Opinião

Não-discriminação versus saúde pública em debate no Supremo

Autor

  • Yun Ki Lee

    é advogado sócio fundador da Lee Brock Camargo Advogados (LBCA) mestre em Direito Econômico pela PUC-SP presidente da OKTA-SP e membro efetivo da Comissão de Relações Internacionais da OAB-SP.

20 de maio de 2020, 20h06

Posto assim, nua e crua, a escolha acaba por recair, fatalmente, na segunda. Afinal, a vida deve se sobrepor a tudo.

A bem da verdade, ainda que em tese, questão assim jamais deveria ser posta deste modo, tão despida de qualquer circunstância, a ponto de inibir até um simples começo de raciocinar. É artimanha de encerrar uma discussão, que sequer é iniciada, pois demanda respostas absolutas, não se permitindo argumentar.

O seu responder clama volver à própria questão em si, a fim de capturar 3 elementos cruciais: (i) as circunstâncias envoltas, isto é, de tudo que cerca o caso, hipotético ou concreto, desde as razões de fato, inclusive elementos morais e fatores técnicos e científicos, até as de direito (normas nacionais, supranacionais e internacionais); (ii) a necessidade de se escolher entre um direito fundamental e humano ou outro; e (iii) a adequação do caminho eleito, evitando-se, a todo custo, o completo exaurir de qualquer direito apresentado de igual quilate.

Pois é por esta modelagem que se propõe a destacar o importante precedente recém firmado pelo Supremo Tribunal Federal (7×4), com efeitos erga omnes, de sacar do campo de validade a proibição de doação de sangue por homens homossexuais, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543-DF.

Para a corrente majoritária — ministros Edson Fachin (relator), Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Carmén Lúcia e Dias Toffoli —, o que deve prevalecer para restringir uma pessoa de doar sangue é a conduta sexual de risco, ou seja, o contato sexual que envolva riscos de contrair infecções transmissíveis pelo sangue, e não a orientação sexual. O fato de um homem manter relações sexuais com outro homem, per se, não é suficiente para caracterizar prática sexual de risco a justificar sua rejeição, de plano, como doador, devendo-se seguir os mesmos procedimentos aplicáveis a homem heterossexual, que queira doar sangue.

Mesmo nos votos vencidos, não se pugna pela supremacia de um (saúde pública) sobre outro (não-discriminação) — ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Marco Aurélio. Apenas não vislumbraram como ato discriminatório a restrição porque fundada em dados técnicos e científicos, e não na orientação sexual.

Acrescente-se às circunstâncias fáticas que envolvem o caso levado a julgamento, que o recrudescimento da inaptidão temporária, por 12 meses, para doar sangue de homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes remonta à década de 1980, quando da eclosão da epidemia da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, a AIDS, causada pelo vírus HIV. Foi a forma mais eficaz, menos custosa e replicável para todos países que, então, a ciência pode dispor para auxiliar no combate à propagação desta terrível doença. De lá para cá, os avanços da tecnologia e dos protocolos de coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue e seus derivados, bem como a exigência de exames laboratoriais, inclusive de HIV, conferem, atualmente, um grau alto de segurança aos doadores, profissionais de saúde, recipientes e, também, à toda sociedade.

Ainda no seio das circunstâncias envoltas, mas, agora, das jurídicas, destacam-se os já citados direitos fundamentais e humanos da igualdade a vedar atos discriminatórios e da saúde pública a resguardar a vida e segurança, além da previsão constitucional a determinar que lei disponha sobre sangue e seus derivados, e também as leis, decretos e atos administrativos a vedarem homens homossexuais de doar sangue (Constituição Federal: arts. 3º, IV, 5º e 199, § 4º / Convenção Americana sobre Direitos Humanos: arts. 1, 4, 5, 7 e 24 / Declaração Universal dos Direitos Humanos: arts. I, II, III e VII / Leis Federais 7.649/1988 e 10.205/2001 / Decretos Federais 95.721/1988 e 3.990/2001 / Portaria do Ministério da Saúde 158/2016, art. 64, IV / Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional da Vigilância Sanitária RDC-ANVISA 34/2014, art. 25, XXX, “d”).

A necessidade de se escolher entre um direito fundamental e humano ou outro decorre da materialização da disputa, pois a discussão passou do campo abstrato para o mundo concreto, pela submissão do caso ao Judiciário a reclamar resposta, uma decisão, a valer para todos, já que com efeitos erga omnes, inclusive, sobre eventuais legislações futuras.

O caminho eleito pelo Supremo Tribunal Federal, em sua decisão, de varrer do mundo jurídico a restrição para homens que mantêm práticas sexuais homossexuais de doar sangue, aplicando-se-lhes o mesmo procedimento legal a recair sobre homens heterossexuais, apresenta-se perfeitamente adequado. Tornar sem nenhum efeito para fins de doação de sangue a ordem de “considerar-se-á inapto por 12 (doze) meses homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes” (Portaria do Ministério da Saúde 158/2016, art. 64, IV e RDC-Anvisa-MS 34/2014, art. 25, XXX, d) é consentâneo com as melhores circunstâncias fáticas e jurídicas hodiernas, na medida em que prestigia a igualdade, afasta situação discriminatória que não mais se sustenta e, ainda, salvaguarda a saúde pública e a segurança de todos, desde doadores a recipientes e profissionais de saúde, e até a sociedade em geral, face aos avanços técnicos e científicos já atingidos e tendo em vista que o sangue coletado deve, peremptoriamente, ser submetido a testes imunológicos de toda sorte, praticados em nosso país com elevada eficácia. Não por acaso, instada a se pronunciar, a própria Organização Mundial da Saúde, em 2018, reconheceu que suas orientações a respeito foram elaboradas em uma época um tanto longínqua, mas que, com o grande progresso técnico e científico dos últimos anos, já é possível traçar um denso mapeamento de segurança do sangue coletado. E, em conclusão, informa sobre necessidade de rever tais orientações, inclusive, aquelas relativas a doações de sangue por homens que têm relações sexuais com outros homens.

Muito mais que deixar de exaurir um direito fundamental e humano ao escolher um outro para fins de solução de um caso concreto a julgar, neste histórico e relevante precedente, o Supremo Tribunal Federal, a um só tempo, prestigiou ambos, convertendo o “não-discriminação versus saúde pública” em “saúde pública sem discriminação” e até em “segurança com igualdade”.

O teste de aderência à realidade do posicionamento firmado pela nossa Corte pode ser aferido no quanto uma pessoa tem ferido sua liberdade de realizar ato humanitário de doar sangue, mas ser barrada pela orientação sexual, e não por comportamento sexual de risco. É corroer a alma, a dignidade da pessoa humana. Não só de quem doa, mas também do recipiente, dos profissionais da saúde e de cada um de nós, por razão já superada.

À magistral lição de como bem aplicar a proporcionalidade neste caso real e concreto, e ao meio eleito adequado e razoável de solução, rendem-se os mais efusivos aplausos.

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    é advogado, sócio fundador da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA), mestre em Direito Econômico pela PUC-SP, presidente da OKTA-SP e membro efetivo da Comissão de Relações Internacionais da OAB-SP.

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