Opinião

Em tempos de pandemia, a judicialização da saúde precisa ser racionalizada

Autor

  • Renzzo Giaccomo Ronchi

    é juiz de Direito do TJ-MG doutorando em Direito pelo IDP mestre em Direito Constitucional pelo IDP docente da Escola Judicial (Ejef) do TJ-MG e professor colaborador do mestrado em administração pública da UFVJM.

18 de maio de 2020, 10h08

No sistema jurídico brasileiro sempre houve uma flagrante falta de uniformidade nas da Justiça e uma dificuldade de se identificar com clareza qual é o entendimento de um tribunal sobre um tema específico, frente à ampla gama de decisões em diferentes sentidos tratando sobre a mesma matéria.

Desse modo, um dos objetivos do novo Código de Processo Civil (NCPC) foi expressamente estabilizar e uniformizar a jurisprudência, tendo pontuado a comissão de juristas que a segurança jurídica fica comprometida com a "brusca e integral alteração do entendimento dos tribunais sobre questões de direito" [1].

Nessa linha, o artigo 926 do NCPC ficou redigido assim: "Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente".

O dispositivo legal prevê, assim, deveres gerais para os tribunais no âmbito do desenvolvimento de um sistema de precedentes, sendo eles: I) o dever de uniformizar sua jurisprudência; II) o dever de manter essa jurisprudência estável; III) o dever de integridade; IV) o dever de coerência e V) o dever de dar publicidade adequada aos seus precedentes [2].

Com efeito, em 23 de maio de 2019 o Supremo Tribunal Federal julgou o ED no RE nº 855.178/SE (com repercussão geral, relator ministro para  acórdão Edson Fachin), ocasião em que reafirmou a tese de que a responsabilidade dos entes estatais é solidária nas demandas prestacionais na área de saúde, competindo à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

A ementa do acórdão foi publicada recentemente, na data de 16 de abril de 2020, contendo o seguinte teor:

"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. DESENVOLVIMENTO DO PRECEDENTE. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE DE SOLIDÁRIA NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. 2. A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. 3. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Precedente específico: RE 657.718, relator ministro Alexandre de Moraes. 4. Embargos de declaração desprovidos" (ED no RE nº 855178/SE, relator ministro LUIZ FUX, relator p/ acórdão: ministro Edson Fachin, Pleno, julgado em 23/5/2019, DJe de 15/4/2020). (grifos do autor) 

Embora tenha sido confirmada a solidariedade dos entes federativos pela prestação de saúde, fato é que no plenário do Supremo Tribunal Federal prevaleceu a orientação de que se fez necessário promover desenvolvimento da tese firmada no julgamento do AgR na STA nº 175/CE, relator ministro Gilmar Mendes, no sentido de que as políticas públicas de saúde devem ser prestigiadas e, consequentemente, as regras administrativas de repartição de competências também devem ser objeto de atento exame pelo magistrado.

O desenvolvimento da tese firmada que não se confunde com a figura da superação do precedente (overruling) justificou-se, conforme disse o próprio ministro Edson Fachin em seu voto, pelo fato de que "desde a realização da audiência pública em matéria de saúde e o julgamento da STA 175 passaram-se quase dez anos, em cujo lapso se inseriram diversos fenômenos correlatos à judicialização de prestações sanitárias, incluindo, neste rol, a criação do Fórum Nacional de Saúde no âmbito do CNJ. Além disso, houve: I) aumento da judicialização em matéria da saúde; II) desestruturação do SUS; III) sobreposição ou ausência de cumprimento de decisão judicial".

Assim, a tese vencedora, que constou no voto do mininstro Edson Fachin, ficou redigida com o seguinte teor:

"Partindo do exame das espécies de tutela examinadas na STA 175, é possível estabelecer condicionantes para a admissão das respectivas ações. Quando a pretensão veicular pedido de entrega de medicamento padronizada, a competência estatal é regulada por lei, devendo figurar no polo passivo a pessoa política com competência administrativa para o fornecimento do medicamento, tratamento ou material. Quando o medicamento não for padronizado, a União deve compor o polo passivo da lide. Além disso, a dispensa judicial de medicamentos, materiais, procedimentos e tratamentos pressupõe ausência ou ineficácia da prestação administrativa e a comprovada necessidade, observando, para tanto, os parâmetros definidos no artigo 28 do Decreto Federal nº 7.580/11. Base constitucional: o direito à saúde (artigo 196 e ss. da CRFB); repartição federal de competências (artigo 23, I e II, da CRFB)." (grifos do autor)

Como se percebe, houve uma mudança significativa no tratamento da matéria, pois, embora continue existindo a solidariedade entre os entes estatais para o acionamento do Poder Judiciário o que se fez para garantir a máxima proteção ao paciente enfermo, que pouco conhece do intrincado sistema de saúde , o magistrado, doravante, deve observar as regras de repartição de competências sanitárias ao direcionar o cumprimento da obrigação.

