar desta forma de apuração é necessário cumprir o estabelecido nas disposições normativas, em especial: (i) – ser pessoa jurídica; (ii) – ter receitas provenientes de produção rural; (iii) – atividade exclusivamente com finalidade rural; (iv) – salvo agroindústria, não é possível o recolhimento por meio da receita, em substituição à folha, caso a pessoa jurídica tenha outras atividade econômica autônoma (comércio, serviço ou indústria), independente da preponderância.

Deste modo, o produtor rural pessoa jurídica, segundo art. 25 da Lei n. 8.870/94, em substituição à tributação dos incisos I e II, do art. 22 da mesma lei, sofreria uma tributação sobre a receita bruta de3: (i) – 2,5% (dois vírgula cinco por cento) para a seguridade social; (ii) – 0,1% (zero vírgula um por cento) para o financiamento dos riscos para o acidente do trabalho (RAT).

Convém ainda esclarecer que o SENAR também sofre substituição da folha pela receita bruta no percentual de 0,25% (zero vírgula vinte e cinco por cento). Totalizando, assim, 2,85% (dois vírgula oitenta e cinco por cento) sobre a receita bruta da comercialização rural.

Com relação ao produtor rural pessoa jurídica, o principal aspecto a ser enfrentado é a caracterização deste como tal, a fim de que seja possível a tributação pelo Funrural.

Isto porque, seguindo o art. 201, do Decreto 3.048/99, temos o art. 165, I, “b”, 1, da Instrução Normativa n. 971/99, onde se afirma que seria produtor rural pessoa jurídica aquele “empregador rural que, constituído sob a forma de firma individual ou de empresário individual, assim considerado pelo art. 931 da Lei nº 10.406, de 2002 (Código Civil), ou sociedade empresária, tem como fim apenas a atividade de produção rural, observado o disposto no inciso III do § 2º do art. 175”.

De tal sorte, podemos reconhecer como produtor rural pessoa jurídica aquele que tem por fim “apenas a atividade de produção rural”.4 Bem por isso, se houver outra atividade, por parte da pessoa jurídica, que não seja a produção rural, estaria descaracterizada a natureza jurídica de produtora rural.

Mais do que isso, a caracterização como produtor rural pessoa jurídica impõe a observância ao art. 175, § 2º, inciso III da Instrução Normativa SRF 971/99 (v. art. 165, I, “b”, 1).

Enuncia o art. 175, § 2º, inciso III da Instrução Normativa n. 971/99 que:

“Art. 175. As contribuições sociais incidentes sobre a receita bruta proveniente da comercialização da produção rural, industrializada ou não, substituem as contribuições sociais incidentes sobre a folha de pagamento dos segurados empregados e trabalhadores avulsos, previstas nos incisos I e II do art. 22 da Lei nº 8.212, de 1991, sendo devidas por:

(…)

§ 2º Não se aplica a substituição prevista no caput, hipótese em que são devidas as contribuições previstas nos incisos I e II do art. 22 da Lei nº 8.212, de 1991:

(..)

III – quando o produtor rural pessoa jurídica, além da atividade rural:

a) prestar serviços a terceiros em condições que não caracterize atividade econômica autônoma, definida no inciso XXII do art. 1655, exclusivamente em relação a remuneração dos segurados envolvidos na prestação dos serviços, excluída a receita proveniente destas operações da base de cálculo das contribuições referidas no caput;

b) exercer outra atividade econômica autônoma, definida no inciso XXII do art. 165, seja comercial, industrial ou de serviços, em relação à remuneração de todos os empregados e trabalhadores avulsos;”

Daí ser possível concluir, levando em consideração o Decreto n. 3.048/99 e Instrução Normativa n. 971/99, que será produtor rural pessoa jurídica, sujeitando-se ao Funrural, quando se dedicar exclusivamente à atividade rural, pois, se realizar outra atividade econômica autônoma, deverá recolher pela regra geral, ou seja, as contribuições previdenciárias incidirão sobre a folha de salário e/ou remuneração, conforme art. 22 da Lei n. 8.212/91. A única exceção será a prestação de serviços a terceiros, mas, mesmo nesta hipótese, não poderá caracterizar atividade econômica autônoma.

