Opinião

O 'novo petróleo do mundo' e a face perversa do aproveitamento da pandemia

Autor

  • Andrea de Souza Gonçalves

    é professora da pós-graduação em Direito Individual e Processual do Trabalho na FMU palestrante membro das comissões de Direito Médico e da Saúde e Regulatório da OAB escritora de artigos jurídicos instrutora do Tribunal de Ética da OAB-SP e consultora de Implantação em Compliance e LGPD.

21 de maio de 2020, 10h06

Desde janeiro 2011, por ocasião da realização do Fórum Econômico Mundial em Davos, oficialmente o planeta conheceu a expressão "novo petróleo do mundo", elevando os dados pessoais à condição de nova moeda do mundo digital, conforme inclusive dito pela comissária europeia do Tribunal Europeu de Luxemburgo, a búlgara Meglena Kuneva.

De lá para cá, essa afirmação apenas tem contribuído para o aumento exponencial das questões ligadas a proteção dos dados pessoais, a ponto de em 2018, mais precisamente em agosto, o Brasil publicar a Lei 13.709, batizada de Lei Geral de Proteção de Dados, com sua classificação no rol das garantias de direitos fundamentais, com vigência programa para agosto de 2020, três meses após a publicação do Regulamento Geral da Proteção de Dados pela União Europeia, batizado como GDPR (General Data Protection Regulation), que se deu em maio de 2018.

É uníssono ao analisarmos os dois textos que o Brasil utilizou como base as diretrizes europeias com algumas alterações e, nesse contexto, ficamos com a impressão de que o país precisava de uma lei sobre proteção de dados pessoais que pudesse dar uma resposta à União Europeia, bem como a outros países, tais como Japão e Argentina, que já contavam com referida legislação.

Nesse contexto, a primeira pergunta que se pretende fazer é: por que uma lei é publicada com vigência programada para dois anos após sua publicação, já que o país passava por pressões internacionais em razão de a matéria ser de precípua importância à manutenção de garantias mínimas ao individuo?

Para respondermos essa pergunta, faz-se necessário voltarmos a 2018. Em outubro daquele ano, foi eleito o novo presidente da Republica, ou seja, dois meses após a publicação da referida Lei de Proteção de Dados, eleição esta que ocorreu após o impeachment ocorrido em 2016 da então presidenta Dilma Russef, deixando o país com uma visão frágil.

As noticias da época revelavam que o Brasil havia passado da 26ª posição para a 27ª no ranking de maiores exportadores do mundo, segundo a Organização Mundial do Comercio, ficando atrás de países como Tailândia, Malásia e Vietnã [1].

Ora, com projeção comercial menor e "risco Brasil" maior, não é demais afirmar que a Lei Geral de Proteção de Dados vem para acalmar os ânimos e dar uma resposta quanto a conformidade em proteção de dados, principalmente porque, como integrante do Mercosul, o país estava em vias de integrar um acordo comercial histórico com a União Europeia, o que acabou por efetivamente ocorrer em 28 de junho de 2019 em Bruxelas, após 20 anos de negociação. Para termos a noção da grandiosidade desse acordo, o Brasil aumentaria de 24% para 95% as exportações brasileiras livres de tarifas [2].

A partir dali, iniciou-se uma corrida, especialmente de empresas de grande porte para a adequação em proteção de dados, mesmo com a programação de vigência para agosto de 2020, por óbvio em função ao potencial lucrativo. Empresas que exploram a propriedade intelectual, por exemplo, constantes no referido acordo comercial, deveriam se adequar aos padrões internacionais de proteção de dados com relação a patente e garantia de não divulgação do que trata da proteção dos dados quanto aos testes clínicos exigidos para o lançamento de remédios e defensivos agrícolas [3].

E mais, restava claro que o objetivo desse acordo, afora submeter mais vantagens econômicas a todos os países pertencentes, seria melhorar as politicas de proteção de dados e de conformidade desses países, com a fundamentação de que essa proteção facilitaria o fluxo de dados no comercio. Isso culminou com a criação, em 8 de julho de 2019, da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, através da Lei 13.853, órgão que funcionaria como de adequação e fiscalização da Lei de Proteção de Dados [4].

Entramos em 2020, quando fomos abruptamente acometidos pelo Decreto Legislativo 06, de 20 de março [5], instaurando o estado de calamidade pública no país, com seus efeitos aplicados ate o dia 31 de dezembro em função da pandemia anunciada pela Organização Mundial de Saúde, e com ele vieram inúmeras interpelações com relação à possibilidade de prorrogação da vigência da LGPD, numa nefasta articulação desproporcional e desinformada da matéria.

Mas, ante esse quadro, seria mesmo sustentado o anseio de alguns para essa prorrogação sob o argumento do colapso e calamidade pública ocasionada pelo Covid-19?

