Interesse público

MP 966 e a responsabilidade dos agentes públicos

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

21 de maio de 2020, 8h17

Spacca
A responsabilidade civil (patrimonial) e administrativa (disciplinar) dos agentes públicos não se define por presunção ou pela simples ocorrência de dano à administração ou a terceiros. É exatamente o contrário: a ação ou omissão de agentes no campo funcional presume-se de boa-fé e conforme ao direito.

Para que a responsabilidade dos agentes públicos irrompa é fundamental que o (1) dano ou o agravamento do risco de dano seja antijurídico (não se deva suportar ou tolerar), (2) seja relevante (não insignificante), (3) reprovável (possível de evitação e não justificado), (4) culpável (deliberado, previsível ou resultante de erro de conduta evitável) e (5) diretamente imputável à ação ou omissão específica do agente público (individualizável e vinculado ao exercício da função pública). Todos esses elementos exigem investigação e prova das circunstâncias concretas do agir ou da inação dos agentes no exercício de função e da presença de causas excludentes da responsabilidade.

Trata-se de responsabilidade subjetiva, diversa da responsabilidade objetiva do Estado. Na responsabilidade subjetiva, além do nexo de imputação e da lesão ao bem jurídico em si, perquire-se o dolo ou a culpa do suposto infrator. Qual o grau da culpa? Essa é questão esclarecida pela recente Medida Provisória 966, de 13 de maio de 2020, publicada no Diário Oficial do dia seguinte.

A rigor, a MP 966 introduz normas interpretativas e, caso venha a ser convertida, terá caráter de lei interpretativa. São enunciadas prescrições que detalham ou clarificam o disposto no artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), artigo introduzido pela Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018.

O que prescreve esse enunciado da LINDB? Ei-lo:

"Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro."

A MP 366 contempla enunciados que interpretam o artigo 28 da LINDB em termos semelhantes ao do parágrafo primeiro que constava do artigo 28, vetado por ocasião da sanção da Lei nº 13.655/20181 e, por igual, ao enunciado do artigo 54 do Anteprojeto de Normas Gerais de Organização Administrativa, que antecedeu e influenciou a elaboração da LINDB.2

Qual o conceito interpretado pela MP 966? O conceito de erro grosseiro para fins de responsabilização patrimonial e disciplinar dos agentes públicos. Erro grosseiro é, nesse domínio, conceito equivalente ao de culpa grave e passou a ser invocado em sede de responsabilização dos agentes públicos a partir de decisões do STF sobre sanções aplicadas a pareceristas públicos e situações similares (v.g., MS 24.631/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 1º/2/2008; MS 27867 AgR/DF, rel. Min. Dias Toffoli, 18.9.2012; MS 30928 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe-171, 15-08-2016).

Essa jurisprudência, em decisão recente, foi explorada e aplicada com precisão por acórdão lavrado pelo Ministro Luiz Fux, com invocação também da LINDB (MS 35196 AgR, Primeira Turma, julgado em 12/11/2019, DJe-022 04-02-2020)3.

Pode parecer surpreendente que se precise editar Medida Provisória para reafirmar e detalhar disposição expressa de lei vigente, que aplica jurisprudência firme do STF, sob a argumento de premente necessidade de atenuar a insegurança jurídica neste momento de pandemia da Covid-19. É que, na prática, a disposição lacônica do Art. 28 da LINDB, desacompanhada dos seus parágrafos, permanece sofrendo resistência de alguns órgãos de controle. O TCU, por exemplo, decidiu, litterim:

“O dever de indenizar os prejuízos ao erário permanece sujeito à comprovação de dolo ou culpa, sem qualquer gradação, como é de praxe no âmbito da responsabilidade aquiliana, inclusive para fins do direito de regresso (art. 37, § 6º, da Constituição Federal). As alterações promovidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINB) pela Lei 13.655/2018, em especial a inclusão do art. 28, não provocaram modificação nos requisitos necessários para a responsabilidade financeira por débito”. (Acórdão 2.391/2018, Plenário, Tomada de Constas Especial, Rel. Min. Benjamin Zymler, Boletim de Jurisprudência do TCU n. 241 de 06/11/2018).[Grifo nosso].