Dentro desta perspectiva, levando em consideração os aspectos que caracterizam a pessoa jurídica como produtor rural, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) entende que quando aquele “se dedique a outras atividades, além da produção, deverá recolher as contribuições sobre a folha de pagamentos, não estando abrangido pela substituição prevista no art. 25 da Lei n ° 8.870/1994”.6

 

Neste sentido também assentou em outra oportunidade:

PRODUTOR RURAL PESSOA JURÍDICA. REGIME DE TRIBUTAÇÃO SUBSTITUTIVO. PRESSUPOSTOS. EXPLORAÇÃO DE OUTRAS ATIVIDADES. NÃO ENQUADRAMENTO. Somente poderá fazer jus ao pagamento da contribuição substitutiva incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização da produção rural, inscrita no artigo 25 da Lei n° 8.870/1994, o produtor rural pessoa jurídica, exceto a agroindústria, que não desenvolva outra atividade autônoma, o que não se vislumbra no caso vertente, onde a autuada, além da atividade rural, explora outras atividades de aluguel, incorporação imobiliária e exploração de estacionamentos, sujeitando-se, portanto, à tributação sobre a folha de Pagamentos7

Apesar desta clareza do Decreto n. 3.048/99 e Instrução Normativa n. 971/99, bem como jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, é possível questionar esta interpretação?

Nos parece que a resposta é sim!

Isto porque, em nossa Constituição Federal de 1988, que pelo art. 1º, configura um Estado Democrático de Direito e consagra a separação dos poderes (art. 2º), o princípio da legalidade no sentido geral, está fundado no art. 5º, inciso II, que dispõe: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Apesar de esta disposição ser suficiente para consagrar a necessidade de respeito à legalidade, o constituinte de 1988, talvez, por força da recente ditadura extirpada, consignou em diversas partes da Constituição este princípio, reforçando sobremaneira sua atuação no direito constitucional brasileiro8.

Por sua vez, o art. 37, “caput”, da Constituição Federal reitera a necessidade de observância do princípio da legalidade na atuação da Administração Pública (Poder Executivo), direta e indireta.

Em relação ao Poder Executivo, ainda, deixa clarividente a atuação segundo a lei, ao preceituar, em seu art. 84, inciso IV, da Constituição, que compete privativamente ao Presidente da República “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Equivale dizer: concede ao Poder Executivo a função regulamentar como forma de atuação complementar e acessória para a fiel execução da Lei. Mais do que isso, o art. 49, inciso V, confere competência exclusiva ao Congresso Nacional para sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”, revelando a obrigatoriedade do respeito à lei.

Não olvidemos, ainda, em matéria tributária, a previsão do art. 150, I, da Constituição, que impõe a majoração ou criação de tributo somente por lei.

Diante de tais previsões constitucionais acerca da legalidade, ao se analisar a existência do Decreto e Instrução Normativa, nota-se que houve uma efetiva inovação criando uma obrigação ou restrição ao texto da lei.

O Decreto 3.048/99 e a própria IN 971/99, ao exigir que a pessoa jurídica produtora rural – como é caso – somente possa ser tributada sobre a receita bruta, conforme art. 25, da Lei n. 8.870/94, caso exerça apenas aquela atividade econômica, está inovando ao que está posto em lei, inclusive, para restringir sua aplicabilidade, não se tratando de qualquer tipo de “delegação regulamentar” ou mesmo esclarecimento de questões técnicas que levam a uma maior abertura e liberdade aos atos infralegais.

Ao se analisar o art. 25, da Lei n. 8.870/94, podemos notar que o legislador emprega a expressão “que se dedique à atividade rural”. Dedicar à atividade rural, em momento algum, significa dedicar-se apenas ou única e exclusivamente àquela.

Com isso, o Decreto n. 3.048/99 resta inquinado por vício de inconstitucionalidade indireta e ilegalidade, por violar de forma direta o princípio/regra da legalidade, em especial, art. 84, IV, da Constituição, bem como art. 25, da Lei n. 8.870/949.

