Opinião

Funrural e a sub-rogação do adquirente: o que cabe ao STF julgar na ADI 4.395?

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

21 de maio de 2020, 9h34

Nesta sexta-feira (22/5), o Supremo Tribunal Federal julgará a ADI 4.395/DF, tendo como relator o ministro Gilmar Mendes.

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O tema principal em referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, naturalmente, não será a avaliação da constitucionalidade da contribuição sobre a receita bruta denominada de Funrural (art. 25, da Lei n. 8.2121/91), mas, em verdade, a previsão, em tese, estabelecida no art. 30, IV, da Lei n. 8.212/91, que trata da sub-rogação.

Por força de tal dispositivo, os adquirentes em geral são obrigados a reter, declarar e recolher referido tributo em substituição ao produtor rural pessoa física (segurado especial e/ou empregador), de tal sorte que, na hipótese de não realizar, a exigência pode recair em face daqueles.

Mas qual discussão constitucional poderá o Supremo Tribunal Federal apreciar quanto à sub-rogação do art. 30, IV, da Le n. 8.212/91? Este é o ponto que pretendemos esclarecer é de alto relevo.

Antecipando, entendemos que não há razão para o Supremo Tribunal Federal julgar na ADI a sub-rogação prevista no art. 30, IV, da Lei n. 8.212/91 quanto ao produtor rural pessoa física empregador, o qual representa a principal parcela das discussões sobre o tema. Ficaria restrito à análise da sub-rogação em face do segurado especial somente, cuja redação legal não é a atual que consta no site do planalto.

Esta conclusão não é complexa, bastando recordar temas clássicos e básicos de Direito Constitucional, notadamente, os efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade, bem como da Resolução de competência do Senado Federal no art. 52, X, da Constituição Federal, na hipótese de julgamento pelo pleno Supremo Tribunal Federal.

Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal julgou por vício de inconstitucionalidade formal e material, por seu pleno, sem modulação, o art. 30, IV, da Lei n. 8.212/91, com as alterações dadas pelas Leis n. 8.540/92 e 8.528/97, em recurso extraordinário de um adquirente:

“Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, conheceu e deu provimento ao recurso extraordinário para desobrigar os recorrentes da retenção e do recolhimento da contribuição social ou do seu recolhimento por sub-rogação sobre a “receita bruta proveniente da comercialização da produção rural” de empregadores, pessoas naturais, fornecedores de bovinos para abate, declarando a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei nº 9.528/97, até que legislação nova, arrimada na Emenda Constitucional nº 20/98, venha a instituir a contribuição, tudo na forma do pedido inicial, invertidos os ônus da sucumbência.”[1]

Com isso, temos a velha e clássica lição no sentido de que lei inconstitucional é nula, ou seja, conforme Francisco Campos, “era o que é e continuará a ser, coisa nenhuma em Direito, antes e depois da declaração da sua inconstitucionalidade.”[2] Ou, ainda, segundo Afredo Buzaid a dizer que lei inconstitucional “não chegou a viver. Nasceu morta” [3], na linha da teoria da nulidade das normas inconstitucionais.

Aliás, o que também é o entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal:

“ …. reveste-se de nulidade o ato emanado do Poder Público que vulnerar, formal ou materialmente, os preceitos e princípios inscritos no documento constitucional. Um ato inconstitucional do Poder Público é um ato nulo, desprovido, conseqüentemente, no plano jurídico, de qualquer validade e conteúdo eficacial. Essa nulidade – fenômeno que se processa no plano da validade – é apta, como já decidido por esta Corte, a inibir a eficácia derrogatória do ato inconstitucional (RTJ, vol. 101/505); a tornar inoponíveis situações jurídicas criadas em desarmonia com a ordem constitucional (RTJ, vol. 114/237); a operar a rescindibilidade de sentença, com trânsito em julgado, fundada em ato inconstitucional (v. RTJ, 55/744).

Essa nulidade do ato inconstitucional realiza, de modo bastante expressivo, a concretização do princípio da hierarquia das normas e das fontes de direito. A formulação clássica do Juiz Marshall — John Marshall —, na histórica decisão do caso Marbury vx. Madison (1803), antecipava esse juízo. Para o ‘Chief Justice’, um ato do Poder Legislativo, que ofenda a Constituição, é ‘void’, nulo”[4].

Qual a consequência prática para a questão da sub-rogação do Funrural? As alterações legislativas ao art. 30, IV, da Lei n. 8.212/91, foram são nulas.

Mais do que isso, coroando este aspecto, houve a edição da Resolução n. 15/2017 do Senado Federal, que traz efeito vinculante e “erga omnes”:

“Art. 1º É suspensa, nos termos do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, a execução do inciso VII do art. 12 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, e a execução do art. 1º da Lei nº 8.540, de 22 de dezembro de 1992, que deu nova redação ao art. 12, inciso V, ao art. 25, incisos I e II, e ao art. 30, inciso IV, da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, todos com a redação atualizada até a Lei nº 9.528, de 10 de dezembro de 1997, declarados inconstitucionais por decisão definitiva proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário nº 363.852.”