Neste acórdão, o TCU fez uma distinção não contemplada no artigo 28 da LINDB: para a fins punitivos, seria exigida a prova de dolo ou culpa grave (erro grosseiro); para fins reparatórios, supostamente domínio fora do campo de incidência do artigo 28 e com fundamento no § 6º do artigo 37 da Constituição, seria exigida a prova de dolo ou da culpa simples.4 Em outros Acórdãos, o TCU invoca a exigência de “especial zelo” e a figura idealizada do “administrador médio” como parâmetro de controle (Acórdão 2.860/2018 – Pleno).

Na MP 966, os artigos 2º e 3º cuidam de esclarecer aspectos da aplicação do conceito de erro grosseiro, assimilado à culpa grave, mas limitam essa inteligência à prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da Covid-19 e o combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19.

Em verdade, não seria sequer necessário limitar as disposições da MP 966 ao contexto do enfrentamento da pandemia da Covid-19. O ideal é que essa cláusula de restrição temporal fosse eliminada. A incerteza jurídica em praticamente todos os domínios hoje é paralisante e desincentivadora do bom gestor na Administração Pública brasileira e, por óbvio, toda ou qualquer atuação e controle de atuação deve considerar os itens I a IV do Art. 3º. da MP 966/2020, sintonizados perfeitamente com o Art. 22 da LINDB.5

Nada há de inconstitucional nesses dispositivos. Essa graduação da culpa traz realismo à gestão pública e ao controle e, embora apenas com a LINDB tenha sido proclamada em termos gerais, é usual a graduação da culpa em diversos diplomas infraconstitucionais precedentes quanto à responsabilidade de magistrados (art. 133 do CPC/73; art. 143, I, do CPC/2015 e art. 49 da LC 35/1979), membros do Ministério Público (art. 85 do CPC/1973; art. 181 do CPC/2015), advogados públicos (art. 184 do CPC/2015) e defensores públicos (art. 187 do CPC/2015).

A MP 966 interpreta e densifica o Art. 28 da LINDB para assegurar maior segurança jurídica a agentes que não contam com a cobertura de normas especiais de graduação da culpa e, no mesmo passo, cobra dos órgãos de controle atuação zelosa na fundamentação de suas decisões, que deixam de poder adotar para o juízo de censura de agentes públicos paradigmas abstratos, atemporais ou idealizados de “gestor médio”6, conceitos presumidos ou a culpa simples. Todo e qualquer juízo de responsabilização, seja de reparação ou sanção punitiva, diante dos dispositivos ora expressos, passarão a exigir avaliação contextual e individualizada, pois deverá ser considerado no juízo de caracterização do erro grosseiro ou falta grave os obstáculos e dificuldades reais do agente público, pela complexidade da matéria e das atribuições exercidas, pela circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência ou pelas circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público.

Essas disposições não afastam a responsabilidade penal, política ou a responsabilidade por improbidade de qualquer agente público. A expressão agente público é a mais ampla, como se sabe. Mas a responsabilidade tem vários rostos e a responsabilidade civil e administrativa dos agentes públicos são apenas duas das faces da responsabilidade. Nenhum agente de má-fé deixará de ser responsabilizado na esfera política, penal ou por improbidade em razão do art. 28 da LINDB ou dos Arts. 2º e 3º da MP 966/2020. Porém, o agente inábil ou que erra de modo escusável não deve ser equiparado ao gestor de má-fé ou ímprobo, este último punido por legislação especial (Lei 8429/1992), exigente de conduta dolosa ou, pelo menos, eivada de culpa grave (STJ, AIA 30/AM, Rel. Min. Teori Zavaski, Corte Especial, Dje 28/9/2011).

