Opinião

Liberdades de reunião e locomoção não estão sujeitas a lockdown

Autor

  • Marcelo Lauar Leite

    é advogado doutor em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. e professor adjunto da Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa).

21 de maio de 2020, 7h03

Emergência de saúde pública internacional. Pandemia. Incubação por até 14 dias. Transmissão comunitária de fácil propagação. Sintomas comuns a outras viroses. Inexistência de vacina ou tratamento específico. Mais de cento e cinquenta mil casos confirmados e dez mil mortes[1]. Curva ascendente em eixo gráfico. Carência quantitativa e qualitativa de leitos hospitalares.

Pela ementa e pelos diários oficiais, a temporada de lockdowns parece estar aberta e, com ela, manifesto alguma surpresa em, a par das publicações aqui mesmo do ConJur[2], estar do lado aparentemente contrarian[3] quando o assunto são as liberdades de reunião e locomoção — ir e vir, deslocamento, circulação — em tempos da pandemia. Sem mistérios: os decretos recém editados por unidades federativas municipais, na medida em que firam esses direitos, são inconstitucionais.

Primeiramente, decretos são atos normativos secundários com finalidades de regulamentação ou execução de atos normativos primários[4]. E o que diz o ato normativo primário de referência[5]? Que, em relação às liberdades de reunião e circulação, as autoridades poderão adotar medidas como isolamento, quarentena e restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, além de locomoção interestadual e intermunicipal, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Embora o rol seja exemplificativo, nem o presidente da República, muito menos governadores ou prefeitos, podem contrariar suas condições de aplicação, quais sejam:

  1. as medidas de quarentena ou isolamento só podem ser determinadas face a pessoas, respectivamente, suspeitas ou comprovadamente contaminadas (art. 2º); e,
  2. por derivação às previsões sobre a locomoção interestadual e intermunicipal, qualquer interferência na liberdade de ir e vir em âmbito intramunicipal (não prevista expressamente pela Lei) também requer recomendação técnica e fundamentada da ANVISA[6].

Em segundo lugar, independentemente de inovação, acaso fosse veiculada proibição de circulação pela referida Lei, ainda haveria inconstitucionalidade. Claro que o parlamento tem competência para refinar direitos fundamentais – limitando alcance e conteúdo em benefício de titulares de outros fundamentais, inclusive[7] –, mas esse não é um poder ilimitado. Pouco importa a nobreza do objetivo, há restrição na restrição, sendo inadmissível romper-se o conteúdo (núcleo) essencial de um direito[8], mormente quando em direção à sua aniquilação.

Ilustro. Todos podem conduzir carros, respeitadas as condições aperfeiçoadas no processo legislativo —v.g., não se pode trafegar embriagado, inabilitado ou na contramão. Mesmo assim, dados do Ministério da Saúde apontam que mais de trinta mil pessoas morrem anualmente por acidentes de trânsito. É incalculável quanto sofrimento poderia ser evitado se a lei impedisse a fabricação, a comercialização e o uso de veículos terrestres no Brasil. Sem carros, ônibus e caminhões, as pessoas circulariam de outras maneiras — mais caras/baratas, rápidas/lentas, eficientes/ineficientes.

De certo, mesmo se modelos estatísticos indicarem que, entre um e outro réveillon, dezenas de milhares de vítimas padecerão em acidentes de trânsito, impedir a locomoção por veículos terrestres seria inaceitável. Mais do que o reconhecimento e o respeito a direitos fundamentais alheios — no caso, a vida — limitações sobre outros destes — aqui, a liberdade — também precisam ir ao encontro das justas exigências do bem-estar coletivo[9], como aquelas ligadas a valores como autonomia, independência, conforto, celeridade e outros interesses ligados à qualidade de vida[10] de uma sociedade.

A relação entre essa restrição hipotética e a levada a efeito por vários decretos de lockdown é evidente. Por vários deles, de maneira até mais gravosa, há a obrigação de permanência em casa para todas as pessoas, independentemente de suspeita ou contaminação, sendo o trânsito autorizado em poucas situações[11]. Por decreto — insisto —, cidades puseram seus munícipes em uma prisão domiciliar sui generis, chegando ao cúmulo de proibir e sancionar o contato entre familiares[12]. A essa altura, não é mais novidade a aplicação de multas e a detenção de pessoas que circulam em áreas de passeio público[13]. Sob nossos narizes, a liberdade tornou-se a exceção.

Então, como proteger a vida das pessoas frente a uma propagação viral que tem nelas seu principal vetor? Pela aplicação científica do critério da proporcionalidade. Se várias são as medidas adequadas para a redução da velocidade de contágio, qual delas guarda suficiência e menor impacto sobre outros direitos fundamentais?

As possibilidades são imensas. Campanhas educativas para o distanciamento social, regimes de trabalho remoto, aumento substancial de oferta no transporte público, limitação do número de pessoas em ambientes fechados abertos ao público, ampliação dos horários de atendimento em serviços essenciais, testagem em massa, controle rigoroso no cumprimento de quarentena para os suspeitos e o isolamento de infectados, uso obrigatório de máscaras para a população em geral, etc. No entanto, qual plano de ação está sendo adotado hoje[14]? Que medidas foram efetivamente realizadas, fiscalizadas e mensuradas? Quais modelos de análise subsidiam as restrições aplicadas? Não se sabe.

