Opinião

O absolutismo dos direitos individuais

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21 de maio de 2020, 17h02

As democracias liberais ocidentais enfrentam hoje um inimigo comum no combate à pandemia da Covid-19: o livre arbítrio, alerta feito pelo professor e autor bestseller Howard Markel no artigo escrito por Donald G. McNeil Jr. para o New York Times com o título: "To take on the coronavirus, go medieval on it".

Segundo McNeil Jr, há duas formas de combater uma pandemia: o jeito moderno e o jeito medieval, estando o primeiro ligado às descobertas científicas, enquanto o segundo implicaria a adoção de medidas como a quarentena e o fechamentos de fronteiras, por exemplo. A divisão feita por McNeil sugere, num primeiro momento, um antagonismo, com prevalência, como o próprio nome sugere, dos institutos modernos sobre os medievais, em especial quando pensamos num mundo que vive hoje a quarta revolução industrial, termo cunhado pelo economista e fundador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, para identificar as novas tecnologias desenvolvidas pelo homem, como a inteligência artificial.

Essa primeira impressão, todavia, é deixada para trás ao longo da leitura, quando se constata que o desconhecimento exato de como funciona o vírus exige a adoção das duas medidas de enfrentamento, a moderna e a medieval, especialmente quando esta confere àquela tempo para ser desenvolvida adequadamente.

O momento não é de cisão, mas de coesão, de maneira que as divisões, em especial as de cunho ideológico, que transformam o uso ou não uso de máscaras faciais e a adoção ou não adoção do isolamento social em atos políticos nos tomam tempo e custam vidas, como alerta o prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, em entrevista dada ao Jornal da Manhã da Jovem Pan no último dia 9.

Falemos então das medidas medievais, em especial do lockdown proposto por alguns estados brasileiros diante do não achatamento da curva de infecção pelo novo coronavírus, que, antes mesmo de atingir o seu pico, já trouxe a ocupação total dos leitos de muitos hospitais públicos e privados. A grande crítica que se coloca é a interferência na esfera da liberdade de ir e vir do indivíduo e o risco causado à economia.

Nas democracias periféricas como a brasileira, as pautas democráticas sempre estiveram ligadas à participação econômica. Questões que em algum momento não importavam à maioria, porque diziam respeito àqueles sem representatividade, passaram a ser relevantes quando atingiram aqueles com poder econômico.

A liberdade e a igualdade, os dois pilares das democracias liberais, sempre foram discutidos de maneira vaga e obscura em sociedades desiguais. O "grande valor liberdade" e o "ilusório valor igualdade" travam um novo embate em 2020, ofuscando, em alguns momentos, a guerra que deveríamos estar lutando contra o coronavírus.

Tem-se, quanto à suposta ofensa aos direitos e garantias individuais, que a crítica não resiste à constatação de que inexistem direitos absolutos, que podem, sim, ser relativizados em face de uma medida temporária, justificada em estudos científicos internacionais que correlacionam o lockdown ao achatamento da curva de infecção.

Não se cuida, portanto, de simples autoritarismo do governante que, confundindo a sua vontade com a da própria Constituição, esquece que a Lei Maior, longe de lhe conferir prerrogativas absolutas, limita o seu poder. Vale lembrar, ainda, que a liberdade numa democracia convive com aquele outro pilar que vive sendo esquecido. Qual era mesmo? Ah, sim, a igualdade!

Encontramos hoje, em alguns estados brasileiros, municípios que ainda não atingiram o pico da curva de contaminação, mas que já apresentam um colapso das redes públicas e privadas de saúde, impossibilitadas de admitir a entrada de pacientes novos, conforme sinalizam os cartazes neste sentido afixados em suas portas de entrada, como é o caso, por exemplo, de Fortaleza, e, justamente por isso, determinaram o lockdown, seguindo os passos de cidades ao redor do globo que conseguiram achatar a curva de infecção com a adoção dessa medida.

Possuímos também, é verdade, registros do aumento do número de desempregados e de encerramento de atividades empresariais, o que, embora muito preocupante, não significa, neste momento, o colapso do sistema econômico brasileiro, segundo o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, em entrevista concedida ao canal no YouTube da XP Investimentos, em que relatou que a economia brasileira possui fôlego para enfrentar uma quarentena, inexistindo, neste primeiro momento, qualquer embate entre vidas e a economia.

Diante disso, percebe-se que a quarentena permite que os hospitais públicos e privados ganhem fôlego e não entrem em colapso e, muito importante, ao ser limitada no tempo, evita que uma futura crise econômica ocorra de maneira irreversível, nos lembrando que nessa vida só há uma coisa irremediável: a morte.

As críticas de Platão e Aristóteles à democracia diante da impossibilidade de levar todos os assuntos ao povo para uma tomada de decisão são bastantes pertinentes e atuais, pois há determinados temas que exigem, efetivamente, o conhecimento aprofundado para que se tome uma decisão legítima. Uma das grandes questões de 2019 foi a do Brexit, cuja decisão coube ao povo britânico, questionando-se como o cidadão leigo pode proferir a palavra final sobre um assunto tão complexo? A mesma dúvida se coloca agora em 2020, diante da pandemia do novo coronavírus: como admitir que o Estado se afaste do seu papel regulador e permita que os indivíduos usem do seu bom senso e a consciência para evitar aglomerações e conter a infecção?!

Os pedidos de fim da quarentena não possuem embasamento científico, estando relacionados a resultados econômicos, trazendo uma desumanização dos mortos, que deixam de ser pessoas e passam a ser números.

Discute-se sobre a eficácia das medidas de lockdown diante de uma suposta fabricação de notícias falsas pela mídia conspiratória ou mesmo pela China imperialista, mas a tese não resiste à análise dos registros históricos da gripe espanhola que atestam, por exemplo, que o número de mortes das cidades norte-americanas que aderiram à quarentena como forma de conter a epidemia foi menor do que o daquelas que não fecharam ruas, comércios e escolas.

Razão assiste a Markel ao afirmar que "numa epidemia, a ideia de que 'cada um está intitulado a agir segundo seu discernimento' é realmente perigosa", visto que assim como um Estado Democrático de Direito não convive com a ideia de governantes autoritários, não permite também a existência de direitos individuais absolutos que autorizem o indivíduo fazer prevalecer o seu interesse pessoal sobre o do bem comum.

A vontade soberana do povo é manifestada por meio do voto, não pela insurgência violenta e anti-democrática aos atos dos governantes estaduais, municipais ou federais, revelando uma ideologia política como pano de fundo e desacreditando a própria lógica do mercado ao esquecer que a economia se recupera mesmo diante de cenários catastróficos, como a crise de 2008, de maneira que sempre será melhor desafiar a economia do que um vírus desconhecido que, ao contabilizar um número cada vez maior de mortos, revela que está longe de ser apenas uma "gripezinha".

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