O Art. 1º da MP 966/2020, no entanto, não pode ser mantido como foi redigido, pois padece de técnica legislativa inconsistente. Para enfatizar a aplicação de seus comandos durante a pandemia do Covid-19, a norma sugere uma suposta imunidade para tudo o mais, o que obviamente não é o que almeja prescrever, pois incidiria em inconstitucionalidade chapada. Espera-se que o Congresso Nacional altere radicalmente essa redação.

O “apagão das canetas”, o “direito administrativo do medo” (conceito cunhado por Fernando Vernalha)7, o fetiche da culpa no controle público8, não são fenômenos nacionais exclusivos. Luc Ferry, filósofo e ex-ministro francês, refere como fenômeno global a “desculpabilização do medo”, a transformação completa dos sentimentos associados ao medo, que deixa de ser percebido como algo essencialmente negativo e passa a ser introjetado e exibido sem causar vergonha. E, arremata, com uma analogia: “deve-se confessar que também o poder está paralisado pela angústia. Para cada projeto de reforma, ele mede o terreno, como banhistas que experimentassem, pusilânimes, com a ponta do pé, a água. Se estiver fria, retiram-se rapidamente. Não estando tão hostil, seguem pé ante pé, até a cintura, para uma meia-volta à primeira marola inoportuna. É trágico o resultado dessa situação: a impotência pública é tamanha que nossas democracias ficam praticamente sem ação”9

Essa matéria sensível não deveria ser lançada na agenda dos embates de narrativa política. No entanto, é o que ocorreu. Bastou a MP 966 ser editada que foi questionada por seis ações diretas de inconstitucionalidade com ilações várias, mas de escassa fundamentação jurídica (ADIs 6421, 6422, 6424, 6425, 6427 e 6428). Fala-se que foi editada para impedir o Presidente da República e seus assessores de serem responsabilizados por insistirem na indicação pública da “cloroquina”, medicamento considerado de incerta eficácia no tratamento da covid-19. Trata-se de algo surpreendente, pois desconhece-se qualquer responsabilização disciplinar ou civil do Presidente da República na história do país!

É indiscutível que atuação de má-fé na esfera administrativa deve ser punida e avaliada com rigor. O mesmo deve ocorrer em face de crimes e atos de improbidade praticados por gestores públicos. Para os gestores de boa-fé, no entanto, o controle não pode ser uma surpresa, um incentivo para a inércia, um desincentivo para a inovação, o oráculo obrigatório a que ser consultado antes de qualquer decisão. No mundo dos nossos dias, processos de risco complexos desafiam a capacidade de compreensão e reação dos gestores; atividades em rede, envolvendo coordenação de interesses e a ativação de parceiros e órgão diversos, exigem flexibilidade, estratégia e, não raro, algum experimentalismo. A complexidade jurídica, elevada ao plano da juridicidade e não apenas da legalidade, oferece diversas trilhas de decisão. A mais desafiadora é aquela que apoia o planejamento da ação futura e viabiliza a preservação dos interesses das atuais e futuras gerações. Porém, esse processo decisório termina por ser insuportável quando até o passado é incerto e o entendimento dominante e fundamentado em um tempo histórico passa a ser avaliado no futuro, em termos retroativos, como desajustado ou ilegítimo. Trata-se de insegurança jurídica radical que paralisa a administração e não serve a qualquer interesse público. Na névoa dos nossos dias, essa paralisia não pode ser tolerada pelos seus graves custos humanos, administrativos e econômicos.


