Processo Familiar

Os tratamentos normativos da morte para as famílias em luto

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

17 de maio de 2020, 8h00

Tem sido afirmado que a morte é um tema que nos ocupa uma vida inteira, porque sempre se tenta entendê-la embora todos a saibamos inevitável. Menciona Voltaire que "a raça humana é a única que sabe que há de morrer e só o sabe pela experiência". Entre perdas e lutos, enquanto se vive, agimos, porém, como se eternos fossemo-nos, em um paradoxo inexplicável e mais ostensivo pelos soberbos.

Fato, afinal, é que somos finitos e essa finitude humana tem sido dolosamente vivenciada pelas famílias em luto, diante das vidas que têm sido delas subtraídas; prematuramente, em todos os casos, pela Covid-19. A certeza da finitude, por certo, nos fará mais solidários com o próximo, em solidariedade fundante, dentro da pandemia, de uma nova alvorada da consciência humanista da mortalidade.

Dirá Fernando Pessoa: “Morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada” (1932), enquanto Sigmund Freud, de seu sofá, escreveu “Luto e Melancolia” (1917). As famílias em luto também agonizam, pelo súbito choque humanitário jamais experenciado, com a vivência progressiva da morte que a Covid coloca nas horas de cada dia, e a dor de cada um é a nossa dor.

Allan Kellehear, em “Uma História Social do morrer” aponta: “Estamos presenciando a ascensão de formas indignas de morrer. Não são as doenças e as ciências médicas que apresentam os maiores testes morais ao morrer moderno, mas a pobreza, a velhice e a exclusão social” (1). De fato, morrer de vulnerabilidades sociais, de frágeis ancianidades ou de serviços débeis de saúde pública, criam o nascimento das mortes indignas e incômodas.

A atual pandemia, diante de seus resultados trágicos, tem reclamado nova consciência social e novos tratamentos normativos da morte, a regular circunstâncias incomuns, que minimizem a desolação dos sobreviventes.

(i) Orfandade dupla — O primeiro deles, “de lege ferenda”, diz respeito “à orfandade dupla”. Inúmeras famílias têm perdido não apenas um de seus membros, mas dois ou três, em sucessivas perdas. Designadamente, morrem os pais provedores, deixando os filhos em orfandade dupla.

Não custa lembrar a Lei nº 7.070/1982, que constituiu pensão especial previdenciária às vítimas do medicamento Cotegan-Talidomina, cujo uso provocou a deformação de fetos e o nascimento de crianças com sérias deficiências (02). 

Em primoroso estudo tratando dos danos hedônicos, Marcelo Lannes sublinha: “(…) Historicamente o Estado Brasileiro já reconheceu a sua falha na prestação de serviços e como consequência o dano causado na vida de milhares de pessoas; tendo-se em exemplo as pensões especiais pagas às vítimas da Síndrome de Talidomida (Lei no 7.070/82), aos familiares das vítimas fatais da hemodiálise de Caruaru (Lei no 9.422/96), às vítimas do acidente Césio-137 em Goiânia (Lei no 9.425/96) e aos atingidos pela hanseníase submetidos à internação e tratamento compulsórios (Lei no 11.520/07) além da pensão mensal, vitalícia e intransferível às crianças com microcefalia decorrente do vírus Zika (MP 894/2019)”. (03)

Pois bem: em objetivação legal, à luz do solidarismo social, novo paradigma ressarcitório deve contemplar situações que tais, pelo que de logo se propõe, que aos filhos menores, em orfandade dupla, possam terem garantido por lei, uma pensão especial para uma subsistência mais digna.

Por certo, a figura jurídica do tutor (art. 1.728, I, do Código Civil), será empregada com sua nomeação, seja testamentário, legitimo ou por escolha judicial (art. 1.732, Código Civil), podendo, a tanto, nesse último caso, por idoneidade da opção, avocarem-se ao “múnus” qualificado, as denominadas “mães sociais”, em suas funções primordiais de amparo aos órfãos. Estas, nos termos da lei, são as que “dedicando-se à assistência ao menor abandonado, exerça o encargo em nível social, dentro do sistema de casas-lares” (Lei nº 7.6441/87, de 18 de dezembro).

De efeito, impende urgente atualização da reportada lei, a contemplar a figura da mãe social, excepcionalmente fora do sistema dos abrigos, no objetivo de atender os órfãos da pandemia; redimensionando-se, a tanto, essa importante atividade social. Bem de ver que a Lei nº 7.644/87 aguarda há dezesseis anos a sua alteração (PL nº 2971/2004), quando ali se estende a atividade ao “pai-social”, em garantia constitucional de igualdade de gênero.

A morte tem sua vida no direito, e nessa perspectiva, v.g., no direito de família, encontramos a viúva, o pai póstumo, o órfão e o nascituro órfão, o casado noncupativo (“in extremis”), o adotado “post mortem”, o curador do morto-vivo. Na bioética (que com ele guarda intimidade), estão questões como a ortotanásia, em termos de suspensão artificial da vida, o testamento vital como diretivas antecipadas ao processo de dignidade da morte, o paciente moribundo e a autonomia da vontade e, ainda, os prontuários médicos.

