Medida Provisória 961: os riscos e as vantagens da nova norma anticrise
17 de maio de 2020, 15h03
Na sequência de normas federais editadas para municiar os entes públicos com ferramentas de combate à pandemia da Covid-19, foi publicada no DOU de 7 de maio a Medida Provisória nº 961, que autoriza pagamentos antecipados nas licitações e nos contratos, adequa os limites de dispensa de licitação e amplia o uso do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
Chama a atenção que as normas gerais veiculadas na MP se aplicam aos atos praticados no período de vigência do estado de calamidade pública, ainda que: I) não se refira a bens, obras e serviços vinculados ao combate da pandemia; II) o contrato seja firmado por prazo que presumivelmente superará o estado de calamidade; e III) os contratos firmados nesse período e sob essas regras possam ser prorrogados até os limites legais.
Com esse novo perfil de abrangência, que decorre da redação de seus dispositivos e é enfatizado no artigo 2º da MP, bastante distinto do que se observa no artigo 4º da Lei n. 13.979/2020, a norma peca por não preservar a finalidade das medidas excepcionais estritamente relacionadas à também excepcionalidade da pandemia.
Não se sabe se essa redação foi proposital ou se decorre de uma falha no texto, mas é inequívoco que abre uma oportunidade para se experimentar as suas inovações em quaisquer tipos de licitações e contratos, ainda que não guardem nenhuma relação com a pandemia, colocando em dúvida até mesmo se — para isso — seria legítimo o uso da medida provisória, considerando a necessidade de ser editada a partir de relevância e urgência (artigo 62 da Constituição Federal).
A MP apresenta como novidade a inversão das clássicas fases de execução da despesa pública: empenho, liquidação e pagamento. Embora essa ordem esteja presente na Lei nº 4.320/64 e seja intuída da redação dos incisos XIII, XIV do artigo 40 da Lei nº 8.666/93 e do inciso V do artigo 81 da Lei nº 13.303/2016, o advento da MP apresenta maior relevo pela desburocratização do que pelo ineditismo.
Isso porque o Tribunal de Contas da União já admitia o pagamento antecipado (antes da liquidação), mas exigia basicamente três requisitos: I) previsão no instrumento convocatório; II) existência de estudo fundamentado comprovando a real necessidade e economicidade da medida; e III) estabelecimento de garantias específicas e suficientes, que resguardem a Administração dos riscos inerentes à operação (Acórdão n. 1826/2017-Plenário; Acórdão n. 4143/2016-1ª Câmara; Acórdão n. 1614/2013-Plenário; Acórdão n. 1341/2010-Plenário; Acórdão n. 2679/2010-Plenário, entre outros).
A aceitação decorria de uma fresta legal — o artigo 15, III, da Lei nº 8.666/93 prevê que as compras devem se submeter a condições de pagamento semelhantes às do setor privado — e de um imperativo da realidade: alguns itens somente são vendidos com pagamento, ainda que parcial, antecipado. Um exemplo avalizado pelo próprio TCU foi a aquisição de helicópteros (Acórdão nº 5294/2010 — 1ª Câmara).
Nos estritos termos da MP, manteve-se, com outro verniz, a exigência de se demonstrar que a antecipação de pagamento é indispensável para se viabilizar a contratação ou que propicia significativa economia de recursos; a previsão no edital e, por lógica imperativa do sistema, a obrigação de se exigir a devolução integral do valor antecipado na hipótese de inexecução do objeto. Excluiu-se, no entanto, a exigência de "garantias específicas e suficientes" que resguardariam a administração dos riscos do inadimplemento pelo privado.
Trocando em miúdos, a norma positivou o que antes estava implícito na Lei nº 8.666/93 e explícito nas orientações dos tribunais de contas, lustrando com um pouco de segurança jurídica os atos dos agentes públicos praticados nesse sentido — como o Governo Federal já pretendeu fazer no PL 791/2020 encaminhado ao Congresso Nacional —, na mesma medida em que desburocratizou a prática ao tornar desnecessária a prestação de garantia pelo particular.
Decorreu, não é difícil avaliar, do reconhecimento da escassez de diversos produtos e equipamentos em um cenário de alta demanda e que pela lei universal da oferta e da procura o vendedor não apenas venderá para quem pagar mais, mas venderá para quem pagar melhor. E o Estado não é exemplo de pontualidade no pagamento de suas despesas.
É por isso que na prática os entes públicos já vinham sendo constrangidos a promover o pagamento antecipado, sem que o privado tivesse sempre disposição de constituir garantias (custosas) em favor do poder público.
O Direito se curvou à realidade, ainda que elevando — e elevando muito — os riscos do poder público. Caberá aos servidores redobrarem as cautelas necessárias na verificação dos pressupostos legais do pagamento antecipado, limitando essa antecipação ao mínimo necessário para não se frustrar a licitação.
Admitir-se um certo parcelamento na entrega dos objetos mediante pagamento antecipado pode também minimizar os riscos de possível inadimplemento, além de exigir as garantias nos casos em que o mercado tenha apetito para prestá-las, especialmente porque a MP não vedou essa exigência e ela decorre da cautela exigida dos agentes pelo princípio da indisponibilidade do interesse público.
O outro ponto de destaque da MP é a aplicação do Regime Diferenciado de Contratações (RDC) a quaisquer obras, serviços, compras, alienações e locações. Desde a edição da Lei nº 12.462 em agosto de 2011, a aplicação desse regime originariamente destinado às licitações para a Copa das Confederações de 2013, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016 veio sendo expandida a partir de 2012 para abranger ações do PAC, obras e serviços de engenharia do SUS, obras e serviços em estabelecimentos penais, ações de segurança pública, obras e serviços para melhoria da mobilidade ou ampliação de infraestrutura logística, contratos de locação built to suit e ações em órgãos e entidades dedicados à ciência, à tecnologia e à inovação.
A aplicação pura e simples do RDC a todas as licitações do país já foi cogitada, mas se preferiu avançar em um novo marco legal para as licitações públicas a partir do Projeto de Lei 1292/95, já aprovado na Câmara dos Deputados e aguardando deliberação no Senado, que efetivamente incorpora progressos da Lei do Pregão e do RDC, além de corrigir discrepâncias e avançar em outros temas ainda não tratados na legislação nacional.
Essa abrupta aplicação do RDC de forma ampla, indistinta e imediata acelera a agonia da Lei nº 8.666/93, com seu formato burocratizante, e servirá de transição para o novo modelo que se avizinha com a aprovação do PL 1292/95.
Ao menos durante a calamidade pública se fará um teste de fogo para o RDC aplicado em todo o país e para quaisquer licitações, permitindo experimentar em maior abrangência os méritos desse regime, alguns adotados pontualmente em outras leis especiais e outros apenas nele previstos, como a inversão de fases, a unicidade recursal, os modos de disputa aberto e fechado e sua combinação, o regime de contratação integrada, o critério de julgamento pelo maior retorno econômico, a remuneração variável pelo desempenho, a repartição de riscos, entre outras.
A impressão inicial sobre a MP é que foi concebida para aprimorar a resposta do Estado no combate à pandemia, mas acabou sendo editada com uma largueza cujos efeitos ainda serão sentidos e são incalculáveis. Invertendo um pouco a fábula de La Fontaine, nesse caso, o rato pariu uma montanha.
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