Direito Civil Atual

MP 966: para "livrar a cara" dos agentes públicos?

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17 de maio de 2020, 14h12

ConJur
Foi editada a Medida Provisória 966, que “dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19”. Trata-se de mais uma nova norma que integra a longa série de medidas editadas para compor um regime jurídico especial e específico para regular situações jurídicas no curso da pandemia de Covid-19.

Muito mistério e polêmica ronda a edição da MP. Teria sido editada para “livrar a cara” dos agentes públicos? Para conferir espécie de “salvo conduto” em relação ao uso de terapias com aplicação de cloroquina? Ou se trata de medida normativa legítima que pode conferir mais segurança jurídica para os responsáveis por condutas públicas em regime de urgência?

À toda vista, não parece se tratar de medida normativa destinada a “livrar a cara do servidor público”, mas a prevenir a responsabilização indevida dos agentes envolvidos nas ações de enfrentamento da situação de emergência de saúde pública de importância internacional gerada pela pandemia de Covid-19.

A medida provisória praticamente reproduz normas contidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), com a redação dada pela Lei 13.655/18, para limitar a responsabilidade dos agentes públicos aos atos praticados com dolo ou erro grosseiro. Assim, a norma torna específicas para a situações que regula, certas regras que já existiam na Lindb.

A redundância, contudo, não é ruim. A especificidade da norma, de aplicação específica para situações envolvendo atos relacionados com a pandemia, pode contribuir muito para dar mais segurança jurídica para os agentes envolvidos nos processos relacionados a ela. Afinal, é esperado que os agentes públicos devam adotar todas as condutas e providências para proteção de valores jurídicos constitucionalmente tutelados, como a vida humana, a saúde e a proteção dos vulneráveis (incluída nesta noção as pequenas empresas). Estes agentes não devem limitar ou restringir a sua atuação por temor de responsabilização futura, e, em homenagem ao valor supremo da Justiça, não devem ser responsabilizados se não tiverem agido com dolo ou com culpa.

Embora redundante em parte, a MP traz uma inovação significativa em relação ao disposto na Lei 13.655/18: a previsão expressa de que o agente público somente pode ser responsabilizado nas “esferas civil e administrativa” se agir ou se omitir com dolo ou erro grosseiro.

Atente-se para que o artigo 28 da Lindb preceitua que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Perceba-se que esta norma da Lindb não faz referência à natureza da responsabilidade por dolo ou erro grosseiro. A omissão acerca da natureza da responsabilidade albergada na lei tem ensejado múltiplas interpretações sobre seu alcance e seus limites.

Em outros termos, há quem defenda que o limite da responsabilidade pessoal do agente público aos casos de dolo ou erro grosseiro previsto na Lindb somente se aplica para a responsabilidade de cunho sancionatório, não alcançando, portanto, a responsabilidade civil (reparar o dano).

Nesta linha, o agente público pode deixar sofrer sanção, por não ter sido provado o dolo ou o erro grosseiro, mas pode ser condenado a reparar os danos causados com a conduta praticada (responsabilidade civil).

Este é, por exemplo, o entendimento expressado no Acórdão 11.762/18 do Tribunal de Contas da União, pelo qual o agente público, por não ter sido provada conduta dolosa ou em erro grosseiro “deve ser condenado em débito, mas diante da ausência de culpa grave, deve ser dispensado de aplicação de multa”. O TCU neste caso, afastou a responsabilidade de cunho sancionatório, e entendeu presente a responsabilidade civil (reparar os danos).

A MP torna indubitável que os agentes públicos somente podem ser condenados à reparação de danos derivados de condutas comissivas ou omissivas, se tiverem agido com dolo ou erro grosseiro. Assim, se não houver prova de dolo ou de erro grosseiro, o agente público não poderá ser responsabilizado e condenado a reparar danos ou ressarcir prejuízos causados para a Administração Pública – além de não poder receber qualquer sanção.

À evidência, o que faz a MP é afastar a possibilidade de responsabilização objetiva dos agentes públicos – o que ademais nem seria necessário se fosse devida e suficientemente observado o princípio da culpabilidade, de índole constitucional (a este propósito, confira-se a previsão contida no artigo 1º, parágrafo 2º, da MP).

A MP afasta qualquer dúvida: os órgãos de controle interno ou externo estão proibidos de responsabilizar o agente público se não houver prova de dolo ou de erro grosseiro e, portanto, proibidos de aplicar a responsabilidade objetiva quando da apuração da responsabilidade.

Atente-se para que há um conceito normativo de erro grosseiro no artigo 2º da MP: “O erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”. Inegável que se trata de conceito jurídico indeterminado, mas de determinação notadamente possível em razão de situação fática efetiva e concreta.

No plano da hermenêutica jurídica não basta para caracterizar o erro grosseiro que a conduta tenha sido realizada com negligência, com imprudência ou com imperícia, típicos elementos da culpa em sentido estrito. Quer parecer então, que, a partir da edição da MP em questão, a conduta que pode ensejar responsabilização pessoal do agente público no enfrentamento da Covid-19 é apenas aquela de maior gravidade, que supere a simples falta de diligência, de pequena imprudência ou de imperícia que não seja grave.

A conduta descuidada, equivocada, incorreta, apressada, desidiosa, ineficiente, se não for dolosa, somente ensejará responsabilidade pessoal se for grave de modo a caracterizar o erro grosseiro.