Com a pandemia, novos institutos jurídicos, por certo, serão agregados ao direito de família, a exemplo da “orfandade dupla” e da “magnitude do luto familiar” (04)

(ii) A cerimônia do cadáver — Agora, novos normativos regem a morte sob os influxos da pandemia, na administração mortuária de questões imediatas, sem mais burocracias desmedidas. A morte tem pressa diante de uma ordem jurídica atrasada para as situações dramáticas de exceção.

O principal normativo, em sua essencialidade, está na Portaria Conjunta nº 02/2020, da CNJ/Min. da Saúde, de 28 de abril, que dimensiona a cerimônia do cadáver. Ficam estabelecidos procedimentos excepcionais para os sepultamentos de corpos nas hipóteses de ausência de familiares, de pessoa não identificada, de ausência de pessoas conhecidas do obituado, e em razão de exigência de saúde pública (05).

Em todos os casos, obrigam-se os serviços funerários manter identificação precisa das sepulturas, com informação de fácil cruzamento de dados com o registro de sepultamentos (art. 4º, III); certo, ainda, que os restos mortais devem ser enterrados com etiqueta de identificação à prova d’água afixada ao cadáver e a um envoltório do cadáver, que deve seguir acompanhado de suas roupas e bens portáteis que carregava quando do óbito (art. 4º, I).

A proteção do cadáver sempre teve os seus rituais, para além de uma disciplina jurídica. Bastante lembrar:

a) A reverência da rainha Artemísia II, de Cária ao corpo do marido (352 a.C.). Ela determinou construção funerária (43m. de altura) sobre a sepultura onde inumado o corpo do Rei Mausolo, do império persa (Halicarnasso, atual Bodrum, na Turquia). Segue-se, daí, a palavra mausoléu.

b) A providência do patriarca Abraão. Ele, por morte de Sara, sua mulher, adquiriu a Efron, o hitita, o seu campo para ali sepultá-la em caverna. (Gênesis 23, 1 – 20).

Prepondera o direito à sepultura (jus sepulchri), como um direito personalíssimo potestativo do morto. Esse direito se irradia ao dever jurídico conferido aos parentes, o de poder sepultá-lo, a estes constituindo um direito-dever pelos liames da afeição. São atributos, de ordem moral, inclusive. Aliás, o sepultamento sempre foi um ato religioso. Este novel normativo vem acrescentar, em momento oportuno, mais um capítulo descritivo de direito fundamental.

Nesse contexto, a reparação civil por ofensa ao juz sepulchri pode operar-se diante de diversas infringências ao direito de sepultar: (a) em face da demora da entrega do cadáver, impondo aos familiares maior sofrimento; (b) pela demora injustificada na não identificação do cadáver e c) pela errônea identificação do corpo, com entrega de outrem aos não familiares, em caixão lacrado. O mesmo sucederá quanto ao direito de permanecer sepultado, diante da eventual perda ou extravio dos despojos mortais.

(iii) As cremações — A incineração (cremação) do cadáver foi, antes de tudo, na sua remota origem, uma prática de respeito ao cadáver. Temia-se, em tempos de guerra, que corpos fossem desenterrados pelos inimigos, como o fez o general e estadista romano Lúcio Cornélio Sula (138 a.C.-78 a.C), com o cadáver de Caio Mario.

A cremação (a substituir a inumação) foi introduzida no direito português (artigo 340, Código Civil/1932), e está referida em nossa Lei dos Registros Públicos (parágrafo 2o do art. 77, introduzido pela Lei n. 6.216, de 30.06.75), quando já então, desde muito, regulada em São Paulo (Lei n. 7.017, de 19.04.1967). A esse modo, as cinzas humanas são guardadas em urnas cinerárias, então constituindo o depósito sepulcral do corpo cremado. Sepultamento atípico, sem quebra, porém, das doutrinas religiosas e da dignidade do corpo.

A cremação tornou-se uma prática permitida pela Igreja Católica, a partir de 1963, depois que difundida em muitos países católicos, quando se pretendeu ajustá-la aos acordos de fé. E a conservação das cinzas daqueles que são cremados tem sido um dos pontos mais discutidos segundo as normas da Igreja (06).

A reportada Portaria nº 02/2020-CNJ/MS traz consigo valioso tratamento expresso sobre as cremações. Os restos mortais de pessoas não identificadas ou que, identificadas, não tiverem seus corpos reclamados por familiares, não deverão ser levados à cremação, mas sepultados, o que possibilitará a exumação para eventual posterior confirmação de identidade (art. 1º, § 7º) e, de consequência, o direito do morto ao túmulo de culto familiar.

(iv) Os testamentos simplificados – A seu turno, o direito sucessório se flexibiliza no trato de mortes anunciadas. Assim, as questões testamentárias ganham relevo jurídico, assumindo modernidade tecnológica com os testamentos simplificados e/ou virtuais.

