Interpretação extensiva

Pragmatismo do STF garante estados e municípios no "orçamento de guerra"

Autor

18 de maio de 2020, 9h03

A confirmação da liminar proferida pelo ministro Alexandre de Moraes na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.357 e sua consequente extinção por perda superveniente do objeto representaram, para municípios e estados, um bom sinal. Ao analisar o caso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal embasou sua decisão em uma interpretação extensiva da Emenda Constitucional 106, englobando todos os entes federativos.

Kateryna Kon
Coronavírus gerou momento de legalidade excepcional, segundo constitucionalistas 
Kateryna Kon

Isso significa que estados e municípios estão inclusos no chamado “orçamento de guerra”, embora o artigo 2º da EC 106 indique expressamente que se destina ao “Poder Executivo federal, no âmbito de suas competências”. Relator, o ministro Alexandre de Moraes esclareceu ao votar que “não será possível interpretar os artigos impugnados [na ADI] sem se observar para todos — União, estados e municípios — o artigo 3º da emenda constitucional”.

Ficou vencido o ministro Luiz Edson Fachin, para quem a similitude entre a liminar e a emenda constitucional mereceria exame a parte. Mas reconheceu o que definiu como “pragmatismo” da corte. É esse aspecto que, na visão da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf), alivia as preocupações dos entes federados. A entidade atuou como amicus curiae na ação.

“Apesar da extinção da ADI 6.357, o STF acabou por fixar no julgamento final um entendimento claro, no sentido de que a EC 106/2020 se aplica aos estados, Distrito Federal e municípios em todos os seus dispositivos, mas sobretudo no que tange ao seu artigo 3º”, afirmou Ricardo Almeida, assessor jurídico da Abrasf.

Constitucionalistas consultados pela ConJur encampam o argumento, por variados motivos. Conceder essa interpretação a emenda constitucional que não é alvo da ação pode ser incomum, mas é medida coerente com o restante do regramento e principalmente com o momento de excepcionalidade causado pela pandemia no país.

Carlos Moura - SCO/STF
Ministro Edson Fachin chamou atenção para postura pragmática do Plenário 
Carlos Moura – SCO/STF

Incomum, mas coerente
“Se a matéria veiculada pela emenda constitucional resolve o problema suscitado, é natural a perda de objeto e o arquivamento da ação. O que não é comum é estender esses benefícios para os demais entes federativos. Eles precisariam fazer essa provocação. Com base no princípio da isonomia, acho até que conseguiriam a extensão. Mas fazer sem provocação é, no mínimo, curioso”, opina Marco Aurélio Carvalho.

Ele ressalta que o momento é de “legalidade extraordinária”, na definição dos juristas Lenio Streck e Pedro Serrano. Então é natural que se repensem aparatos legais e crie alternativas para enfrentar dificuldades absolutamente imprevistas. 

O próprio Lenio Streck explicou que não há vinculação de decisão ao que foi pedido, abrindo espaço para decisões incidentais. “Vale o que o STF decidiu. Na verdade, se vale para a União, deve valer também para estados e municípios, que estão vinculados à Lei de Responsabilidade Fiscal.”

Esse aspecto também é destacado por Vera Chemim: a própria LRF, bem como a Lei de Diretrizes Orçamentárias, têm regramento que permite a superação de entraves em momento de calamidade pública. E elas valem para todos os entes federados. 

“Essa interpretação foi dada em decorrência da própria Lei de Responsabilidade Fiscal, principalmente porque é conforme a Constituição no sentido de que o mais importante é a proteção à vida, à saúde. Portanto, há que se respeitar o princípio da razoabilidade”, apontou.

"Temos uma estrutura federativa de Estado. Se a União estaria eximida dessas obrigações, a pergunta que faz é: por que não estados e municípios também? Todavia, não acho que seja a questão fundamental", afirma Marcelo Cattoni.

Como destacou em artigo publicado na ConJur, uma emenda constitucional não pode eximir o poder público da responsabilidade orçamentária e fiscal. É uma violação do principio republicano. "O Estado deve prestar contas. E o STF, ao estender aos estados e municípios, agrava ainda mais a inconstitucionalidade prevista da Emenda Constitucional 106", critica.  

Dorivan Marinho/SCO/STF
Ministro Barroso  se impressionou com argumentos sobre situação dos municípios 
Dorivan Marinho/SCO/STF

Pedido de amicus curiae
Em nota da Abrasf, Ricardo Almeida classificou o entendimento do STF como “interessante”, mas apontou que não é adequado extrair dele efeito processual próprio para os demais órgãos públicos. Ressaltou o caráter obiter dictum da interpretação da EC — como elemento da ratio dicidendi do acórdão, sem vinculação a casos futuros, . 

“O STF realmente inventou uma forma anômala de dar efeitos jurídicos a entendimentos fora do iter processual, mesmo diante da amplitude dos marcos que balizam o controle de constitucionalidade. Há um evidente exagero no manejo do obiter dictum, o que cada vez mais aproxima os atos ilocutórios do STF daqueles típicos da seara política”, analisou.

Na tribuna do julgamento por videoconferência, antes do voto do relator, ele apontou que a Emenda Constitucional 106 foi promulgada em boa hora, mas não resolvia com a mesma extensão da liminar concedida na ADI, que tinha objeto muito mais amplo. Destacou, inclusive, uma “dificuldade de coincidência entre as duas normas”. “Há hoje situação de absoluta lacuna jurídica e jurisprudencial”, disse.

Por isso, a Abrasf conclamou a Advocacia-Geral da União, autora da ADI, a incluir no pedido inicial o artigo 42 da LRF, que veda aos municípios “nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele”. Em vigor e na atual situação, este artigo colocaria sob risco a atuação de prefeitos no contexto da pandemia.

Como o advogado-geral não se manifestou e a Abrasf atuou como amiga da corte, o pedido não foi considerado. Nas ADIs, ressaltaram ministros ao votar, a causa de pedir é aberta, mas o pedido, não. “Não vejo como poderíamos proceder dessa forma, mas me impressiono com o argumento e acho que, se vier por via própria, possivelmente será acolhido”, disse o ministro Luís Roberto Barroso.

Clique aqui para ver a nota da Abrasf
ADI 6.357

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!