Opinião

"Sextorsão": quanto custa a sua intimidade?

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18 de maio de 2020, 6h34

Uma simples mensagem de um desconhecido na caixa de e-mail da vítima, com dizeres em português ou qualquer outro idioma, pode passar despercebida e ir direto para o lixo eletrônico.

Por outro lado, um e-mail cujo “assunto” é o seu nome completo seguido de sua senha particular, pode fazer a razão de qualquer pessoa que tenha algum tipo de rede social ativa, dissipar-se, dando lugar a irracionalidade e pânico.

O temor de ter a privacidade invadida ou de ser exposta para seus amigos, familiares e contatos profissionais, cega a mais precavida das vítimas usuárias.

Isso acontece porque o “assunto” do e-mail já indica à vítima que sua senha foi descoberta ou hackeada, logo, o remetente da mensagem deve ter de fato acesso aos seus contatos e ao seu e-mail e aplicativos.

Somado a isso está o conteúdo da mensagem, que figura como uma chantagem: em troca de não enviar registros de conteúdo íntimo ou pornográfico “encontrado em seu dispositivo” a todos os seus contatos, a ela é feita a exigência de transferência de valores ou de compra de moedas criptografadas, dentro de um curto prazo.

Esse conteúdo frequentemente se refere a vídeos ou fotografias que teriam sido realizados pela vítima com ou sem o seu conhecimento, através da câmera do seu dispositivo.

A vítima desatenta e assustada se vê envolvida em uma teia de aranha, com grandes chances de cair no golpe para evitar a possível exposição.

Sextorsão
Este caso acima não se encaixa na já conhecida prática de Pornografia de Vingança (“revenge porn”), muito comum ao final de relacionamentos amorosos quando a vítima tem suas fotos e vídeos íntimos compartilhados pelo agressor como forma de vingança.

A "Sextorsão" é uma modalidade do crime de Extorsão, um golpe já bastante conhecido por alguns usuários, que pode ocorrer de forma bem similar ao do caso acima, sendo frequente a hipótese de o autor do golpe não ter qualquer conteúdo comprometedor da vítima, mas com uso de mecanismos convincentes, como indicação de dados pessoais e senhas, faz com que sua vítima acredite na ameaça sofrida.

Também ocorre quando a vítima de fato produz fotos e vídeos íntimos. Nesses casos, ela pode ser ameaçada por um hacker que invadiu o seu dispositivo, ou por algum conhecido que tenha recebido o conteúdo enviado por ela (ex: “nudes” enviado a um namorado). Mesmo a vítima tendo enviado o conteúdo a alguém, não necessariamente o compartilhamento tenha sido realizado por essa pessoa, podendo também ter sofrido a invasão de um hacker.

Mesmo nesta modalidade, é possível perceber como o machismo opera no ambiente virtual, sendo as vítimas mulheres o público alvo das mensagens, estando mais vulneráveis em relação a exposição de qualquer conteúdo possivelmente ligado à sua sexualidade.

Cuidados necessários:
Recebendo algum e-mail ou mensagem com conteúdo parecido, seja em português ou outra língua, contendo algum dado pessoal ou senha, estes cuidados básicos são necessários.

Primeiramente, a pessoa precisa recuperar a sanidade e manter a calma! Não é incomum encontrarmos vítimas de golpes em que as ameaças sequer condiziam com a realidade. Nesse sentido, mesmo que a vítima nunca tenha feito gravações ou fotografias de conteúdo íntimo, passa a duvidar de sua própria conduta, internalizando aquela informação mentirosa em razão do medo de ser exposta.

Além disso, é preciso verificar se os dados pessoais informados no e-mail estão corretos e se a senha que está sendo usada para a chantagem de fato corresponde à utilizada em seus logins atuais. Isso porque senhas antigas (que a pessoa utilizou há cerca de 10 anos, por exemplo) podem ter sido hackeadas, estando em circulação e sendo comercializadas na deep web[1].

