Opinião

O fiscal e o condutor, a Lei 13.655 e a MP 966

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21 de maio de 2020, 13h37

Há mais de cem anos, Lima Barreto (1881-1922) escreveu um instigante texto intitulado O fiscal e o condutor[2], no qual reflete a respeito das razões pelas quais o fiscal do condutor do bonde merece mais crédito do que aquele que conduz o veículo (“por que razão o fiscal merece mais crédito que o condutor?”). O autor levanta algumas inquietações: “Há grande diferença de ordenados? Não. A essência de um é diversa da do outro? Não. Diferenças de educação e instrução estabelecendo um razoável desequilíbrio na natureza de ambos? Não. É pela idade? Também não. Então por que é que todos os fiscais são honestos e todos os condutores são suspeitos? Não atino, e essa metafísica elementarmente interrogativa quase me põe doido”.

Após cogitar do concurso da bacteriologia para investigar se haveria diferenças em inteligência e honestidade entre o fiscal e o condutor, e ainda sem achar a resposta para a pergunta que lhe atormentava, a viagem acaba. “Desço a rua do Ouvidor, acotovelo-me com as primeiras pessoas da pátria, vejo o Garnier e as ciências, letras e artes nacionais na montra sem vidro de sua porta e de sua sala, olho o Supremo Tribunal, depois a Câmara, chego aqui e ainda pergunto: por que razão o fiscal mercê mais crédito que o condutor?”   

Cem anos depois, a situação permanece a mesma, com o maior crédito conferido pela opinião pública ao fiscal e o quase total descrédito ao condutor, o gestor público. O tema mexe com a cabeça dos brasileiros. Afinal, num país prenhe de desigualdades sociais — estimulada, no mais das vezes, pela própria arquitetura dos cargos e funções públicas –, colocar a culpa na ação estatal e nos agentes que a manejam é um tanto fácil e serve de cortina de fumaça para os reais problemas que nos assolam.

Talvez venha daí um certo frenesi da opinião pública nacional pelo tema do controle do gestor público, que é confundido com o combate à corrupção e com a sobreposição do controlador sobre o controlado. Pouca importância é dada à gestão pública enquanto atividade e interação de órgãos (inclusive de controle), ficando o foco no gestor (pessoa física) e sua identificação e exposição nos meios de comunicação. Dentro desta visão, os órgãos de controle estão sempre corretos e a …

E aí entram dois outros mantras nacionais: “quem não deve não teme” e “quanto mais controle, melhor”. Eles funcionam como uma espécie de salvo conduto para que os órgãos de controle possam instaurar quantos procedimentos e sindicâncias entenderem necessários, ainda que com sobreposição de instâncias controladoras (controle interno, Tribunal de Contas, Ministério Público etc.), bem como que a opinião pública possa dar os devidos destaques aos “achados” de tais órgãos, expondo os nomes e as imagens dos gestores envolvidos.

Não parece ser à toa que as principais leis que tratam do controle público no Brasil se voltam mais ao gestor do que à própria administração pública: quem está na berlinda é o gestor, como ocorre na Lei da Ação Popular (Lei n. 4.717/65), na Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/92) e na Lei do Mandado de Segurança (Lei n. 12.016/09).   

Cria-se um clima no qual o fiscal (o órgão de controle) está sempre correto em investigar cada vez mais e com medidas cada vez mais duras (bloqueio cautelar de bens ou mesmo prisão preventiva), ao passo que o condutor (o gestor público) está sempre errado e, portanto, deve ser punido. Às primeiras notícias de algum suposto escândalo de corrupção, explode uma grande repercussão para o caso, com a exposição dos agentes envolvidos. Caso haja a absolvição ou o arquivamento da investigação, com sorte há uma ou outra nota nos meios de comunicação.

No entanto, essa imagem caricaturada e repetida diuturnamente parece trazer mais problemas do que soluções. Em primeiro lugar, pois desconsidera que os gestores honestos e bem intencionados são a imensa maioria. Em segundo, que são pessoas de carne e osso, de modo que a exposição desabonadora dessas pessoas é danosa a si e a seus parentes. Muitas vezes, o aspecto moral da divulgação midiática de fatos ainda sob investigação é tão ou mais danosa do que as sanções jurídicas e econômicas em si.

Por fim, desconsidera as complexidades inerentes às decisões em políticas públicas, que, no mais das vezes, são tomadas de acordo com complexidades que não podem ser asseguradas pelo gestor público (e também não poderiam ser pelos órgãos de controle), uma vez que envolvem variáveis como: a reação dos agentes do mercado aos termos da ação estatal; a interação com outros órgãos e entidades públicos, inclusive os de controle; questões econômicas existentes no momento da tomada da decisão e projeções de cenários futuros, a adesão dos cidadãos às medidas desenhadas pelo Estado etc.

E essas questões complexas com as quais os gestores lidam diariamente são absolutamente esquecidas do debate público.

Mais do que isto, a qualquer medida legislativa que tente racionalizar ou tutelar de alguma forma o gestor de boa-fé, levando em conta inclusive as dificuldades inerentes à sua atuação, logo é dada ampla voz a alguém que, com dedo em riste, afirmará ser esta medida inconstitucional (ainda que não aponte o dispositivo constitucional ofendido pela lei) ou mesmo que ela favoreceria a corrupção.

Foi assim com as discussões em torno da Lei n. 13.655/18, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, e tem sido assim com a recém editada Medida Provisória n. 966/20. O que predominou no debate daquela Lei, nas opiniões transmitidas pela opinião pública geral, não foi o questionamento da racionalidade do sistema de controle, da razoabilidade das medidas ali propostas, de seus efeitos sobre os agentes públicos, mas sim o quanto a lei seria tendente a favorecer a corrupção. O mesmo cenário é esperado em torno da MP 966/20.

E esta forma de agir acaba por criar um tipo de gestor público: o gestor acuado, que é aquele com medo de exercer suas competências ou mesmo de assumir posições de destaque na gestão pública, com receio da responsabilização quase que automática às suas decisões. É o condutor hábil que, por receio das sanções (jurídicas ou morais) aplicadas a torto e a direito para todos os demais da sua categoria, prefere trocar de posição e se limitar a furar os bilhetes dos passageiros na estação inicial da viagem.

É nesse passo que se mostra necessário ampliar o debate sobre medidas que venham a racionalizar o controle, voltando-o a punir somente e efetivamente os gestores que atuem com dolo ou culpa grave, mas poupe aqueles que atuaram de boa-fé, ainda que os resultados alcançados não tenham sido satisfatórios aos olhos da sociedade e dos órgãos de controle anos depois da realização da ação pública.

Se, evidentemente, a sociedade perde – e muito – com a corrupção, parece claro, também, que ele nada ganha com o gestor de boa-fé acuado e com medo de agir. Afinal, ninguém consegue viajar a contento no bonde se o condutor habilidoso preferir mudar de profissão.

[2] O texto está reproduzido na coletânea organizada por Felipe Botelho Corrêa, intitulada Sátiras e outras subversões, publicada pela Penguin Classics Companhia das Letras, 2016, p. 232-233.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP, pesquisador visitante na Université Paris 2 – Panthéon-Assas (2018-2019), especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP, ex-assessor na Secretaria de Governo do Estado de São Paulo (2015-2018) e advogado no escritório Pessôa Valente | Motta Pinto, especializado em Direito Público e Regulação.

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