Opinião

STF decide que (finalmente!) homens homossexuais podem doar sangue

Autor

  • Karina Fardim Ramalho

    é advogada especialista em segurança pública e atuante na área de Direito homoafetivo e de Direito das mulheres com ênfase nas questões de gênero sob a perspectiva criminal.

20 de maio de 2020, 10h05

A decisão é importantíssima não apenas para o público LGBTQI+, mas, sim, para toda a sociedade, afinal, nunca se sabe quem será o próximo a depender de uma doação sanguínea nos hemocentros do país.

O trâmite legal

No início da década de 90, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 1.376, a qual restringia a doação de sangue por homossexuais. Na época, a justificativa decorria da preocupação com o vírus HIV, o qual se alastrou rapidamente na década de 80.

Em 2002, a Anvisa alterou essa restrição para temporária, pontuando que os homossexuais poderiam doar sangue, exceto os homens que mantiveram relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses. Essa restrição foi reiterada na Resolução nº 153 de 2004.

O texto foi bastante criticado e em 2011 o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 1.353, a qual no seu §5º afirmava: "A orientação sexual (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) não deve ser usada como critério para seleção de doadores de sangue, por não constituir risco em si própria".

Essa redação foi um avanço nos direitos humanos, mas essa vitória durou por pouco tempo, já que em 2014 a ANVISA publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 34, a qual mantinha a inabilitação de homens que se relacionaram sexualmente com outros homens nos 12 meses que antecediam a coleta de sangue.

Para sanar o aparente conflito entre as recomendações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e o Ministério da Saúde, foi publicada a Portaria nº 158 de 2016, a qual tinha o intuito de redefinir o regulamento técnico dos procedimentos homoterápicos definidos pelo Ministério da Saúde.

Contudo, a redação da referida portaria foi incoerente e paradoxal ao manter a vedação a qualquer tipo de discriminação por orientação sexual e, posteriormente, excluir os homens homossexuais ativos da habilitação para doar sangue.

No mesmo ano, começou a tramitar no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) dessas normas da Anvisa e do Ministério da Saúde. Contudo, em 2017 o julgamento foi suspenso e retomado em maio de 2020.

A restrição
A retomada do julgamento ocorreu a pedido da Defensoria Pública da União, a qual solicitou ao STF agilidade para a votação dessa pauta, visto que em razão da pandemia do novo coronavírus o número de doadores de sangue reduziu drasticamente nos homocentros ao redor do Brasil.

Uma pesquisa realizada em 2017 pela ONG All Out divulgou que cerca de 19 milhões de litros de sangue eram desperdiçados anualmente no país. Essa pesquisa considerou todos os homens que atendem a todos os requisitos para a doação, mas por terem relações sexuais com outros homens são considerados inabilitados.

Mas, afinal, qual a origem dessa restrição? Explico. Voltemos ao final da década de 70. Após a revolução sexual e sem o risco de gravidez, os homossexuais, especificamente os do sexo masculino, eram os indivíduos que mais tinham relações desprotegidas.

Na década seguinte, com o avanço da AIDS, os homens homossexuais compunham o grupo mais atingido pela doença, o que os colocava em grupo de risco naquela época. Mas, com o avanço da doença, várias outras pessoas foram contaminadas independentemente de serem crianças, homens, mulheres, etc.

Ainda há pessoas que se esquecem do óbvio: nenhum vírus escolhe contaminar alguém devido à orientação sexual! O avanço da medicina e da tecnologia comprovou que o HIV pode ser transmitido por sangue, secreção vaginal, leite materno e sêmen, sendo que o risco de transmissão no sexo anal (que não é restrito às relações homossexuais) é muito maior.

Visto que o sangue é um meio de transmissão do vírus e de tantas outras doenças, é, sim, muito importante realizar uma triagem séria com todos os possíveis doadores. As perguntas que buscam identificar um comportamento de risco são necessárias, como por exemplo quanto ao uso de preservativo. Assim como é importante testar o sangue de qualquer possível doador, como dispõe a lei.

É importante relembrar que se deve averiguar um comportamento de risco, o que nada tem a ver com a orientação sexual da pessoa. Uma pessoa que está apta para doar sangue após passar por todas a triagem, responder todas as perguntas feitas e ainda ter o seu sangue testado não pode ser considerada uma pessoa de risco apenas pela sua orientação sexual.

Essa restrição ofendia direitos fundamentais assegurados a todos na Constituição Federal, tal como o direito à igualdade, e, mais do que isso, ofendia princípios de um Estado Democrático de Direito que visam a proteger a dignidade da pessoa humana, além de tratados internacionais que o país assinou e se comprometeu a cumprir.

Conclusão
A orientação sexual homoafetiva não coloca ninguém em grupo de risco para doar sangue ou para ser mais propensa a passar determinada doença. O maior risco oferecido a esse grupo é ter que lidar com tanta ignorância que grande parte da sociedade ainda tem.

Não é o sangue de um homem sexualmente ativo, independentemente de quem seja a companhia dele. O que adoece é esse preconceito que ainda existe na nossa sociedade e que infelizmente ainda é sustentado por normas discriminatórias que ainda existem no nosso ordenamento jurídico.

Essa decisão do Supremo Tribunal Federal deve, sim, ser comemorada, mas é uma pena que tenha chegado somente neste ano de 2020.

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    é advogada, especialista em segurança pública e atuante na área de Direito homoafetivo e de Direito das mulheres, com ênfase nas questões de gênero sob a perspectiva criminal.

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