Direito Comparado

A aprovação definitiva do PL 1.179 e uma perspectiva do direito comparado

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20 de maio de 2020, 18h33

A crise sanitária mundial exigiu que os países adotassem medidas emergenciais para refrear a expansão do vírus enquanto não se lhe conhece a cura, mas também medidas político-econômico-sociais e jurídicas que se destinem a evitar consequências maiores ou  que se prorroguem no tempo e venham a comprometer implacavelmente os dias futuros.

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Dada a excepcionalidade desta situação — sem precedentes em termos de contágio e alastramento internacional —, a lei aplicável durante a crise e seus efeitos também deve ser excepcional, pois nenhuma lei ordinária poderia antever a magnitude e os efeitos plúrimos de uma doença como esta que agora enfrentamos.

Antes de passarmos ao ordenamento brasileiro, notemos que, no contexto do direito dos demais países, a situação jurídica não é diferente. Dificuldades há aqui e ali. E destaco, de antemão, que é impossível fazer um escrutínio acerca dos diversos países, mas o fato de conhecermos os problemas e soluções experimentados por alguns deles amplia o nosso horizonte para a solução dos nossos próprios problemas. Embora a pandemia nivele a todos no temor de sua virulência e nos seus impactos psicológicos, é fato que cada país tem suas estruturas peculiares e deve agir a partir delas.

Em 19 de março deste, o corpo legislativo supremo do Reino Unido — o Parlamento — recebeu do Secretário de Estado para a Saúde e Assistência Social, o Coronavirus Bill, um projeto de lei que, em razão da célere tramitação legislativa, ganhou o consentimento da Rainha Elizabeth II em 25 de março último. Assim, o Reino Unido possui agora o Coronavirus Act 2020,[1] regime transitório com vigência inicial de dois anos, possibilitando revisão parlamentar semestral, mas comportando prorrogação ou abreviamento conforme a situação. O texto abrange várias áreas de atuação administrativa e alarga as atribuições governamentais e de agentes públicos, que vão do cadastramento dos profissionais das diversas áreas da saúde à permissão para que as cortes e tribunais utilizem vídeo e tecnologia de áudio para seus trabalhos e audiências.

No tocante à regulação dos contratos de direito privado, o Coronavirus Act trouxe grandes mudanças nas locações residenciais e comerciais. É sabido que o aluguel de imóveis residenciais, sobretudo na Inglaterra, corresponde à aproximadamente metade dos cerca de 30 milhões de domicílios do Reino Unido, um número bastante condizente com a situação atual dos grandes centros urbanos para os quais confluem mão de obra, turistas e estudantes, de maneira que o setor locatício será um dos mais afetados pela pandemia. O Coronavirus Act, visando a amparar o direito tanto dos proprietários de imóveis residenciais quanto dos locatários, estabeleceu o prazo de três meses para que o inquilino inadimplente desocupe o imóvel, contados da notificação de desocupação, independentemente de outra anterior previsão no contrato originário. Findo esse prazo e não havendo a desocupação, poderá o proprietário solicitar a ordem de despejo judicial para retomada da posse direta do bem imóvel, afastada a moratória para os aluguéis referentes ao período afetado pela pandemia.

Especificamente na Irlanda do Norte, no último 4 de maio, o emergencial Private Tenancies (Coronavirus Modifications), com tramitação parlamentar finalizada e já consentido por Sua Majestade, aumentou esse período de notificação de 4 a 8 semanas, como previsto na lei ordinária (Private Tenancies Order 2006), para 12 semanas, disposição esta com vigência até 30 de setembro de 2020.

A respeito dos aluguéis comerciais, o Reino Unido concede uma maior liberdade para as partes contratantes, tanto que, nos casos de retomada do imóvel por descumprimento de obrigação atribuída ao locatário, esses instrumentos não costumam ser regidos pela common law ou por uma  lei de locações, e sim por cláusulas contratuais específicas que dão ao locador maiores poderes de retomada da posse direta. Mesmo assim, o Coronavirus Act abarcou esses contratos de locação comercial, prevendo a suspensão por três meses, a contar da vigência da lei transitória, dessas cláusulas relacionadas à inadimplência dos aluguéis, mas não afetou o direito já existente de o locador se recusar à renovação contratual.

A França, tradicionalmente, possui um ordenamento não muito afeito à revisão contratual, embora nos tenha legado a teoria da imprevisão (que se forma a partir da Loi Failliot, de 1918), de modo que a revisão judicial dos contratos é um acontecimento bastante jovem no direito francês.