Por contraditório que possa parecer, ao fazer referência a que somente o erro grosseiro – verdadeira dimensão qualificada de culpa – pode redundar responsabilização pessoal do agente, fica excluída a possibilidade jurídica de responsabilização pessoal por erro. Aquele que erra, na estrita dimensão do significado jurídico do erro, não pode mais ser responsabilizado pessoalmente. Atua em erro aquele que manifesta sua vontade a partir de uma percepção equivocada ou falsa de uma determinada realidade fática ou jurídica. Nos termos de Fabio Ulhoa “o conceito jurídico de erro é o da decisão tomada em função de falsa representação da realidade”.[1]

A identificação de erro grosseiro passa necessariamente pela análise das condições pessoais e materiais que tinha o agente quando da prática do ato. Aspectos subjetivos e aspectos objetivos da conduta em exame devem ser cuidadosamente examinados para a correta apuração da responsabilidade por erro grosseiro.

No plano subjetivo, demanda-se investigar o grau de capacitação que era exigível do agente, bem como suas aptidões e capacidades pessoais, de ordem técnica ou jurídica. É preciso que sejam exigíveis do agente público certas qualificações e capacitações técnicas ou jurídicas, que se não forem adquiridas e aplicadas podem resultar em condutas viciadas. Em sentido contrário, não se pode exigir certa conduta do agente público que exija capacitação superior àquela legalmente exigida para o exercício das atribuições de seu cargo ou função pública.

No plano objetivo, é preciso investigar acerca da suficiência dos recursos materiais e financeiros que o agente detinha para a prática da conduta reputada irregular. Caso o órgão ou entidade pública não tenha ofertado os recursos materiais, humanos ou financeiros suficientes – sob o prisma da razoabilidade e da proporcionalidade – para a prática da conduta, o agente que a produz de modo irregular não atua com erro grosseiro.

Tem-se que somente haverá erro grosseiro se o erro – rectius, culpa – for inescusável, vale dizer, aquele que “seria suscetível de ser evitado se o agente houvesse precedido com cautela e prudência razoáveis em um indivíduo de inteligência e conhecimento normais, relativamente ao objeto do negócio jurídico”[2] ou “quando a falsa percepção da realidade é produto da falta de empenho da pessoa em se informar adequadamente antes de praticar o negócio jurídico”. [3] Em outro sentido se o erro é escusável, não pode ser grosseiro, pois “é escusável o erro que não poderia ser percebido por pessoa de diligência normal”.

Assim, sob tais argumentos, se defende que o sistema jurídico administrativo fica adjetivado pelas normas contidas na MP 966, e estruturado para coibir a responsabilização dos agentes públicos que, de boa-fé, na percepção de que buscam satisfazer o interesse público, venham a adotar condutas posteriormente reprovadas pelos órgãos de controle interno ou externo.

Em sentido reverso, nenhuma norma contida na MP evita a responsabilização daquele que, atuando com dolo ou erro grosseiro venha a produzir condutas reprovadas ou reprováveis sob o prisma da responsabilidade, seja de que natureza for.

A MP não se presta a evitar que o agente público desonesto, que atua de má-fé, com grave desídia e fora dos limites da legalidade e dos parâmetros constitucionais seja responsabilizado pessoalmente quando houver justo motivo, inclusive no plano da reparação civil.

De outra sorte, o que parece ser preocupação, a mera invocação, em caráter geral e abstrato, das atenuantes previstas no artigo 3º da MP, como a de que uma certa conduta foi praticada sob circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; ou, em contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da Covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas – ou qualquer outra das circunstâncias normativas estabelecidas para a apuração da ocorrência de erro grosseiro – não produz o efeito de afastar imediatamente a responsabilidade.

Em qualquer hipótese, como já ocorria antes da edição da MP 966, será preciso análise de caso concreto, para a comprovação efetiva de que a conduta de agente público se subsume à noção legal de erro grosseiro. O contraste concreto entre as disposições normativas e o real e efetivo motivo do ato, e de sua motivação, é que poderão levar a qualquer conclusão acerca da existência ou não de responsabilidade pessoal do agente.

Neste sentido, não parece correto atribuir à MP a condição de “salvo conduto”.

Por fim, parece claro que a edição da MP não torna sem efeito ou reduz a eficácia das disposições contidas na Lei 13.655/18. A edição da MP não implica revogação de nenhuma das normas da Lindb, que continuam aplicáveis para situações jurídicas não albergadas pela nova norma. Em qualquer hipótese, no contexto da pandemia de Covid-19 ou fora dele, os agentes públicos somente respondem pessoalmente por conduta comissiva ou omissiva maculada por dolo ou erro grosseiro, sendo certo que é constitucionalmente proibida a responsabilização objetiva.

Encerrando, no plano da prevenção da responsabilidade, e do afastamento da alegação de erro grosseiro, é bem importante salientar a importância da motivação de todos os atos praticados pelos agentes públicos.

Somente no plano concreto, após o contraste e análise da motivação dos atos praticados será possível concluir acerca de responsabilidade pessoal do agente púbico nos termos da MP 966.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] Curso de Direito Civil. Vol. 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 328.

[2] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Op. Cit. P. 522.

[3] Ulhoa, Fabio. Ob. Cit. P. 330.

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