Opinião

O direito adquirido à pena unificada

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17 de maio de 2020, 9h03

Inconformado com a data do término da sua pena de 30 anos constante no atestado de pena, um executado da Comarca de Patrocínio (MG) peticionou ao Juízo da Vara da Execução Criminal local para que a corrigisse, fundamentado no artigo 75, §2º, do CP.

O executado foi condenado a um total de 93 anos de pena que, unificada no início da execução penal, passou para 30 anos. Cumpridos longos anos de cárcere, fugiu depois de 20 anos e praticou um crime, em que foi condenado a um ano de detenção, pena suspensa por determinação judicial. Recapturado, o juízo determinou nova unificação de penas, desprezo do período de pena cumprido e a contagem de mais 30 anos a partir da sua recaptura.

No último dia 27 de abril, o juízo execucional assim decidiu:

"O sentenciado, por meio de sua procuradora, requer a retificação do atestado de pena para que a data do término da pena seja calculada a partir da primeira prisão do sentenciado, observando-se o limite de 30 anos de prisão previsto no artigo 75 do Código Penal (arquivos 126.1 e 131.1).

O Ministério Público pugnou pelo indeferimento do pedido (arquivo 129.1).

Decido.

Razão não assiste ao sentenciado.

Extrai-se dos autos que o sentenciado vinha cumprindo pena por várias condenações quando empreendeu fuga na data de 25/11/2013.

Na data de 13/3/2014, estando foragido, o sentenciado praticou novo crime, cuja pena somada às demais condenações ultrapassa 30 (trinta) anos, conforme guia de arquivo 1.63.

Dispõe o artigo 75, §1º do CP que:

Artigo 75 — O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos. (Redação anterior à Lei nº 13.964, de 2019)

Por sua vez, o § 2º do mesmo artigo supracitado determina:

§ 2º — Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido.

Com a condenação do sentenciado pela prática do novo crime posterior ao início da execução (13/03/2014), foi realizada unificação das penas e desprezado para esse fim o período de pena já cumprido, nos termos do artigo supracitado.

Dessa forma, vê-se que o atestado de pena encontra-se correto, sendo estritamente observados e cumpridos os ditames legais aplicáveis à espécie".

Data venia, parece estar equivocada a interpretação judicial quanto a qual "restante de pena" deve ser somado à nova pena. É o restante da pena unificada ou o restante da pena total?

O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser perpétuo na democracia brasileira (artigo 5º, XLVII, "b", CF/88). É garantia e direito constitucional de todo condenado brasileiro.

O artigo 75 do Código Penal brasileiro, embora anterior à Constituição brasileira democrática, já fixava um limite máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade 30 anos, que foi alterado recentemente para 40 anos pelo Pacote Anticrime.

Se nenhum dispositivo penal cuidasse, de forma expressa, do tempo máximo de execução das penas privativas de liberdade, a garantia constitucional poderia ser tangenciada e o condenado acabar cumprindo pena perpétua.

Mesmo que alguém seja condenado a um total de penas superior a esse limite, não estará obrigado a cumprir mais de 40 anos.

Quando alguém é condenado por um ou vários crimes e a pena ou a soma das penas for superior ao limite, o artigo 75, §1º, do CP e o artigo 111 da LEP determinam que, no início da execução, as penas devem ser unificadas para atender ao limite máximo de 40 anos. A unificação das penas deve ser feita também para determinação do regime penitenciário.

Assim, a unificação de penas passou a ser um direito e uma garantia em prol do condenado (RT 612/347; TJSP: RT 603/324, 606/297, 607/306; TACRSP: JTACRIM 87/173, 88/198 e 414, 92/188 e 202).

Com a unificação, o Estado renuncia ao direito de executar o restante das penas impostas.

Uma vez unificada a pena no início da execução penal, a decisão judicial faz coisa julgada e o condenado passa a ter o direito adquirido à pena unificada (artigo 5º, XXXVI, CF/88). A partir daí, a sua pena passa a ser a pena unificada. Se a soma das penas ultrapassava o limite estabelecido pelo artigo 75 do CP, com a unificação, a sua pena passa a ser de 40 anos. E é isso que ele deverá cumprir. A pena excedente ao limite (40 anos) deverá ser descartada, já que não será cumprida.

É possível afirmar, então, que há uma única unificação sobre cada somatório de penas.

Traçando um paralelo, a unificação das penas assemelha-se à novação, instituto do Direito Civil (artigo 360 do CC), que é a extinção de uma obrigação pela formação de outra, destinada a substituí-la. Dessa forma, a novação é o ato jurídico pelo qual se cria uma nova obrigação com o objetivo de, substituindo outra anterior, a extinguir.

