Opinião

O cumprimento da pena antes do trânsito em julgado

Autor

17 de maio de 2020, 7h02

Por um lado, a presunção da inocência é uma garantia individual que alberga o suposto autor de um ilícito penal. Só  é permitido considerá-lo culpado depois do trânsito julgado. Por outro lado, as vultosas quantidades de recursos postergam o fim do processo e em razão disso parece não promover efetividade  aplicação da lei penal.

Essa problemática foi recentemente enfrentada pelo supremo. Todavia, parece também estar distante do consenso. Analisar os posicionamentos antagônicos dos senhores ministros mostra-se imperioso para uma reflexão sobre a temática. Desta forma, serão trazidos os principais argumentos dos senhores Ministros do supremo Tribunal Federal na ocasião do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44.

O Supremo tribunal Federal posicionou-se favorável à execução provisória da pena[2]. Esse entendimento vem gerando grande controvérsia jurisprudencial. Em que pese não tenha força vinculante a decisão incentivou os tribunais de todo o país a passarem a adotar idêntico posicionamento: mitigar o princípio constitucional da presunção de inocência e ignorar o disposto no artigo 283 do CPP.

A pena de prisão, dada a sua severidade, deve ser utilizada como último recurso para a punição do condenado. Todavia, extraordinariamente a prisão precautelar e a cautelar podem se mostrar necessárias desde que presentes certos pressupostos tais como: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, nos termos do artigo 312 do código de processo penal.

Mesmos aqueles que são condenados o encarceramento deve a última medida. Isto é, como bem preconiza a teoria do “Direito Penal Mínimo”, também denominada de Teoria da Intervenção Mínima, as penas alternativas ou restritivas de direito mostram-se mais eficazes em crimes tidos como de menor ofensividade. Desta forma, o cárcere somente deve ser destinado aos indivíduos de alta periculosidade e que representam uma ameaça à paz pública e à integridade física dos cidadãos.

Valiosa pesquisa empírica[3] nos autoriza a reconhecer que a Justiça, a Polícia Judiciária e o próprio Ministério Público são instituições que respondem amplamente pelo atraso do procedimento criminal e com o prolongamento por demais as prisões pré-processuais.

Outro ponto importante a ser destacado é a fragilidade das fundamentações que buscam sustentar a necessidade das prisões provisórias. Estudos mais detalhados demostram que  A grande maioria das impetrações de HC atacam a deficiência ou falta da fundamentação da prisão cautelar[4]. Desta forma, a mera referência ao art. 312 do CPP. Não tem o condão de justificar uma medida tão radical como a prisão pré processual.

Pesquisas indicam também que 41% da população carcerária brasileira é compostas por presos provisórios.[5]. Esses suportam traumas irreparáveis. O fato é que esses números podem aumentar mais ainda em razão do recente entendimento do STF que autoriza a antecipação da execução da pena antes do trânsito em julgado.

Outras pesquisas no Rio de Janeiro[6] apontam a triste  trajetória dos presos até o final do processo. Ela relata como a prisão provisória é utilizada não apenas de forma abusiva, mas também ilegal. Para mais de 50% dos casos os juízes mantiveram os réus presos durante o processo e no final essas pessoas foram colocadas em liberdade, ou foram absolvidas.

Na prática, prolongar a prisão provisória por um período demasiado é na melhor das hipóteses uma forma disfarçada de antecipar a execução da pena se o réu chegar a ser condenado ou pior ainda, uma medida irreparável de se promover a injustiça se no final do processo o réu restar absolvido.

Desta forma, é preciso promover o diálogo sobre a possibilidade de se promover a execução antecipada da pena, mas também sobre os efeitos deletérios de uma prisão provisória excessivamente prolongada.