Em outros termos, isso significa que todos os entes da federação podem integrar o polo passivo do processo, mas o direcionamento da obrigação, que é feito pelo juiz, deve atentar-se para as regras de repartição de competências sanitárias.

De fato, a ementa desse acórdão não espelhou, com fidelidade, as questões que foram decididas pelo Supremo Tribunal Federal, mas isso não quer dizer que as teses, em si, não devam ser observadas, até porque a ementa é apenas uma síntese do julgamento.

Aliás, a ementa contém até mesmo um pequeno equívoco ao mencionar no final que a relatoria do julgamento no RE nº 657.718/MG ficou a cargo do ministro Alexandre de Moraes quando, em verdade, a redação do acórdão ficou sob a responsabilidade do ministro Roberto Barroso, que teve a tese vencedora. Tratando-se de um erro material, pode ser corrigido até mesmo de ofício.

Apenas a título de ilustração, em 2010, quando foi publicado o acórdão do julgamento realizado no AgR na STA nº 175/CE, relator ministro Gilmar Mendes, a ementa também não espelhava, com toda sua profundidade, as questões que foram examinadas pelo plenário da Suprema Corte, sendo necessária a leitura do voto proferido pelo relator para a perfeita compreensão da matéria.

Nesse ponto, realizado o julgamento do ED no RE nº 855.178/SE, que define ser do magistrado a responsabilidade pelo direcionamento da obrigação, cumpre enfatizar, nesse sentido, que a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), em seus artigos 16, 17 e 18, regulamenta a responsabilidade comum e define atribuições entre a direção nacional, a direção estadual e a municipal da saúde.

Por sua vez, o artigo 19-U da lei orgânica da saúde reforça a distribuição de competências, estabelecendo que "a responsabilidade financeira pelo fornecimento de medicamentos, produtos de interesse para a saúde ou procedimentos de que trata este Capítulo será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite".

O artigo 10 da Resolução nº 1/2012 da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) reforça a repartição de competência prevista na Lei Orgânica da Saúde. Por outro lado, a Portaria nº 1.555/2013 regulamenta a competência dos municípios para o componente básico de assistência farmacêutica, enquanto a Portaria nº 1.554/2013 define a competência dos Estados e da União para o componente especializado de atenção farmacêutica.

O Decreto nº 7.508/2011, como norma reguladora da Lei nº 8.080/1990, é o diploma legal responsável pelo direcionamento das ações e serviços de saúde, disciplinando a responsabilidade de cada ente político (União, estados, Distrito Federal e municípios).

Municípios são responsáveis pela atenção básica e pelo fornecimento dos medicamentos do componente básico de atenção farmacêutica, ao passo que estados e União são os responsáveis pela média e alta complexidades e pelo componente especializado e estratégico de atenção farmacêutica.

A Rename (relação nacional dos medicamentos essenciais), aprovada pela Resolução CIT nº 1/2012, atualizada periodicamente a cada dois anos, conforme Portaria nº 3.047/2008, é considerada o principal instrumento que fixa regras de repartição de competência e distribuição de atribuições.

Dessa forma, em se tratando de cumprimento de política pública, o magistrado poderá se nortear segundo esses diplomas normativos que integram o complexo sistema jurídico sanitário.

Situação diferente, no entanto, ocorrerá quando a demanda judicial pleitear tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas.

Para essas hipóteses, o ministro Edson Fachin, em seu voto, foi enfático ao pontuar que "a União necessariamente comporá o polo passivo, considerando que o Ministério da Saúde detém competência para a incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos, procedimentos, bem como constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica (artigo 19-Q, Lei 8.080/90), de modo que recai sobre ela o dever de indicar o motivo da não padronização e eventualmente iniciar o procedimento de análise de inclusão, nos termos da fundamentação".

De fato, a presença da União no polo passivo poderá esclarecer, entre outras questões: a) se o medicamento, tratamento ou produto tem ou não uso autorizado pela Anvisa; b) se está ou não registrado naquela agência; c) se é ou não padronizado para alguma moléstia e os motivos para isso; e d) se há alternativa terapêutica constante nas políticas públicas, etc.