A vítima também deve verificar se o teor da mensagem enviada é um golpe já conhecido na internet. Fazendo um simples Ctrl-C Ctrl-V e lançando o texto em sites de busca, é possível encontrar um padrão normalmente utilizado pelos agressores.

Algumas orientações já devem ser velhas conhecidas dos usuários da internet, mas a falta de cuidado gera alta exposição e vulnerabilidade. Relembramos algumas dessas dicas: verificar a autenticidade do site, cuidado ao efetuar cadastros, evitar a utilização da mesma senha em vários serviços e fazer a sua troca constantemente.

Caso a vítima tenha interesse em processar criminalmente ou civilmente o autor do crime, deve procurar preservar as provas: fazer print dos e-mails e mensagens, fazer um backup da conta de e-mail, whatsapp e rede social, não apagar ou excluir a postagem, mas se possível apenas ocultar ou desativar o perfil sem excluir, e por fim, print das páginas dos conteúdos com a URL da postagem e do perfil.

Como o Direito trata do assunto?
A Sextorsão não é a única modalidade de violência sexual online. Por mais que as práticas estejam em constante aprimoramento por parte dos agressores, atualmente a legislação tem dado conta de prever punição aos agressores.

As violências estão relacionadas à extorsão ou chantagem sexual (sextorsão), registro não autorizado de intimidade sexual (registro de fotos ou vídeos sem o consentimento da vítima), exposição pornográfica não consentida (compartilhamento de cenas de estupro, cena de sexo ou pornografia – fotos ou vídeos sem o consentimento da vítima), pornografia de vingança e estupro virtual.

Talvez o mais curioso seja este último, mas o ato de constranger alguém, em um relacionamento virtual, à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, já está sendo alvo de sucessivas condenações criminais pelo crime de Estupro (artigo 213 do Código Penal).

A Sextorsão será punida conforme as penas previstas no artigo 158 do Código Penal, de acordo com o tipo penal da Extorsão.

O “Registro não autorizado de intimidade sexual” e a “Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia”, que podem corresponder à pornografia de vingança, foram introduzidas expressamente no Código Penal em 2018, sendo punidas conforme os artigos 216-B e 218-C, respectivamente.

O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) também trouxe inovação e proteção às vítimas, uma vez que o seu artigo 21 obriga a retirada imediata do conteúdo de nudez ou sexo, pelo provedor, após mera notificação da vítima ou de seu representante legal, sob pena de responder também pela violação da intimidade.

Em relação à competência, o STJ entendeu que será competente para investigar e processar o ato criminoso a Comarca de onde a vítima tomou conhecimento dos fatos, independentemente de onde esteja localizado o agressor e seu dispositivo. Tal entendimento se fundamenta na natureza virtual do crime e também na viabilidade para a investigação e acesso da vítima (Conflito de Competência nº 156.284).

Por fim, é possível além de processar criminalmente o agressor, buscar uma indenização civil pelos danos morais e eventualmente materiais causados.

Violência doméstica?
A organização sem fins lucrativos SaferNet, por meio de sua Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos (canal de recebimento de denúncias de crimes virtuais em cooperação com o Ministério Público), indica que 66% das vítimas de crimes cibernéticos são mulheres, em sua maioria tendo suas fotografias íntimas (os famosos “nudes”) compartilhadas[2].

As mulheres vítimas são exploradas através da exposição não consentida de seus corpos, sendo objetificadas e utilizadas como mercadoria, a fim de gerar vantagem financeira indevida aos agressores, ou qualquer sentimento de satisfação e vingança. Isso demonstra o quão cruéis e misóginas são essas práticas.

O aparente anonimato do mundo virtual instiga os agressores e os estimula a ingressar nessa empreitada, através da criação de perfis e logins falsos.

Por outro lado, a propagação das imagens das vítimas, e sua repercussão online, as trará grande sofrimento, com a consequente destruição de sua privacidade e intimidade.

