MS contra rodízio

Advogado que usou "meme" em petição contra prefeito manifesta-se sobre o caso

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19 de maio de 2020, 19h42

O advogado Caio Martins Cabeleira impetrou na segunda-feira da semana passada (11/5) um mandado de segurança contra o rodízio especial que havia sido adotado na cidade de São Paulo. 

Daniel Guimarães/Wikipedia
Mandado de segurança foi impetrado para que autor não tivesse que seguir o rodízio especial em São Paulo, medida já revogada pela Prefeitura
Daniel Guimarães/Wikipedia

O impetrante, em sua inicial, utilizou-se de "meme" e, segundo o juiz que apreciou a peça — Luis Manuel Fonseca Pires, da 3ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo —, fez "referências jocosas ao prefeito" (Bruno Covas).

Por isso, o magistrado criticou o advogado, além de determinar o envio da petição ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB para "adoção das medidas que se entender adequadas". No mérito, houve desistência e, portanto, o juiz julgou extinto o feito.

Após a repercussão da notícia, Cabeleira divulgou nota de repúdio ao magistrado. Em suma, alega que não cabe ao Judiciário "avaliar a utilidade ou adequação dos recursos argumentativos empregados no exercício da advocacia". Confira a íntegra:

Uma resposta ao juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública

Na última semana viralizou na internet um mandado de segurança impetrado por mim (processo 1023383-30.2020.8.26.0053), em causa própria, na qual o magistrado da 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital, ao invés de simplesmente homologar um pedido de desistência da ação feito por mim, julgando-a extinta, decidiu dar uma bronca pública neste que vos fala.

O crime? Ter ousado usar humor sarcástico e expressão jocosa contra um ato ilegal e abusivo, que violava direitos fundamentais, perpetrado pelo Prefeito de São Paulo. 

Nenhum magistrado pode se avocar a condição de fiscal da argumentação dos advogados. Não cabe ao Poder Judiciário avaliar a utilidade ou adequação dos recursos argumentativos empregados no exercício da advocacia. Ao apontar que o modo de agir deste advogado “apequena a justiça” e “não serve a demonstrar direito algum”, o juiz viola as prerrogativas e o livre exercício da advocacia mediante uma análise absolutamente equivocada e inapropriada.

O rodízio era um ato administrativo não só eivado de diversas nulidades, como ausência de fundamentação legal e violação do direito de livre locomoção e do direito à vida, mas era nitidamente uma medida ineficaz para o fim de combater a pandemia. Ao contrário, ele aumentou o número de pessoas utilizando o transporte público e, consequentemente, a possibilidade de contaminação.  

Tamanho era o desacerto e ineficácia da medida que o próprio prefeito a revogou, o que apenas demonstra o acerto do que foi exposto na petição. 

Todavia, diante de todas essas arbitrariedades devidamente relatadas na petição inicial na típica linguagem forense, apontando-se fontes legais e precedentes do e. Tribunal de Justiça paulista, a que se voltou o horror e desprezo do magistrado sorteado para julgar a causa? 
Ao fato de eu ter me referido ao Prefeito como “Sua Majestade, o Prefeito” (título de um livro de Jose Alvarenga, aliás) de forma jocosa e ao fato de eu ter colado na petição uma foto do Prefeito e logo abaixo, o título de abertura da petição com os dizeres “Bom dia, como posso atrapalhar seu dia?”, designado pelo magistrado como sendo um “meme”. 

A decisão segue criando um verdadeiro espantalho da petição inicial, como se ela não tivesse nenhuma base jurídica e fosse limitada a fazer um meme do Prefeito, para “viralizar na internet”. 

Ao d. magistrado bastava extinguir o processo, diante de meu pedido de desistência, no qual informei que estava desistindo da ação para ajuizá-la no Tribunal de Justiça (onde o processo tramitava até hoje, quando pedi nova desistência por perda de objeto), pois só me atentei ao fato do prefeito da capital do estado ter foro privilegiado depois de ter distribuído o processo às varas da fazenda pública. Repito: o pedido de desistência foi protocolado ANTES DA DECISÃO. 

Diz a sabedoria popular que “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. Quando o magistrado declara que a argumentação do advogado “apenas se presta para viralizar na internet”, fica a dúvida: a que se presta uma decisão dessa natureza, num processo em que se advogava em causa própria e já havia desistência da ação para ajuizá-la no foro competente? Os dias que se seguiram, com a divulgação dessa decisão em grupos de whatsapp e portais da internet, talvez revelem quem buscou “viralizar na internet” se valendo da atividade jurisdicional.

Diante dessas circunstâncias, sem dúvida alguma, a decisão é um flagrante ataque à liberdade profissional, à dignidade da justiça e aos preceitos éticos, exatamente o que ela hipocritamente alega proteger. 
O advogado deve ter plena liberdade no exercício de sua profissão, tal como garantido na Constituição Federal e no Estatuto da OAB. Só a ele cabe o discernimento sobre qual é a melhor estratégia a seguir para obtenção do resultado que se almeja. 

O uso do humor e da ironia na retórica, a arte da argumentação, são mecanismos importantes e milenarmente reconhecidos como meios eficazes de convencimento, principalmente como meio de denúncia de algo inapropriado (cf. Perelman e Olbrechts-Tyteca, Tratado da Argumentação, Martins Fontes, São Paulo, §49; Ana Cristina Carmelino, Humor: uma abordagem retórica e argumentativa, in Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo – v. 8 – n. 2 – p. 40-56 – jul./dez. 2012; além das clássicas obras de Cícero, Quintiliano, e Aristóteles sobre o uso retórico do humor). A retórica nos ensina que o humor é o meio mais eficaz para expor um absurdo cometido pelo adversário. O termo jocoso e a imagem utilizada têm, assim, objetivos claros: ressaltar o absurdo e a teratologia do decreto impugnado.  

Ressalto ainda que em momento algum fui ofensivo com a pessoa do prefeito. Fui combativo, e assim serei, enquanto Deus permitir, na defesa de minhas causas quando a situação exigir, mas sem cometer qualquer tipo de ilicitude ou mesmo conduta antiética. Meu sarcasmo não foi dirigido à justiça, ao juiz ou serventuários, mas aos atos do Prefeito, enquanto no exercício de seu cargo. O prefeito, pessoalmente, sequer é parte no processo e consta no polo passivo apenas uma exigência formal da Lei de Mandado de Segurança. 

Quanto ao ato temerário e abusivo do mm. Juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública, medidas legais e administrativas serão tomadas para resguardar a liberdade profissional da advocacia.

São Paulo, 18 de maio de 2020.
Caio Martins Cabeleira
OAB/SP 316.658
Graduado e Doutor em Direito Civil pela USP. 
Foi pesquisador bolsista no Max-Planck Institut de Hamburgo, Alemanha.
Advogado

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