Com efeito, tal posicionamento privilegia o Enunciado n° 78 do Comitê Executivo do Fórum de Saúde do Conselho Nacional de Justiça, o qual dispõe que "compete à Justiça Federal julgar as demandas em que são postuladas novas tecnologias ainda não incorporadas ao Sistema Único de Saúde SUS".

Perceba-se que a tese firmada no ED no RE nº 855.178/SE é diversa daquela assentada no julgamento do RE 657.718/MG, relator ministro para acórdão Roberto Barroso, que versou sobre o debate acerca da obrigação do Estado de fornecer medicamento sem registro na Anvisa. Isso porque no primeiro julgamento ficou definido que, em se tratando de demanda judicial pleiteando tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas, a União deve também compor o polo passivo. Isso irá ocorrer sem o prejuízo dos outros entes federados também integrarem o processo, considerando a responsabilidade solidária. No segundo julgamento, contudo, por se tratar de medicamento sem registro na Anvisa (órgão federal), o STF entendeu que a demanda deve ser ajuizada somente contra a União.

Feitas essas considerações, incumbe aos tribunais e juízes brasileiros observarem as teses firmadas pela Suprema Corte do nosso país no julgamento do ED no RE nº 855.178/SE, relator ministro para acórdão Edson Fachin, haja vista que o artigo 926 do Código de Processo Civil preocupou-se em sistematizar a aplicação dos precedentes, apostando na criação de um ambiente decisório mais isonômico e previsível.

Além disso, em tempos de pandemia, é absolutamente necessário que tribunais e juízes produzam decisões que gerem segurança jurídica, ainda mais em prestações de saúde que lidam com o tema sensível da escassez de recursos.

Se é inquestionável que o direito à saúde é fundamental, por outro lado não se pode desconsiderar que sua concretização é garantida mediante políticas sociais e econômicas, sendo certo que o acesso às ações e serviços é feito de modo igualitário e universal conforme a realidade orçamentária de cada ente federativo.

Conforme Stephen Holmes e Cass Sunstein, "ignorar os custos é deixar certas trocas dolorosas fora do nosso campo de visão" [3].

O custo dos direitos é um tema que não pode ser relegado a segundo plano, haja vista que a concretização dos direitos fundamentais de caráter prestacional deve ser realizada à luz das possibilidades financeiras do Estado, sob pena de se criar seletividade e violação ao princípio da isonomia, favorecendo-se determinadas pessoas, que ingressam com demandas judiciais, em detrimento de toda a coletividade.

A harmonização dos julgados é fundamental para um Estado de Democrático de Direito, pois tratar as mesmas situações fáticas com a mesma solução jurídica resulta na preservação do princípio da isonomia, além do que também gera segurança jurídica, uma vez que evita longos debates sobre a matéria, permitindo, assim, que todos se comportem conforme o Direito.

Não bastasse isso, a uniformização da jurisprudência contribui para melhorar a credibilidade da imagem do Poder Judiciário, pois afasta o modo irracional de administrar a Justiça, sobretudo em um momento crítico como esse que o país está atravessando. Ademais, as ideias de unidade do Direito e de precedentes obrigatórios colaboram para o fortalecimento do Poder Judiciário enquanto instituição [4].

Em tempos de pandemia da Covid-19, caraterizada por uma crise sanitária e econômica de proporção mundial, a judicialização da saúde precisa ser racionalizada, sob pena de colapso do sistema sanitário e ineficácia das decisões judiciais.

 


[1] FUX, Luiz. Novo CPC vai dotar Judiciário para enfrentar processos. 5/22010. ConJur. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2010-fev-05/cpc-dotar-judiciario-enfrentar-milhares-processos>. Acesso em 7/8/2019.

[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. Volume 2. 10ª edição. Salvador: JusPODIVM, 2015.

[3] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass r. O custo dos direitos. Por que a liberdade depende dos impostos. São Paulo: Martins Fontes; 2019, p. 8.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. A Ética dos Precedentes. Justificativa do novo CPC. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016; p. 109.

Autores

  • é juiz de Direito do TJ-MG, de entrância especial, titular do Juizado Especial Cível, Criminal e da Fazenda Pública de Teófilo Otoni, 2º titular da 1ª Turma Recursal do Grupo Jurisdicional de Teófilo Otoni, professor do curso de Direito da Faculdade Doctum-Teófilo Otoni, mestrando em Direito Processual Constitucional pela Universidad Lomas de Zamora, na Argentina e pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG.

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