Nesse contexto, sob o manto da prorrogação já autorizada pelo Senado no dia 3 de abril para vigência da LGPD para janeiro de 2021, foi editada a Medida Provisória 954 [6], trazendo a possibilidade de compartilhamento de dados pessoais como nome, telefone e endereço, pelas empresas de telefonia, ao IBGE (instituto Brasileiro de Geografia Estatística) para a realização de pesquisa relacionada à pandemia, medida esta suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, através da decisão da ministra Rosa Weber, no dia 24 de abril, já que não houve por parte do Executivo esclarecimento sobre o texto, mesmo depois de instado a fazê-lo, especialmente sobre os critérios rígidos dessa pesquisa.

Nessa esteira, inclusive como forma de entender essa suspensão, não é demais arrematar a lição que nos foi dada por Alexandre Sousa Pinheiro, em seu texto "A Covid-19 e a proteção de dados pessoais", a respeito da total irregularidade desta Medida Provisória, a saber: "Existe, assim, uma regra de que os tratamentos de dados de saúde em tempos de exceção devem basear-se na legislação e regulamentação nela fundada, e não no consentimento…..2.1. Os tratamentos de dados pessoais em estado de emergência, que implicam necessariamente restrições a direitos fundamentais (máxime ao direito à proteção de dados pessoais, previsto no artigo 8.º da Carta Europeia de Direitos Fundamentais) devem obedecer, nomeadamente, ao princípio da proporcionalidade e ao respeito conteúdo essencial dos direitos afetados artigo 52.º, n.º 1 da Carta Europeia de Direitos Fundamentais acompanhado pelo artigo 9.º, n.º 2, alínea 'g') do RGPD" [7].

Ato continuo, e não menos estarrecedor, no dia 29 de abril o governo edita a Medida Provisória 959 [8], que trata da operacionalização do beneficio emergencial trazido na Medida Provisória 936, e como um "puxadinho" trouxe também a prorrogação da vigência da LGPD para 3 de maio de 2021, em completa contradição à própria natureza jurídica do texto a ela vinculativo.

É certo que a Medida Provisória somente tem razão de ser frente a um ato normativo excepcional e célere e, quando a situação for de relevância e urgência, o que não vislumbramos no presente caso, já que, conforme acima já dito, já existe um projeto de Lei julgado no Senado (11709/2020) versando sobre a matéria, e que fora recepcionado em caráter de urgência na Câmara dos Deputados, bem como estarmos falando de uma vigência programada para daqui a quatro meses, ou seja, tempo suficiente para que o Congresso e o presidente da Republica assim o definam.

Outra inconsistência da referida Medida Provisória é que matérias atinentes à cidadania estão excluídas da possibilidade de veiculação sobre seu manto, conforme artigo 62, paragrafo 1º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, item "a", relativamente a temas atinentes à cidadania em seu sentido amplo e mais, numa interpretação mais restritiva, o próprio inciso IV, do mesmo dispositivo legal, traz a vedação de aplicação de medidas provisórias quando da existência de projeto de lei já aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do presidente da Republica, como é o caso.

Assim, quer nos parecer que, seja através de projeto de lei para prorrogação ou medida provisória, o país esta andando na contramão dos fatos. Primeiro porque resta nítida a necessária busca da conformidade, em todos os aspectos, especialmente relativa à proteção de dados, já que, sem essa adequação, estamos fadados ao surgimento de normas descaracterizadas de garantias mínimas do individuo. E segundo porque, com esse cenário, perderemos o time quanto à possibilidade de aumentarmos o capital estrangeiro e diminuirmos as taxas e impostos nas operações.

Inexiste, portanto, respeitadas opiniões contrárias, qualquer prejuízo à manutenção da vigência da LGPD neste cenário para agosto de 2020, ao contrário, o que sua aplicabilidade poderia nos elevar, como nação, a patamares maiores no cenário mundial, com reflexões internas importantes, ainda que pudéssemos acolher a prorrogação somente das sanções na lei dispostas, haja vista a possibilidade de aplicação subsidiária de outros dispositivos legais à matéria, como por exemplo o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor, o Marco Civil da Internet, entre outros diplomas.

É exatamente essa lógica perversa e invertida do aproveitamento da pandemia que não podemos endossar. Usar a calamidade da Covid-19 e justificar a pretensa "necessidade" de prorrogação da LGPD nada mais é do que interromper o desenvolvimento do homem e a elevação de suas garantias a patamares constitucionais, ceifando do indivíduo aquilo que ele tem como bem mais precioso que é sua individualidade, como premissa máxima da dignidade da pessoa .

 


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    é professora da pós-graduação em Direito Individual e Processual do Trabalho na FMU, palestrante, membro das comissões de Direito Médico e da Saúde e Regulatório da OAB, escritora de artigos jurídicos, instrutora do Tribunal de Ética da OAB-SP e consultora de Implantação em Compliance e LGPD.

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