Todavia, a partir desse momento passaremos a promover considerações apenas acerca dos votos dos ministros do supremo que entendem ser descabida a antecipação da execução da pena antes do trânsito em julgado. Assim é o entendimentos dos seguintes ministros:

Ministra Rosa Weber, Ministro Dias Toffoli , Ministro Lewandowski, Ministro Celso de Mello.[7]

Rosa Weber, não vê como não promover uma interpretação conforme a constituição e consagrar o princípio da não culpabilidade ou da presunção de inocência. Desta forma, não há como se promover a execução antecipada da pena. Neste sentido, André Estefam [8]  lembra que o ministro Celso de Melo esclareceu que : “Os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita”

Dias Toffoli por sua vez  entende que a Constituição Federal exige que haja a certeza da culpa para fim de aplicação da pena, e não só sua probabilidade. Segundo Fernando Capez[9] todos se presumem inocentes, cabe ao Estado provar sua culpa primeir e, só então, exercer seu jus puniendi.

Ministro Lewandowski também faz o apelo à norma constitucional e assevera  : “Não vejo como fazer uma interpretação contrária a esse dispositivo tão taxativo” o artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal é muito claro quando estabelece que a presunção de inocência permanece até trânsito em julgado.

Ministro Celso de Mello esclarece que  a presunção de inocência é conquista histórica dos cidadãos na luta contra a opressão do Estado. Trata-se de valor fundamental que tem estreita relação com o princípio da dignidade humana.

Quando ocorre um crime nasce para o Estado o direito de punir. O Direito Penal tem a pena como uma resposta proporcional a conduta delituosa do agente. As Teorias da pena, que são opiniões científicas sobre a pena, buscam justificá-las.

A pena se justifica, ora pela retribuição, ora pela prevenção: um estímulo negativo para que as pessoas se sintam desestimuladas a delinquir. Nesse sentido, a pena tem como uma das finalidades o firme propósitos de lembrar a lei[10]. É deixar claro que existe um regramento. Assim a pena seria uma garantia pública[11] uma maneira de garantir a lei. O direito penal faz previsão de condutas proibitivas[12] e a pena serve para trazer uma forma de proteção para a vítima.

 É inegável que a possibilidade de interposição de uma infinidade de recursos pode levar a uma sensação de impunidade. O fato é que o crime ocorreu, todavia o processo se estende quase que ad eterno e aquele que dispõe de recursos não apenas como um meio de defesa e inconformismo, mas um instrumento meramente protelatório.  

O Ministro Edson Fachin, o Ministro Roberto Barroso, o Ministro Teori Zavascki, o Ministro Luiz Fux, o Ministro Gilmar Mendes e a Ministra Cármen Lúcia. Firmam o entendimento que é possível o cumprimento antecipado da pena antes do trânsito em julgado.

O Ministro Edson Fachin entende que o início da execução criminal é coerente com a Constituição Federal quando houver condenação confirmada em segundo grau, salvo quando for conferido efeito suspensivo a eventual recurso a cortes superiores.

O Ministro Roberto Barroso entende como legítima a execução provisória da pena, entretanto após a decisão do segundo grau. Esclarece: “A Constituição Federal abriga valores contrapostos, que entram em tensão, como o direito à liberdade e a pretensão punitiva do estado”. Para ele a presunção de inocência é princípio, e não regra, e pode, nessa condição, ser ponderada com outros princípios.

O Ministro Teori Zavasck entende por sua vez que  o princípio da presunção da inocência não impede o cumprimento da pena. Ele assevera: “a dignidade defensiva dos acusados deve ser calibrada, em termos de processo, a partir das expectativas mínimas de justiça depositadas no sistema criminal do país” Ele também destaca que
se de um lado a presunção da inocência e as demais garantias individuais,  do outro há a necessidade de não se esvaziar o sentido público de justiça. Asseverou ainda:“O processo penal deve ser minimamente capaz de garantir a sua finalidade última de pacificação social”

O Ministro Luiz Fux entende que há necessidade de se dar efetividade à Justiça: “Estamos tão preocupados com o direito fundamental do acusado que nos esquecemos do direito fundamental da sociedade, que tem a prerrogativa de ver aplicada sua ordem penal”

O Ministro Gilmar Mendes  entende que a execução da pena com decisão de segundo grau não deve ser considerada como violadora do princípio da presunção de inocência. Ele esclarece que:“Há diferença entre investigado, denunciado, condenado e condenado em segundo grau”. Assim, o condenado em segundo grau pode cumprir a pena antecipadamente.