O testamento particular de emergência ou hológrafo simplificado em tempos de pandemia, segundo Flávio Tartuce, resulta da aplicação do art. 1.789 do Código Civil, considerando-se circunstância excepcional a pandemia da Covid19 (07). Lado outro, Rodrigo Pereira da Cunha defende os “vídeos testamentos”, expressando: “Nada mais autêntico do que a voz e a imagem para alguém expressar sua real e verdadeira vontade. Em tempos de coronavírus, no mínimo, o vídeo testamento reforçaria a autenticidade do testamento hológrafo” (08).

(v)  A cerimônia do adeus. As ritualizações dos velórios e dos sepultamentos sempre cerimonializaram o adeus.

Funerais proibidos em diversas partes do mundo, quando as vítimas tiveram de ser sepultadas com roupas hospitalares, velórios sumários de até dez minutos, sepultamentos reduzidos a poucos presentes e caixões lacrados, a não se permitir a colocação ali de “objetos de valor sentimental” ou uma visão última do ente querido, rompem o paradigma cerimonial das despedidas familiares nos rituais de passagem (9). Circunstâncias que devem ser reguladas, com maior sensibilização, não obstante o colapso dos serviços funerários nas grandes cidades e os problemas de contágio. Enterros sem ritos, corpos em sacos plásticos, a perda de gestão social de elaboração do luto, o estresse pós-traumático, enfermam mais a sociedade.

Noutro giro, o Provimento 93/2020 da CNJ, de 23 de março, autorizando os sepultamentos, mediante comunicações eletrônicas dos hospitais diretas ao registro civil competente, para a lavratura imediata do registro de óbito, sem maiores formalidades, com a regularização e eventual complementação do assento e retirada da respectiva certidão, em data posterior (08), constitui normativo de valioso sentido humanitário. Um normativo desburocratizante, de respeito ao luto das famílias.

(vi) Os seguros de vida — Os contratos de seguros de pessoa, onde são excluídos da cobertura os casos de epidemias e pandemias, terão em face das apólices vigentes, por liberalidade das seguradoras do ramo vida, conforme assinalou a Superintendência de Seguros Privados (Susep), as coberturas dos eventos morte decorrente do coronavírus.

Essa postura, a nosso sentir, valoriza a função social do contrato, prevista no art. 421 do Código Civil. No mais, o seguro de vida que cobre a morte, com sua validade admitida, circunstancialmente, à atual pandemia, constitui, decerto, o solidarismo social tão necessário em meio aos infortúnios que a morte acarreta às famílias em luto.

Dir-se-á, afinal, que as coisas não estão mais postas onde deveriam estar: pais precocemente póstumos, os muitos nascituros órfãos, os que nascem sem a sobrevivência de suas mães, famílias fragmentadas por perdas imensas de seus entes queridos, estão todos, estranhamente, nos pergaminhos estatísticos de realidades trágicas.

Por certo, porém, em tudo o que nos lutos da atual pandemia o amor tutela, repete-se com o argentino Jorge Luis Borges:

“só que o que está morto é nosso, só é nosso o que perdemos.”

Anotações:

(01) KELLEHEAR, Allan. Uma história social do morrer. Trad. Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: Editora Unesp, 2016, 539 p.

(02) Alterada pela Lei nº 12.190/2010, regulamentada pelo Decreto nº 7.235/2010 garantindo indenizações por danos morais e materiais, incluindo a pensão mensal.

(03) LANNES, Marcelo. Uma nova Previdência Social Indenizatória em virtude da negativa de Direitos Fundamentais. Danos Hedônicos (01.03.2020) Web: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-previdenciario/uma-nova-previdencia-social-indenizatoria-em-virtude-da-negativa-de-direitos-fundamentais-danos-hedonicos/

(04) ALVES, Jones Figueiredo. A família pede guarda provisória da lei em proteção urgencial. Web: https://www.conjur.com.br/2020-mai-03/processo-familiara-familia-guarda-provisoria-lei-protecao-urgencial

(05) Web: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/portaria-conjunta-28-abril-2020-cnj-1.pdf

(06) O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal alemão Gerhard Ludwig Muller, anunciou (10.2016) que as cinzas devem ser mantidas em um cemitério ou em um local sagrado, não sendo permitida a conservação delas no recinto do lar, a “dispersão das cinzas no ar, na terra ou na agua” ou, ainda, a sua conversão em “recordações, joias e outros objetos”. A distribuição das cinzas entre diversos parentes também é proibida pela Igreja, não se confundindo com as chamadas relíquias dos santos.

(07) TARTUCE, Flávio. O testamento particular de emergência ou hológrafo simplificado em tempos de pandemia.

Web: http://professorflaviotartuce.blogspot.com/2020/04/

(08) CUNHA, Rodrigo Pereira da. Descomplicando o Direito de Família e Sucessões em tempo de pandemia. Testamento hológrafo e o fetiche das formalidades. Web: http://www.ibdfam.org.br/artigos/1421/Descomplicando+o+Direito+de+Fam%C3%ADlia+e+Sucess%C3%B5es+em+tempo+de+pandemia.+Testamento+hol%C3%B3grafo+e+o+fetiche+das+formalidades

(09) Prorrogada a regularização do ato por até quinze dias, após a decretação do fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), estabelecida pela Portaria n. 188/GM/MS, de 04.02.2020

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    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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