Opinião

Breves notas sobre a competência federativa no âmbito da pandemia

Autores

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

  • Hamilton Dias de Souza

    é advogado fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF) e especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.

18 de maio de 2020, 19h02

Um dos pontos centrais da controvérsia sanitária em curso é identificar qual o âmbito da competência constitucional de cada ente federativo para legislar acerca desta pandemia. Daí a necessidade de compreender os limites da expressão normas gerais, central a essa análise. Afinal, sendo tão grande o Brasil, e, ao mesmo tempo, tão diverso, pode ocorrer a adoção de diferentes medidas sanitárias entre as cidades de São Paulo e Tanabi, no mesmo estado, e entre estas e a cidade de Bujaru, no Pará. Logo, em respeito à diversidade federativa, é necessário identificar se a matriz federativa constitucional impõe ou não centralização normativa, e em que medida isso ocorre.

A Lei Federal 13.979/20, não se referiu à calamidade, mas cuidou de aspectos que só esse estado justificaria, como, por exemplo, confinamento, quarentena, atividades essenciais que não poderiam cessar ou sofrer restrições e outras. Tudo isso implica tratar-se materialmente de calamidade, afinal assim declarada pelo Decreto Legislativo nº 6/20.

Ao dispor sobre o tema, cujo núcleo é a saúde, a lei federal encontra respaldo no artigo 24, XII CF, em conjunto com o seu parágrafo 1º. A primeira conclusão é que só poderia ela cuidar de normas gerais que seriam de observância obrigatória por estados e municípios. Ficaria preservada a competência dos demais entes sobre assuntos tipicamente regionais ou locais no que não conflitassem com as normas gerais da União, tudo isso enquanto o tema dissesse respeito à proteção e defesa da saúde. A teor do disposto no artigo 23, II, da CF, as questões regionais ou locais ficariam a cargo de estados e municípios os quais têm competência (poder-dever) para cuidar da saúde.

A questão é quem faz o quê quando há medidas que interfiram nos três níveis do governo. Nesse caso, como adiante se verificará, a solução há de ser dada em razão do interesse de cada um. Se nacional, da União; regional, dos estados; e local, dos municípios.

Claro que poderiam os estados legislar amplamente sobre saúde no que respeitasse o interesse regional, desde que não houvesse conflito com as normas gerais da União. O município também poderia regular o que fosse de interesse local.

Nesse sentido, a lei que organiza os serviços de saúde, Lei 8.080/90, refletiu de modo coerente a distribuição constitucional de competências ao determinar que cabe aos municípios gerir e executá-los, pois, nos termos do artigo 30, VII, CF compete-lhes prestá-los diretamente, mediante cooperação técnica e financeira da União e dos estados. Prevalece, aqui, o interesse local. Aos estados compete promover a descentralização dos serviços de saúde, bem como prestar apoio técnico e financeiro aos municípios. A execução direta desses serviços pelos estados é supletiva. E à União compete estabelecer normas gerais e, excepcionalmente, nos casos de calamidade, executar diretamente ações de saúde (artigo 16, parágrafo único, Lei 8.080/90).

Ressalte-se, entretanto, que a questão central aqui tratada diz respeito à calamidade pública. O artigo 21, XVIII, CF dispõe sobre competências materiais/administrativas. No âmbito dessa competência da União para "planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas", é seu dever estabelecer diretrizes e tomar as providencias necessárias. 

Nesse sentido, em compatibilidade com a competência constitucional, a Lei 8.080/90 determinou que "a União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional" (artigo 16, parágrafo único). Essa disposição confirma o poder/dever da União de atuar em defesa da saúde quando o risco de disseminação ultrapassa as fronteiras municipais e estaduais.

O referido artigo 21, XVIII, CF deve ser lido no contexto das atribuições de meios e finalidades nela descritos em matéria de calamidades, tais como o artigo 167, §3º, segundo o qual é dado à União abrir "crédito extraordinário" para custeio de gastos oriundos "de calamidade" e o artigo 148, I, segundo o qual compete à União "instituir… empréstimos compulsórios (…) para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública". A interpretação sistêmica desses dispositivos da Carta Maior, que não se interpreta em tiras [1], aponta para a competência da União em matéria de calamidade pública nacional.

Daí surge a indagação: e se houver a necessidade de lei para regular esse tema?

Como acima ressaltado, a União deverá dispor sobre normas gerais com base no artigo 24, inciso XII, CF sem prejuízo de, quanto aos demais aspectos da calamidade, editar as leis que se façam necessárias, sobretudo no que tiver alcance nacional. Tudo o que transcender a área de atuação de estados e municípios será de competência da União. Cada estado poderá atuar no que respeite a sua região, desde que isso não interfira nas demais regiões. Se isso ocorrer, a questão será nacional. Da mesma forma, o peculiar interesse local será restrito ao âmbito do município. Se as ações tomadas interferirem em outros municípios, ter-se-á questão regional, de competência de cada estado. Entretanto, tudo o que for relativo ao trato da calamidade pública e que seja de interesse da nação, será de competência legislativa e administrativa da União.