1 O § 1º do Art. 28 do Projeto de Lei nº 7.448, de 2017 (nº 349/15 no Senado Federal), enunciava: “§ 1º Não se considera erro grosseiro a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais.” O veto informava que o dispositivo atribuía “discricionariedade ao administrado em agir com base em sua própria convicção, o que se traduz em insegurança jurídica.” (Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Msg/VEP/VEP-212.htm). A justificativa do veto ao § 1º do Art. 28 do Projeto de Lei 7.448, de 2017, é inconsistente: a discricionariedade, se houver, será derivada da norma de competência e não do Art. 28 e, com o veto, mesmo o administrador apoiado em interpretação razoável e calçado em jurisprudência ou doutrina precedentes poderia sofrer censura quando a inteligência adotada divergisse de entendimento futuro (e incerto) de órgãos de controle. Na prática, o veto manteve em insegurança jurídica o gestor: reduziu a previsibilidade dos efeitos futuros de sua atuação presente, conquanto adotadas cautelas de fundamentação e motivação suficientes. Ocorre que não se tolera “infração por hemenêutica” quando a interpretação é motivada e razoável, havendo inclusive duas Súmulas do STF nesta direção: Súmula 400: "Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra "a" do art. 101, III, da Constituição Federal"; Súmula 343: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

2 “Art. 54. Os órgãos de consultoria jurídica da administração, independentemente de sua função de assessoria, devem, no exercício do controle prévio de legalidade, prestar orientação jurídica quanto à adoção de medidas aptas a permitir a efetividade da ação administrativa, em conformidade com os preceitos legais.

§ 1º Os agentes dos órgãos a que se refere o caput deste artigo não serão passíveis de responsabilização por suas opiniões técnicas, ressalvada a hipótese de dolo ou erro grosseiro, em parecer obrigatório e vinculante para a autoridade a quem competir a decisão.

§ 2º Não se considera erro grosseiro a adoção de opinião sustentada em interpretação razoável, em jurisprudência ou em doutrina, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente aceota, no caso, por órgão de supervisão ou controle, inclusive judicial. Cf. a íntegra do projeto em MODESTO, Paulo (org). Nova Organização Administrativa Brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2009 (1a. Ed), p. 336. Confira ainda, na web, em https://www.academia.edu/1055240 [acesso em 19/05/2020].

3 Ver em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751913839 [Acesso em 19/05/2020].

4 Sobre esse aspecto, o preciso artigo de Niebuhr, Joel Menezes. O Erro Grosseiro – Análise crítica do Acórdão nº 2.391/2018 do TCU, in: Contratos Administrativos, Licitação 14/11/2018. In: https://www.zenite.blog.br/o-erro-grosseiro-analise-critica-do-acordao-no-2-3912018-do-tcu Concorda-se com o autor nos seus três argumentos: a) a LINDB pode graduar a culpa, inclusive para fins ressarcitórios; b) o TCU ao criar a distinção realizou controle de constitucionalidade (interpretação conforme), atuando fora de sua competência (STF, MCMS 35.410/DF, Rel. Min. Alexandre Moraes, em 15/12/2017); c) o caso aplicou indevidamente o art. 37, § 6º , da CF, por se tratar de hipótese de dano à própria Administração Público e não a terceiros. No mesmo sentido, FERRAZ, Luciano. Alteração na Lindb e seus reflexos sobre a responsabilidade dos agentes públicos. Interesse Público. https://www.conjur.com.br/2018-nov-29/interesse-publico-lindb-questao-erro-grosseiro-decisao-tcu#sdfootnote6sym

5 “ Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.

§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.”

6 Sobre o conceito de gestor médio, no TCU, confira-se PALMA, Juliana Bonacorsi de. Quem é o ‘administrador médio’ do TCU? https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/quem-e-o-administrador-medio-do-tcu-22082018

7 VERNALHA, Fernando. O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle. Revista Colunistas de Direito do Estado, 2016, n. 71, http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle

8 MODESTO, Paulo. O Controle Público e o Fetiche da Culpa. Revista Colunistas de Direito do Estado, 2016 n. 114. http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/paulo-modesto/o-controle-publico-e-o-fetiche-da-culpa

9 FERRY, Luc. Famílias, amo vocês. Política e vida privada na era da globalização. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 12-13.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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