Opinião

A Medida Provisória 932/2020 e o desvio de finalidade em relação ao Sistema S

Autor

  • Caio Cesar Braga Ruotolo

    é advogado tributarista em São Paulo membro do Conselho de Assuntos Tributários da Fecomércio em São Paulo ex-coordenador Jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo pós-graduado com Especialização em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional e em Gestão de Recursos Humanos com experiência consultiva e contenciosa nas áreas de Direito Tributário Empresarial Ambiental Aeronáutico e crimes contra a ordem tributária.

22 de maio de 2020, 18h06

Dentro da linha do discurso de preservação dos empregos no momento em que atividade econômica nacional deverá ser atingida com mais intensidade pela crise provocada pela disseminação da Covid-19, uma das alterações adotadas recentemente foi a publicação da Medida Provisória 932/2020 que promoveu a redução das contribuições para o Sistema S até 30 de junho, com vigência a partir de 1º de abril.

Tal medida reduziu as contribuições que incidem sobre a folha de pagamentos, mas que são destinadas a terceiras entidades e fundos, denominadas no senso comum de contribuições ao Sistema S, sendo reduzidas as alíquotas dos seguintes serviços: Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop), Serviço Social da Indústria (Sesi), Serviço Social do Comércio (Sesc) e Serviço Social do Transporte, Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte, além do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar).

Muitas entidades atingidas com as reduções não se insurgiram contra a referida MP, muito provavelmente por conta do curto período de tempo que as reduções foram propostas, todavia, vale um alerta sobre a sua inconstitucionalidade por desvio de finalidade mesmo que seja somente por conta da "mera" redução de alíquota.

Entendemos que há fundamentos para sua contestação, pois em que pese a MP vir no bojo das desonerações tributárias, no caso sobre a folha das empresas, ainda que em percentuais mínimos, o impacto para as referidas entidades é gritante, eis que a maioria delas presta grandes serviços de profissionalização, saúde, cultura, educação, esporte e lazer, em substituição à ausência total ou parcial do Estado nesses ramos.

É fato que as contribuições que incidem sobre a folha de pagamentos e são destinadas ao dito Sistema S estão sempre no foco dos governantes, que ora buscam subtraí-las totalmente, ora buscam se apoderar de uma parte dos valores arrecadados desviando, com isso, suas finalidades constitucionais.

Já existiram propostas desse mesmo governo federal de alterar a base de arrecadação do Sistema S da folha de salários para uma contribuição sobre movimentação financeira substitutiva das contribuições previdenciárias, ideia essa que não foi implementada, por enquanto!

A mesma equipe econômica pensou também em reduzir as alíquotas em 30% ou 50% para aqueles contribuintes que criassem novos empregos, cujo modo de implementação jamais foi divulgado.

Quando tratamos de tributação, é importante termos sempre em mente as distinções entre contribuições e os demais tributos, vale dizer, o que as diferencia dos demais é a definição de suas finalidades que devem ser por elas alcançadas e isso consta da Constituição Federal.

No artigo 149 da CF há o fundamento de validade de diversas contribuições, veja-se:

"Artigo 149  Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos artigos 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no artigo 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo".

Com efeito, nos termos do texto constitucional, as contribuições de intervenção no domínio econômico estão plenamente vinculadas ao atingimento dos objetivos da ordem econômica constante do título VII da CF. Por sua vez, as contribuições de interesse das categorias profissionais ou econômicas (CREA, OAB, etc) têm destinação exata que é o exercício de atividades profissionais ou a defesa de interesses profissionais ou econômicos, como por exemplo a contribuição sindical.

No que tange às contribuições sociais, estas visam a alcançar finalidades sociais que estão especialmente previstas no título VIII da CF, que trata da ordem social. E tais finalidades são mandamentos constitucionais que somente podem ser alterados por emenda constitucional, desde que obedeçam as cláusulas pétreas, a teor do artigo 60, § 4º, da CF.

As contribuições sociais denominadas Sistema S, tais como Sesi, Senai, Sesc, Senat e Senac, entre outras, possuem destinação a diversos objetivos, tais como social, educação, cultura, esporte e lazer.

Por sua vez, as contribuições a Sesi, Senai, Sesc, Senac, etc, possuem fundamento constitucional no artigo 240, veja-se:

"Artigo 240  Ficam ressalvadas do disposto no artigo 195 as atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical. A base de cálculo dessas contribuições está diretamente vinculada com o artigo 240 da CF, que autoriza a sua utilização para o financiamento das entidades de serviço social e de formação profissionais vinculadas ao sistema sindical".

Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal no RE nº 412368, veja-se ementa abaixo:

"EMENTA: TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÕES AO SEST/SENAT (DESDOBRADAS DO SESI/SENAI). DESTINAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. DECRETOS-LEIS 6.246/1994 E 9.403/1956. LEI 8.706/1993. ART. 240 DA CONSTITUIÇÃO.

1. O artigo 240 da Constituição expressamente recepcionou as contribuições destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical. Como o objetivo da agravante é exonerar-se do pagamento dos tributos nos períodos de apuração que vêm se sucedendo após a promulgação da Constituição de 1988, eventual vício formal relativo aos exercícios anteriores é irrelevante.

2. A alteração do sujeito ativo das Contribuições ao Sesi/Senai para o Sest/Senat é compatível com o artigo 240 da Constituição, pois a destinação do produto arrecadado é adequada ao objetivo da norma de recepção, que é manter a fonte de custeio preexistente do chamado 'Sistema S'. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (RE 412368 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 01/03/2011, DJe-062 DIVULG 31-03-2011 PUBLIC 01-04-2011 EMENT VOL-02494-01 PP-00059)"

Veja-se que o artigo 240 da CF dá total respaldo para a continuidade da cobrança das contribuições ao Sistema S incidentes sobre a folha de salários, além das contribuições previdenciárias previstas no artigo 195 da CF, que recaem sobre a mesma base. Não existindo o artigo 240 acima, somente haveria autorização constitucional expressa para a incidência sobre a folha das contribuições previdenciárias e não haveria a recepção das demais contribuições então existentes em 1988 sobre a mesma base.

O artigo 240 da CF, portanto, dá autorização para a utilização das contribuições ao Sistema S para o financiamento das entidades de serviço social e formação profissional que já vinham sendo cobradas desde anteriormente ao advento da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, muito importante a recente decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que em ação ajuizada pelo Sistema Fecomércio do Distrito Federal concedeu liminar para suspender a redução de 50% da arrecadação compulsória de Sesc e Senac, determinada por meio de medida provisória.

A decisão foi proferida pela desembargadora Ângela Maria Catão Alves, da 8ª turma do TRF-1, processo nº 1011876-66.2020.4.01.0000, a qual entendeu que houve desvio de finalidade dos recursos por meio da Medida Provisória nº 932/2020, tendo em vista que o Sesc e o Senac possuem destinação determinada dos valores para a profissionalização, saúde, cultura, educação, esporte e lazer.

Veja-se trecho da referida decisão:

"Sendo assim, as contribuições incidem sobre a folha de pagamentos das empresas pertencentes à categoria de trabalhadores que compõe o 'Sistema S' (Senai, Senac, Sest, Sescoop, etc…) sendo descontadas e repassadas às entidades de modo a financiar atividades. A redução em 50% das alíquotas de contribuição, bem como o aumento de 3,5 para 7% do valor cobrado pela Secretaria da Receita Federal a título de remuneração ao serviço de arrecadação, ainda que temporário, pode comprometer a oferta e a manutenção das atividades de aperfeiçoamento profissional, saúde, lazer dos trabalhadores. Essas atividades constituem a própria razão de existir e finalidade dessas instituições, ressalte-se, com amparo constitucional.

Nesse contexto, o desvio de finalidade pode estar configurado no teor da MP nº 932/2020, ao atingir fim diverso do previsto em lei ou na Constituição, em relação às entidades que compõe o 'Sistema S'. Afinal, o ente estatal não pode, no desempenho de suas atribuições, impor atos normativos que possam prejudicar o alcance dos fins, que regem a prática de legislar. É necessário adequar as normas, ainda que em caráter emergencial, às finalidades contidas nos dispositivos constitucionais, o que representa o limite ao poder discricionário do administrador".

Por isso, a decisão sinaliza que também a mera redução das alíquotas das contribuições ao Sistema S podem, sim, comprometer as suas finalidades constitucionais de modo que tais questões devem ser bem tratadas de forma contextual. Desonerações nesse momento em que vivemos são importantes para a sobrevivência de muitas empresas, mas ao mesmo tempo devem ser avaliadas as suas consequências de forma geral, pois a judicialização nunca é um bom caminho, e da forma açodada como estão sendo realizadas essas alterações legais caberá, mais uma vez, ao Judiciário decidir o que prevalecerá.

Autores

  • Brave

    é advogado tributarista em São Paulo, membro efetivo do Conselho de Assuntos Tributários da Fecomercio, ex-coordenador jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, ex-membro da Comissão de Direito Tributário da OAB-SP e da Comissão de Assuntos Fiscais da CNI, pós-graduado com especialização em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!