Essa resistência à revisão judicial dos contratos é juridicamente difícil de ser mantida nos tempos atuais, em especial neste momento de pandemia. Contudo, a Ordonnance de 10 de fevereiro de 2016, que reformou o Code Civil, é um dos sinais de que o ordenamento jurídico francês se abriu ao debate, haja vista a dicção do art. 1195,[2] que toca à possibilidade de renegociação quando uma mudança imprevisível das circunstâncias, por ocasião da conclusão do contrato, tornar a obrigação excessivamente onerosa para a parte que não consentiu em assumir o risco, a qual continuará a cumprir as obrigações ao longo dessa renegociação (se não realizado acordo direto entre as partes, poderá o juiz proceder à revisão ou rescisão contratual). O momento desta pandemia é uma grande oportunidade para o exercício da aplicação do referido dispositivo pelos magistrados franceses.

De outro lado, a América do Sul tem enfrentado sérios problema no âmbito do direito de família durante esta crise. No Seminário Internacional “Covid-19 y sus efectos en la Litigación de Familia”, promovido por meio eletrônico pela Faculdade de Direito da Universidade do Chile no dia 23 de abril deste, a  professora Beatriz Ramos, da Universidade da República e da Universidade Católica do Uruguai, ponderou sobre questões como pensão alimentícia, direito de visitas, violência doméstica e alteração de regime de bens. Lembra ela que o Uruguai decretou o feriado nacional sanitário, dias em que os juízos de família têm recebido inúmeras consultas e vêm, por segurança, postergando algumas medidas cautelares e tendo de tomar várias decisões interlocutórias, como descontar dos seguros-desemprego as pensões alimentícias, a fim de garantir a sobrevivência dos alimentandos e vulneráveis.[3]

Na mesma ocasião, o professor peruano Enrique Varsi, da Universidade de Lima e da Universidade Nacional Maior de San Marcos, refletiu sobre a avalanche de situações que estão recaindo sobre o direito de família durante a pandemia, ponderando que os problemas existentes na esfera familiar se acutizaram e tendem a prosseguir (divórcios, separações, mudança de regime de casamento ou união), atraindo a necessidade de um novo marco para as famílias, com base numa solidariedade jurídica mais intensa entre seus integrantes.[4]

Mutatis mutandis, no Brasil, os Poderes estão sendo testados no limite durante esta inesperada pandemia da Covid-19. Com o Poder Judiciário, isso não é diferente: nossa experiência aponta que os momentos de crise trazem enorme aumento de judicialização de demandas (revisão contratual, aplicação da teoria da imprevisão, recuperação judicial, divórcio, alimentos, execuções, cobranças, ações penais e tributárias). Some-se a isso a necessidade de reconstrução ou de construção de bases jurídicas que amparem essas milhares ou milhões de demandas.

Há alguns dias, nesta mesma revista, tive a oportunidade de lembrar que, curiosamente, o Código Civil de 1916 não continha previsão de causas suspensivas, interruptivas ou impeditivas de prazos nos períodos de doenças com impactos gerais na sociedade, embora tal diploma seja contemporâneo a uma época marcada por surtos de dengue e febre amarela. Essa mesma ausência de previsão se repetiu no Código Civil de 2002, cujo legislador, com maiores razões, não supôs ter de enfrentar a esta altura da pós-modernidade, os efeitos jurídicos de uma nova pandemia de rápida expansão e alta virulência. O inimaginável, porém, aconteceu e o ordenamento jurídico nacional viu-se às voltas com a necessidade premente de reger as novas situações, de sorte a prevenir e evitar o colapso dos poderes e instituições, bem como proteger a saúde, as legítimas expectativas e as relações jurídicas dos cidadãos.

No Brasil, a situação exige uma regulação emergencial e transitória apta a fixar orientações para todos nós que lidamos com o direito. Há, também, a necessidade de fixação de balizas temporais para os prazos prescricionais e decadenciais das relações jurídicas especificamente influenciadas pela pandemia da Covid-19. E tudo isso, por óbvio, deve ser realizado sem deixar de observar direitos, sem prescindir da técnica jurídica e sem o intento de suplantar a legislação já existente.

No dia de ontem, 19 de maio de 2020, o plenário do Senado Federal aprovou o texto original do PL 1.179/2020 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado — RJET), que segue agora para apreciação presidencial. Tal aprovação se deu, após o colegiado, rejeitar por 62 votos a 15, o substitutivo a referido PL. Ao decidir o Senado pela manutenção do texto original, de autoria de Antonio Anastasia e relatado por Simone Tebet, aprovou-se um destaque que antecipa a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD para agosto de 2020. Isso tornaria o prazo da LGPD aquele previsto na MP 959/2020 (3 de maio de 2021), mas esta, caso não aprovada a tempo, corre o risco de caducar.