Não deixa ainda o próprio Decreto, como ainda a IN 971/99, diante do respeito à legalidade, em observância ao art. 25, da Lei n. 8.870/94, de caracterizar atos ilegais, de conformidade com jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.10

Possível concluir no sentido de que o art. 201, IV, do Decreto n. 3.048/99, bem como Instrução Normativa n. 971/2009, ao exigirem a exercício pela pessoa jurídica apenas da atividade rural, viola claramente o princípio/regra da legalidade, o qual impõe o respeito à lei (art. 25 da Lei n. 8.870/94), impedindo atos que inovem a ordem jurídica, principalmente, para criar restrições ao exercício de um direito posto pelo legislador.

1 ““Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de: I – vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa. II – para o financiamento do benefício previsto nos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, no decorrer do mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos: (Redação dada pela Lei nº 9.732, de 1998).a) 1% (um por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante o risco de acidentes do trabalho seja considerado leve; b) 2% (dois por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado médio; c) 3% (três por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado grave. III – vinte por cento sobre o total das remunerações pagas ou creditadas a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados contribuintes individuais que lhe prestem serviços;”.

2 – Redação anterior: “Art. 25. A contribuição devida à seguridade social pelo empregador, pessoa jurídica, que se dedique à produção rural, em substituição à prevista nos incisos I e II do art. 22 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, passa a ser a seguinte: (Redação dada pela Lei nº 10.256, de 9.7.2001)I – dois e meio por cento da receita bruta proveniente da comercialização de sua produção; II – um décimo por cento da receita bruta proveniente da comercialização de sua produção, para o financiamento da complementação das prestações por acidente de trabalho. § 1o O disposto no inciso I do art. 3o da Lei no 8.315, de 23 de dezembro de 1991, não se aplica ao empregador de que trata este artigo, que contribuirá com o adicional de zero vírgula vinte e cinco por cento da receita bruta proveniente da venda de mercadorias de produção própria, destinado ao Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR). (Redação dada pela Lei nº 10.256, de 9.7.2001) § 3º Para os efeitos deste artigo, será observado o disposto no § 3º do art. 25 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, com a redação dada pela Lei nº 8.540, de 22 de dezembro de 1992. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997). § 5o O disposto neste artigo não se aplica às operações relativas à prestação de serviços a terceiros, cujas contribuições previdenciárias continuam sendo devidas na forma do art. 22 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991”.

3 A tributação sobre a receita bruta não substituiu outras contribuições incidentes sobre a folha, como o percentual de 20% na contratação de autônomos (art. 22, inciso III, Lei n. 8.212/91), como também salário-educação e INCRA. Com relação aos terceiros: arts. 111-F e 111-G da Instrução Normativa SRF n. 971/99.

4 Nos moldes do art. 165, inciso II, da Instrução Normativa n. 971/99: “produção rural, os produtos de origem animal ou vegetal, em estado natural ou submetidos a processos de beneficiamento ou de industrialização rudimentar, bem como os subprodutos e os resíduos obtidos por esses processos”.

5 “XXII – atividade econômica autônoma a que não constitui parte de atividade econômica mais abrangente ou fase de processo produtivo mais complexo, e que seja exercida mediante estrutura operacional definida, em um ou mais estabelecimentos. (Redação dada pela Instrução Normativa RFB nº 1.071, de 15 de setembro de 2010)” (IN 971/2009 art. 165).

6 2º CC, Recurso n. 146.136, Rel. Cons. Marco André Ramos Vieira, 5ª Câmara, j. 11/12/2007.

7 CARF, 2ª Seção, Ac. 2401002.824, Rel. Ricardo Magalhães, 4ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, j. 22/01/2013.

8 CALCINI, Fábio Pallaretti. O princípio da legalidade. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS, 2016.

9 – STF, ADI 996 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 11-3-1994, P, DJ de 6-5-1994. Neste sentido: STF, ADI 4.176 AgR, rel. min. Cármen Lúcia, j. 20-6-2012, P, DJE de 1º-8-2012.

10 – STJ, REsp 1754668/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/10/2018, DJe 11/03/2019.

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    é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.

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