Por esta resolução, portanto, há suspensão da execução do inciso VII do art. 12, da Lei n. 8.212/91, bem como art. 1º, Lei n. 8.540/92, que deu nova redação ao art. 12, V, 25, incisos I e II, art. 30, IV, da Lei n. 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei n. 9.528/97, por força decisão definitiva pelo pleno do Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário n. 363.852 (“caso Mataboi”).

Com isso, temos a seguinte consequência, diante da declaração de inconstitucionalidade e Resolução editada:

Art. 30, IV, da Lei 8.212/91 – redação original

Art. 30, IV, da Lei 8.212/91 – Primeira Alteração – Lei n. 8.540/92

Art. 30, IV, da Lei 8.212/91 – Segunda Alteração – Lei n. 8.528/97

IV – o adquirente, o consignatário ou a cooperativa ficam sub-rogados nas obrigações do segurado especial pelo cumprimento das obrigações do art. 25, exceto no caso do inciso X deste artigo, na forma estabelecida em regulamento;

IV – o adquirente, o consignatário ou a cooperativa ficam sub-rogados nas obrigações da pessoa física de que trata a alínea a do inciso V do art. 12 e do segurado especial pelo cumprimento das obrigações do art. 25 desta lei, exceto no caso do inciso X deste artigo, na forma estabelecida em regulamento

IV – a empresa adquirente, consumidora ou consignatária ou a cooperativa ficam sub-rogadas nas obrigações da pessoa física de que trata a alínea "a" do inciso V do art. 12 e do segurado especial pelo cumprimento das obrigações do art. 25 desta Lei, independentemente de as operações de venda ou consignação terem sido realizadas diretamente com o produtor ou com intermediário pessoa física, exceto no caso do inciso X deste artigo, na forma estabelecida em regulamento

Bem por isso, o que tem vigor, atualmente, que pode ser objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal é tão somente a redação original do art. 30, IV, da Lei n. 8.212/91, que disciplina a sub-rogação somente com relação ao produtor rural pessoa física segurado especial:

IV – o adquirente, o consignatário ou a cooperativa ficam sub-rogados nas obrigações do segurado especial pelo cumprimento das obrigações do art. 25, exceto no caso do inciso X deste artigo, na forma estabelecida em regulamento;

 Com isso, surge a questão: as revogações e alterações ocorridas por leis posteriores declaradas inconstitucionais sem mantém?

Daí temos a aplicação da velha e conhecida lição quanto aos efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade da lei.

Equivale dizer: diante da nulidade da lei, não produzindo efeitos jurídicos (“coisa nenhuma em direito”), as revogações e alterações legislativas inicialmente ocorridas são desconsideradas como se não houvessem ocorrido. Resgatam-se as redações anteriores às alterações legislativas, como se não houvessem ocorrido, tornando-se vigentes no formato anterior, como se tais mudanças nunca houvessem ocorrido.

Neste sentido, em caso muito semelhante, vejamos posicionamento consolidado do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, onde esclarecer não ser de sua competência esta apreciação:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA PATRONAL. EMPRESA AGROINDUSTRIAL. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL DA LEI Nº 8.870/1994. REPRISTINAÇÃO. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. CARÁTER INFRACONSTITUCIONAL DA CONTROVÉRSIA. A declaração de inconstitucionalidade tem efeitos repristinatórios, porquanto fulmina a norma desde o seu surgimento. Ante a nulidade do dispositivo que determinava a revogação de norma precedente, torna-se novamente aplicável a legislação anteriormente revogada. A controvérsia acerca do correto regime a ser aplicado à agravante, em razão da declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 8.870/1994, demanda o reexame da legislação infraconstitucional pertinente, providência vedada nesta fase processual. Agravo regimental a que se nega provimento.”[5]           
 

Esta decisão do Supremo Tribunal Federal citada possui dois pontos relevantes para o caso concreto: (i) – quando uma lei é declarada inconstitucional, por ser nula, não produz efeitos jurídicos, voltando a vigorar as redações legislativas sem as alterações sofridas; (ii) – o tema dos efeitos repristinatórios é matéria

Trata-se de tema a ser decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, daí porque:

“TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. LEI 8.212/91. EFEITOS REPRISTINATÓRIOS. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 25, § 2º, DA LEI 8.870/94 PELA ADI 1.103-1/600-DF. EMPRESA AGROINDUSTRIAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA.

1. A declaração de inconstitucionalidade pelo Pretório Excelso, em controle concentrado, via de regra, opera efeitos erga omnes e ex tunc, excetuando-se, todavia, as hipóteses em que ocorra a modulação destes efeitos, consoante o disposto no art. 27 da Lei 9.868/99.