Enquanto isso, as contenções decretadas parecem justificadas a olhos comuns, mormente quando, de um lado, o presidente da República coleciona crimes de responsabilidade e ignora autoridades sanitárias nacionais e internacionais[15]; de outro, o Ministério da Saúde declara que estamos “navegando às cegas” porque “não se sabe o que fazer”[16]. Por crível desespero de Prefeitos, criminalizar[17] o exercício de direitos fundamentais de locomoção e reunião passou a ser visto como alternativa plausível quando, em um estado de normalidade constitucional[18], não o é.

Independentemente das recomendações sanitárias, a Constituição não é derrogável por nenhum chefe de Poder Executivo. A essa altura, urge que a magistratura aja como sua última guarda defensiva ou, in dubio, pro liberdade, abstendo-se de ativismos despóticos. Parte da dificuldade de preservação de um sistema de liberdade está na exigência de uma constante rejeição de medidas aparentemente importantes para assegurar determinados resultados, mesmo sem que se saiba os custos dessa escolha[19]. O sistema de direitos e garantias fundamentais deve ser respeitado, inclusive — e sobretudo — em momentos de crise.

 


[1] Dados do Brasil coletados até 11 de maio de 2020 – WORLD HEALTH ORGANIZATION. Coronavirus disease (COVID-19): situation report – 112. Disponível em: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200511-covid-19-sitrep-112.pdf?sfvrsn=813f2669_2. Acesso em 12-5-2020.

[2] Como mostra a reportagem de Sérgio Rodas, citando os professores Pedro Estevam Serrano (PUC/SP), Gustavo Binenbojm e Carolina Fidalgo (UERJ) – https://www.conjur.com.br/2020-mai-09/restricoes-lockdown-nao-dependem-estado-sitio. Cf., – a TAMER JUNIOR, Paulo. A Covid-19 e a constitucionalidade do confinamento compulsório. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-14/paulo-tamer-constitucionalidade-confinamento-compulsorio. Acesso em 12-5-2020.

[3] Acompanhado, porém: cf. FERNANDES, Fernando Augusto; MARCHIONI, Guilherme Lobo. Vírus do autoritarismo na pandemia do coronavirus. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-11/opiniao-virus-autoritarismo-pandemiado-coronavirus. Acesso em 12-5-2020; ALMEIDA, Ricardo Marques de. Contra a Covid-19, não há direitos? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-12/ricardo-marques-covid-19-nao-direitos. Acesso em 12-5-2020.

[4] CF, art. 84, IV.

[5] Lei Federal n.º 13.979/2020 (Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019).

[6] Inexistente até 12 de maio de 2020.

[7] JELLINEK, Georg. Sistema dei diritti pubblici subbiettivi. 2. ed. Tradução de Gaetano Vitagliano. Milano: Società Editrice Libraria, 1912, p. 96-97.

[8] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. v. 4. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 338-340.

[9] Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 29, 2.

[10] MIRANDA, op. cit., p. 304.

[11] Decreto 96.253/2020 (Belém), art. 2º; Decreto 14.663/2020 (Fortaleza), arts. 5º e 8º.

[12] Decreto 96.253/2020 (Belém), art. 3º.

[13] REUTERS. Cariocas surfam na polêmica do isolamento durante pandemia do coronavírus. Disponível em: https://br.reuters.com/article/idBRKBN21P23Y-OBRTP. Acesso em 12-5-2020.

[14] O único Plano de Contingência (Federal) data de fevereiro/2020, prevendo basicamente a divulgação de medidas educativas e evolução da articulação burocrática entre os níveis de resposta “alerta”, “perigo iminente” e “emergência em saúde pública de importância nacional”, não tendo sofrido atualização desde então – cf.  https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/25/Livreto-Plano-de-Contingencia-5-Corona2020-210×297-16mar.pdf. Acesso em 12-5-2020.

[15] ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875. Acesso em 12-5-2020.

[16] CNN BRASIL. Brasil está 'navegando às cegas' no combate à COVID-19, diz ministro da Saúde. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/04/29/brasil-esta-navegando-as-cegas-no-combate-a-covid-19-diz-ministro-da-saude. Acesso em 12-5-2020.

[17] Face a possível tipificação dos crimes de desobediência (CP, 330) e infração de medida sanitária  preventiva (CP, 268). Sobre o assunto, cf. AZEVEDO, Clarissa. Coronavírus e o crime de infração de medida sanitária preventiva. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/tangerino-brezinski-crime-infracao-medida-sanitaria. Acesso em 12-5-2020; e TANGERINO, Davi; RODRIGUES, Gabriel Brezinski. O crime de infração de medida sanitária em uma epidemia de decretos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/tangerino-brezinski-crime-infracao-medida-sanitaria. Acesso em 12-5-2020.

[18] Somente no Estado de Sítio há legitimidade constitucional para a suspensão das liberdades de reunião e locomoção, com a “vantagem” – se é que se possa falar nisso em um abjeto regime de exceção constitucional – do controle parlamentar.

[19] HAYEK, F. A. Direito, legislação e liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. v. 1. Tradução de Anna Maria Capovilla et al. São Paulo: Visão, 1985, p. 68.

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