Vemos, pois, uma luz para as relações privadas relacionadas direta ou indiretamente à pandemia da Covid-19. Tenho acompanhado bastante de perto as questões que afligem o cidadão brasileiro na atual quadra, principalmente no que toca às relações privadas, de modo que, neste espaço cedido pelo ConJur, pela Revista de Direito Civil Atual e pela Coluna Direito Civil Comparado, procedi, de modo imparcial, à análise transparente e informativa do PL 1.179/2020 nos últimos dias.

É necessária, sim, no ordenamento brasileiro uma lei específica para as relações privadas ora afetadas pela pandemia (os aluguéis, as mensalidades escolares, os prazos prescricionais e decadenciais, os empréstimos contraídos, os alimentos, as visitas, as questões consumeristas, o condomínio, entre outros). E o PL 1.179/2020 propôs-se genuinamente a enfrentar essas tormentosas questões, sem  buscar conflito de interesses, mas com a função de regular as relações privadas durante este período emergencial e transitório, oferecendo um norte para a jurisprudência e os profissionais do direito neste momento crucial, assim como contribuindo para a celeridade e uniformidade na pacificação dos conflitos decorrentes, ainda que reflexamente, da pandemia. É um documento coerente em seu mister, porque o momento atual não é favorável a alterações impensadas da legislação já existente de direito privado.

Renovo, portanto, meus cumprimentos aos juristas que vêm concretizando o  Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) atinente ao período da pandemia da Covid-19, representado pelo PL n. 1.179/2020: o Ministro Dias Toffoli, o Ministro Antonio Carlos Ferreira e o Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr., da Universidade de São Paulo, que incentivaram a redação do referido documento; bem como os professores Arruda Alvim (da PUC-SP), Fernando Campos Scaff,  Paula Forgioni, Francisco Satiro e Marcelo von Adamek (todos da USP), Rodrigo Xavier Leonardo (da UFPR) e Rafael Peteffi da Silva (da UFSC); além dos advogados Roberta Rangel e Gabriel Nogueira Dias. Também, a celeridade com que tem trabalhado o Congresso Nacional, em especial no regime emergencial, tem sido indispensável neste momento em que urgem as leis transitório-emergenciais e demais orientações. A aprovação do PL 1.179/2020 é, antes de mais nada, uma vitória da sociedade brasileira e, na sequência, representa um exemplo de trabalho conjunto entre juristas, acadêmicos, magistrados, advocacia, parlamentares e profissionais do direito!

Sem mais, se lhes posso dizer algumas palavras, minha cara leitora e meu caro leitor, é que, no contexto brasileiro, se torna ainda mais fundamental garantir o acesso à justiça neste momento gravado por complexidades, o que hoje temos procurado suprir, quase diuturnamente, pelos atendimentos eletrônico e remoto. E não basta o acesso à justiça: temos de buscar e apresentar as mais justas soluções para os cidadãos nas relações privadas ou públicas por eles firmadas, cidadãos esses que constituem a razão pela qual trabalha o Poder Judiciário.

Aos magistrados, advogados, promotores de justiça, defensores públicos, mediadores em geral e toda sociedade, estejamos todos preparados para muito trabalho (que não obstante a quantidade, deverá conservar a qualidade de sempre e até mesmo ser aperfeiçoada).

Instituições democráticas fortes, cidadania respeitada!

 

[1]United Kingdom. Coronavirus Act 2020. Disponível em: <http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2020/7/contents>. Acesso em 19.5.2020.

[2] Art. 1195 do Código Civil da França: “Si un changement de circonstances imprévisible lors de la conclusion du contrat rend l'exécution excessivement onéreuse pour une partie qui n'avait pas accepté d'en assumer le risque, celle-ci peut demander une renégociation du contrat à son cocontractant. Elle continue à exécuter ses obligations durant la renégociation.

“En cas de refus ou d'échec de la renégociation, les parties peuvent convenir de la résolution du contrat, à la date et aux conditions qu'elles déterminent, ou demander d'un commun accord au juge de procéder à son adaptation.

“A défaut d'accord dans un délai raisonnable, le juge peut, à la demande d'une partie, réviser le contrat ou y mettre fin, à la date et aux conditions qu'il fixe”.

[3] RAMOS, Beatriz. Intervenção proferida no Seminário Internacional “Covid-19 y sus efectos en la Litigación de Familia”, promovido pela Faculdade de Direito da Universidade do Chile e ocorrido em 23 de abril de 2020.

[4] VARSI, Enrique. Idem.

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