2. Deveras, reconhecida a inconstitucionalidade do §2º do artigo 25 da Lei 8.870/94 (ADI 1.103-1/600), sem ressalvas, conjura-se ab ovo do ordenamento jurídico a norma inconstitucional, desde a data da publicação da declaração da Excelsa Corte, restabelecendo-se o status quo ante, com efeito repristinatório, não obstado pela vedação do artigo 2º, § 3º, da LICC, que proscreve o fenômeno adstrito à revogação da lei (Precedentes: REsp. 491.009/PR, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJU de 03/08/2006; EREsp. 645.155/AL, Rel. Min. José Delgado, Primeira Seção, DJU de 22/05/2006; REsp. 665.469/AL, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJU de 05/06/2006; e EREsp. 517.789/AL, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, DJU de 10/04/2006).”[6]

É também a conhecida lição dos efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade! Nada mais que isso!

Por último, poderiam questionar: mas tivemos nova lei! Ora, e a Lei n. 10.256/2001? Inclusive declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal!  

Daí vem meu desafio: em qual parte da Lei n.10.256/2001 constou a edição de qualquer aspecto que trate da sub-rogação prevista no art. 30, IV, da Lei n. 8.212/2001?

A Lei n. 10.256/2001, ao contrário do que fez com o art. 25, da Lei n. 8.212/91, não disciplinou, muito menos faz qualquer menção ao art. 30, IV, da Lei n. 8.212/91 com relação à sub-rogação!

Não há lei posterior! Inexiste lei que trate da sub-rogação com relação ao produtor rural pessoa física empregador, configurando um claro vácuo legislativo.

Aliás, tema de responsabilidade tributária é matéria reservada à lei complementar (art. 146, CTN).

E, convenhamos, seria um total absurdo jurídico afirmar que, por força da constitucionalidade do Funrural prevista no art. 25, da Lei n. 8.2312/91, após Lei n. 10.256/2001 (STF, RE 718.874),  continuaria a existir sub-rogação para o produtor rural pessoa física empregador, como se fosse aplicável a regra do direito civil acessório segue o principal. Vale lembrar que o julgamento do Supremo Tribunal Federal não se deu quanto à sub-rogação, pois se tratava de um recurso de produtor rural e não adquirente, além de não ser o debate, razões de decidir e dispositivo da decisão.

Em tais condições, é evidente que a ADI a ser julgada não deverá ser conhecida, por perda do objeto, quanto à sub-rogação prevista no art. 30, IV, da Lei n. 8.212/91 para o produtor rural pessoa física empregador, uma vez que o instituto da responsabilidade tributária é competência do legislador e não de decisão do Poder Judiciário, salvo se a separação dos poderes for extinta.

 


[1] – “RECURSO EXTRAORDINÁRIO – PRESSUPOSTO ESPECÍFICO – VIOLÊNCIA À CONSTITUIÇÃO – ANÁLISE – CONCLUSÃO. Porque o Supremo, na análise da violência à Constituição, adota entendimento quanto à matéria de fundo do extraordinário, a conclusão a que chega deságua, conforme sempre sustentou a melhor doutrina – José Carlos Barbosa Moreira -, em provimento ou desprovimento do recurso, sendo impróprias as nomenclaturas conhecimento e não conhecimento. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – COMERCIALIZAÇÃO DE BOVINOS – PRODUTORES RURAIS PESSOAS NATURAIS – SUB-ROGAÇÃO – LEI Nº 8.212/91 – ARTIGO 195, INCISO I, DA CARTA FEDERAL – PERÍODO ANTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20/98 – UNICIDADE DE INCIDÊNCIA – EXCEÇÕES – COFINS E CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – PRECEDENTE – INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR. Ante o texto constitucional, não subsiste a obrigação tributária sub-rogada do adquirente, presente a venda de bovinos por produtores rurais, pessoas naturais, prevista nos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com as redações decorrentes das Leis nº 8.540/92 e nº 9.528/97. Aplicação de leis no tempo – considerações”.

[2] –        “Direito Constitucional”. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, vol. 1., p. 440.

[3] –        “Da Ação Direta de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro”. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 129.

[4] -STF, ADin n. 466-DF (Ementário n° 1619-1, D.J. 10.05.91).

[5] – STF, AI 602277 AgR, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 10/02/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-050 DIVULG 13-03-2015 PUBLIC 16-03-2015.

[6] – STJ, REsp 842.182/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/03/2009, DJe 30/03/2009. Cf: STJ, AgRg no REsp 1506191/PR, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/03/2016, DJe 29/03/2016.; STJ, AgInt no REsp 1267669/RS, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/04/2017, DJe 10/04/2017.

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    é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.

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