A novação permite a formação de outra obrigação e a primitiva relação jurídica será considerada extinta, sendo substituída pela nova.

Similis à unificação das penas.

A unificação autoriza a extinção da pena excedente ao limite de 40 anos encontrada no somatório inicial da execução penal para substituí-la pela pena-limite, qual seja, 40 anos.

Tal qual a novação, a unificação tem um duplo efeito: ora se apresenta como força extintiva, porque faz desaparecer a antiga obrigação penal, ora como energia criadora, por criar uma nova relação obrigacional. Exerce, concomitantemente, uma dupla função: pela sua força extintiva, é ela liberatória, e como força criadora, é obrigatória.

Portanto, o principal efeito da unificação quanto à pena excedente ao limite, o que podemos chamar de pena inicial, é a sua extinção e, por conseguinte, a sua substituição pena pena-limite.

Com a novação há a extinção da obrigação anterior, desaparecendo todos os seus efeitos.

Entretanto, no Brasil, lamentavelmente, a jurisprudência, representada pela Súmula 715 do STF, continua considerando a pena— inicial para fins de concessão dos benefícios da LEP, in verbis: a pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinado pelo artigo 75 do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução.

Caso sobrevenha condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido (CF, artigo 75, §2º, do CP).

O §2º do artigo 75 do CP constitui-se uma exceção ao limite máximo de cumprimento de penas privativas de liberdade estabelecido no seu caput.

A família Delmanto, quando discorre sobre o artigo 75, §2º, do CP explica-o com um exemplo: "Condenado a penas que somavam 50 anos, o sentenciado as tem unificadas no limite de trinta anos da pena unificada. Quando já cumprira 15 anos da pena unificada, o preso mata um companheiro de cela e é condenado a mais de 20 anos. Para atender à limitação legal de 30 anos, faz-se nova unificação, somando—se o resto da pena que ainda tinha a cumprir (15 anos) com a nova pena (20 anos), mas sem permitir que o resultado ultrapasse o limite legal". (Celso Delmanto et.al.. Código Penal Comentado. 6.ed.. Rio de Janeiro:Renovar, 2002, p. 150/151.)

Os Delmantos não deixam de registrar que o sistema favorece os condenados que pratiquem novo crime logo no início da execução da pena unificada. No exemplo já dado, se o crime posterior fosse cometido logo no primeiro ano de execução da pena unificada, o condenado seria beneficiado: teria acrescido ao restante da pena unificada que tinha por cumprir (29 anos) a outra condenação (20 anos), mas sempre se obedecendo, na nova unificação, à limitação de trinta anos.

Cléber Masson explica que:

"Em caso de fuga o condenado do estabelecimento prisional, e desde que não seja praticado nenhum novo crime durante este período, o limite de 30 (trinta) anos deve ser contado a partir do início do cumprimento da pena, e não de sua eventual recaptura. Em outras palavras, a fuga não interrompe a execução da pena privativa de liberdade. Provoca apenas a suspensão. Contudo, durante o período de fuga o condenado praticar um novo delito, em relação ao qual venha a ser condenado, deverá ocorrer nova unificação das penas (restante da pena anterior acrescido do montante correspondente à nova condenação), e o limite de 30 anos terá início na data da recaptura". (MASSON, Cléber. Código Penal Comentado. 6. ed. — Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018, p. 416)

Portanto, feita a unificação das penas, o condenado deve cumprir 30 anos de pena. Se durante o cumprimento destes 30 anos, o condenado foge, pratica novo delito e é condenado, deverá ocorrer nova unificação das penas — restante da pena anterior acrescido do montante correspondente à nova condenação. No caso, o restante da pena anterior é o que restava dos 30 anos e não do total unificado de penas, acrescido do montante da nova pena.

Nesse sentido, também Fernando Capez ("Curso de Direito Penal. Parte Geral". São Paulo: Saraiva, 2017, p.563), Guilherme de Souza Nucci ("Manual de Direito Penal". São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.540), Alberto Silva Franco e outros ("Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. Parte geral". V.1. TI. 6.ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 1.218.), Ney Moura Teles ("Direito Penal parte geral". 2.ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.420) e Paulo Queiroz ("Direito Penal parte geral". 6.ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.419) e Júlio Fabrini Mirabete ("Código Penal Interpretado". São Paulo: Atlas, 2004, p.607/611).

Deve-se registrar, por fim, que o artigo 111, parágrafo único, da LEP é expressíssimo: "Sobrevindo condenação no curso da execução, somar-se-á a pena ao restante da que está sendo cumprida, para determinação do regime". E qual é a pena que está sendo cumprida? A pena unificada.

Parafraseando o professor Lênio Streck, "por que é tão difícil cumprir a letra da lei"?

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