A Ministra Cármen Lúcia por sua banda entende que a prisão do condenado não tem aparência de arbítrio. Ela esclarece que “A comunidade quer uma resposta, e quer obtê-la com uma duração razoável do processo” Para ela de um lado há a presunção de inocência, mas do outro há a necessidade de preservação do sistema e de sua confiabilidade..

Quando o presente artigo foi concluído, por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal entendia que o artigo 283 do Código de Processo Penal não impederia o início da execução da pena após condenação em segunda instância.

Com a inovação interpretativa a prisão pena que por definição seria aquela em que o condenado deve suportar depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória deveria ter um novo conceito.

Na nossa singela opinião lamentável tal retrocesso. Em um Estado democrático os direitos e garantias constitucionais não gozam de imutabilidade.

Todavia, no momento da revisão do presente texto constatamos que o Supremo Tribunal Federal, por intermédio da ADC 54 voltou atrás e mudou o entendimento acerca do que configuraria uma presunção de inocência mitigada.

Concluímos que a mudança de entendimento foi uma atitude institucional acertada, posto que seja na literalidade do texto constitucional, seja na interpretação devem caminhar para um alargamento de proteção e não para uma restrição.

Por derradeiro e oportuno, é importante consignar que a prisão em flagrante delito, a prisão temporária e a prisão preventiva continuam sendo espécies de prisão cautelar ou precautelar. Nada mudaram acerca das suas necessidades e conveniências.

 


2] Habeas Corpus (HC) 126292

[3] SANTOS, Rogério Dutra (coord.). Excesso de Prisão Provisória no Brasil: um estudo empírico sobre a duração da prisão nos crimes de furto, roubo e tráfico (Bahia e Santa Catarina, 2008-2012). Série Pensando o Direito nº 54. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos, IPEA, 2015, p. 57 (Capítulo 2).

[4] Panaceia ou remédio constitucional? Habeas Corpus nos Tribunais Superiores. Série Pensando o Direito nº 55,pag.55

[5] Presos provisórios, danos permanentes. http://danospermanentes.org/index.html

[6] INSTITUTO SOU DA PAZ. Monitorando a aplicação da Lei das Cautelares e o uso da prisão provisória nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Instituto Sou da Paz, 2014 Disponível em:<http://www.soudapaz.org/upload/pdf/pesquisa_lei_das_cautelares_comparativo_sp_e_rj.pdf>.

[7] Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44.

[8] Estefam, André

Direito penal esquematizado®: parte geral / André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves; coordenador Pedro Lenza. 5. ed. São Paulo:

Saraiva, 2016. (Coleção esquematizado®)

[9] Capez, Fernando Direito penal simplificado: parte geral / Fernando Capez – 15. ed. — SãoPaulo : Saraiva, 2012

[10] GROS, Frédéric. Os quatro centros de sentido da pena. Capítulo 1. Punir é recordar a lei. In: GARAPON, Antoine. GROS, Frédéric. PECH, Thierry. Punir em democracia. E a justiça será. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.pág. 33

[11] GROS, Frédéric. Os quatro centros de sentido da pena. Capítulo 2. Punir é defender a lei. In: GARAPON, Antoine. GROS, Frédéric. PECH, Thierry. Punir em democracia. E a justiça será. Lisboa: Instituto Piaget, 2002 pág.22

[12] GARAPON, Antoine. A justiça reconstrutiva. Capítulo 1. Uma justiça para a vítima. In: GARAPON, Antoine. GROS, Frédéric. PECH, Thierry. Punir em democracia. E a justiça será. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!