É evidente, portanto, que os delitos cibernéticos relevam uma grave faceta da violência de gênero e misoginia, merecendo um tratamento jurídico diferenciado.

É importante, portanto, nos voltarmos para uma breve análise da normativa responsável pela tutela das mulheres em situação de violência doméstica.

Assim, quando o crime é cometido em âmbito familiar, domiciliar ou de qualquer relação íntima de afeto, independentemente de o agressor morar ou não com a vítima (exemplo: namoro virtual), é indiscutível a aplicação da proteção da Lei Maria da Penha e suas Medidas Protetivas de Urgência.

Por outro lado, a aplicação da lei ainda não é pacífica nos casos em que o agressor não está no convívio íntimo ou de afeto da vítima, como é comum nos casos de sextorsão.

Mesmo sem um entendimento jurisprudencial consolidado, por ser ainda tímido o debate sobre o assunto, entendemos que é devida a proteção da Lei Maria da Penha, uma vez que evidentemente a vítima mulher foi escolhida não à toa pelo agressor, sendo que a repressão social sobre a sexualidade e intimidade feminina eleva a mulher ao patamar de extrema vulnerabilidade – violência de gênero.

Assim, a mulher vítima desses delitos merece a proteção do Estado fundamentada na razão de ser da própria normativa inaugurada pela Lei Maria da Penha, que foi criada a fim de resguardar a vítima de crimes baseados na violência de gênero.

Aconteceu com você?
Se você se identificar com algum desses fatos, a primeira providência a tomar é fazer o registro de todas as provas, como acima sugerido.

Em seguida, entrar em contato com alguma pessoa de confiança que possa te ajudar sem te julgar — importante procurar também um(a) advogado(a) de confiança, para uma orientação de acordo com as especificidades do seu caso concreto.

É necessário fazer um Boletim de Ocorrência direto na delegacia, ou solicitar a(o) advogada(o) a realização de um Pedido de Instauração de Inquérito Penal, para que a Polícia tome conhecimento do crime e inicie a investigação.

Em diversos Estados já existem delegacias especializadas em crimes cibernéticos, estando melhor preparadas para esse tipo de investigação. De qualquer forma, a delegacia mais próxima da residência da vítima estará apta para a apuração do crime.

Por fim, havendo compartilhamento e postagem de fotos e vídeos, é possível imediatamente já contatar o provedor onde o conteúdo foi encontrado, solicitando a exclusão, conforme prevê o Marco Civil da Internet.

Mas afinal, quanto custa a sua intimidade?
Como visto, o machismo estrutural opera tão austeramente que conduz a vitima a sofrer uma severa condenação moral e social, sendo apontada como responsável pelo registro e posterior exposição de sua intimidade.

A mulher permanece alijada do poder sobre sua sexualidade!

A cobrança e julgamento da sociedade fazem com que a vítima não meça esforços para atender as requisições do agressor, mesmo sem ter certeza sobre a existência ou não de qualquer conteúdo, e se o agressor verdadeiramente detém a posse disso.

Em tempos de quarentena e isolamento social, as relações virtuais se intensificaram, o que também facilita a aplicação de golpes cibernéticos, por isso o cuidado com a privacidade deve redobrar.

É certo que nossa intimidade não está disponível para negociação, e por isso é importantíssimo levar tais informações ao conhecimento do maior número de pessoas, para que possíveis vítimas identifiquem as situações narradas e saibam como se proteger e como agir!

[1] SANTINO, Renato. Lista com mais de 1,4 bilhão de senhas roubadas é descoberta na deep web. Olhar Digital. Disponível em: <https://url.gratis/z5Bm7>. Acesso em 22 de abr. 2020.

[2] Crimes sexuais pela internet: a violência contra a mulher entre o real e o virtual. Notícias AASP. Disponível em <https://www.aasp.org.br/noticias/crimes-sexuais-pela-internet-violencia-contra-mulher-entre-o-real-e-o-virtual>. Acesso em 22 de abr. de 2020.

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