Além disso, a competência para legislar sobre outros aspectos dessa multifacetada crise, tais como relações internacionais, abastecimento, transporte interestadual, moeda, economia nacional, relações de trabalho e outros, remanesce no campo da União, como determina o artigo 22, CF.

Com base nesses dados, parece-nos que a União é quem pode e deve dispor sobre isolamento e quarentena enquanto "normas gerais". Também é ela quem deve traçar o conteúdo das normas a serem observadas pelos estados e municípios quanto às medidas restritivas possíveis, quando e como adotá-las, assim como disciplinar demais questões de interesse nacional. Reserva-se aos estados e municípios adotar medidas relativas ao que não for de interesse nacional, assim entendido o que produza efeitos em mais de uma região ou em todo o território nacional.

No exercício dessas competências normativas e territoriais, os estados e municípios poderão tomar medidas administrativas, como isolamento ou quarentena, desde que motivem razoavelmente os seus atos atentos ao princípio da proporcionalidade. Com efeito, à luz da teoria dos motivos determinantes, a validade de todo ato administrativo depende da indicação dos motivos de fato (circunstância efetiva que serve de suporte ao ato) e de direito (previsão legal abstrata de uma situação fática que justifica o ato) que autorizem a sua prática. Além da mera indicação desses motivos, deve haver perfeita correlação entre um e outro (subsunção do fato descrito à norma na qual se fundamenta o ato).

A motivação deve ser lógica e atender ao princípio da proporcionalidade, em sua vertente de razoabilidade. Tanto é assim que o atual parágrafo único do artigo 20 da LINDB, assenta que é por meio dela que se "demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta". Portanto, deve ela ser específica e fundamentada em dados reais para que se saiba quais são as razões de fato que levaram o administrador público a praticar o ato. Afinal, motivação absolutamente genérica equivale a não motivação.

Dizer-se, por exemplo, que o ato (ou a lei) que disponha sobre severas restrições de direitos tem motivação em "questões de saúde" ou de "preservação da vida" não é suficiente. Implica, por sua generalidade, ausência de motivação.  Da mesma forma, não é suficiente afirmar que as decisões têm base na "ciência", sem expor qual opção foi adotada e por quê.

Também não parece razoável que estados decretem quarentena em todo o seu território sem observar as diferenças existentes entre os seus municípios, pois alguns podem ter número insignificante de doentes e rede de saúde em condição de absorver todos casos, e outros possuir situação oposta, com número elevado de pessoas contaminadas e poucos leitos de hospital. Como tratar igualmente os desiguais?

Além disso, os municípios também poderão cuidar dessas matérias no âmbito da saúde. Porém, se isso afetar questões de âmbito nacional ou mesmo estadual, haverá invasão de competência. Vale dizer, a área de atuação dos prefeitos é restrita ao território do respectivo município e naquilo que diga com a saúde dessa localidade. No que interferir com outras áreas, haverá invasão da competência de outros entes. Da mesma forma que os estados, os municípios deverão motivar seus atos.

Se o prefeito de determinado município tiver informações técnicas e científicas que justifiquem decisões pela abertura ou fechamento de comércio local, essas devem prevalecer, ainda que o governador do estado tenha baixado ato em sentido contrário. Assim, se o governador decretar o chamado lockdown, mas o prefeito de determinada cidade tiver justificativa plausível, razoável, baseada em dados confiáveis no sentido da desnecessidade ou da prejudicialidade do lockdown, ele poderia exercer sua competência e não impor tal restrição no âmbito municipal. O inverso também se aplica. Se o governador determinar a liberação total do comércio, porém o prefeito possuir dados que não a recomendem, ele poderá agir de forma diversa, mantendo as restrições.

Por fim, assinale-se que os atos discricionários da União também deverão ser motivados em atenção à proporcionalidade.

Não há discricionariedade sem escrutínio público no contexto do Estado Democrático de Direito. Todos os atos de agentes públicos em tema da Covid-19 devem ser explicados à sociedade para que esta possa controlá-los. Tratando-se de calamidade pública, exige-se motivação extra qualificada e respeito às competências constitucionais, em especial àquela prevista no artigo 21, XVIII, CF.

Assim, respeitada a imprescindível justificação, entende-se ser plenamente possível a estados e municípios estabelecerem suas próprias normas no que tange ao seu peculiar interesse regional ou local, em busca da preservação da vida e da saúde dos brasileiros que, por um ou outro motivo, habitem em seu território. O alcance normativo das normas federais busca uniformizar procedimentos, porém não tem o poder de invalidar as necessárias considerações da realidade vivida por estas populações, que elegeram seus governantes locais e regionais, para governá-los. Brasília pode muito, mas não pode tudo.

 


[1] ADI 3685-8/DF, Ministro Eros Grau, j. 23/3/2006.

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