Segunda Leitura

Coronavírus, partilha constitucional e bom senso

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

17 de maio de 2020, 10h32

Spacca" data-GUID="vladimir_passos_freitas1.jpeg">O coronavírus chegou e trouxe ao Brasil e ao mundo uma experiência nunca antes passada. Ao contrário dos surtos anteriores, cuja gravidade ninguém discute, ele se transmite a uma velocidade incrível e, no caminho, vai deixando um rastro de mortes assustador.

Em alguns países, como o Equador, a situação aproxima-se do caos. Em Guaiaquil, os mortos são enterrados em caixas de papelão, já que não há caixões disponíveis.[i] São muitos os reflexos desta situação, desde o sofrimento enorme para a população até a previsível poluição das águas subterrâneas, com consequências que podem vir a ser graves no âmbito da saúde pública.

Ninguém tinha esta preocupação em mente, exceto Bill Gates que, em vídeo gravado em 2015 para o TED Talks, previu tal possibilidade e, enfaticamente, reclamou medidas preventivas.[ii] Evidentemente, ninguém lhe deu mais que 18 minutos de atenção, tempo de duração da palestra.

No Brasil a crise avança e alguns estados entram em sinal de alerta. Por exemplo, Pernambuco, onde em 17 de abril “95% das vagas nas UTIs dos hospitais públicos estavam ocupadas”.[iii] Situado em má posição no ranking mundial (6º lugar)[iv], nosso país amarga 14.817 mortos.

A União Federal, estados e municípios disputam a competência administrativa para impedir maior disseminação e para não prejudicar a economia. Os fatos deslocam-se da saúde para a arena política, onde as soluções não costumam mirar no bem comum, mas sim nas próximas eleições.

Qualquer obtuso percebe que saúde e a economia são importantes, sendo que a primeira é mais visível (as notícias de desgraças se sucedem na TV) e, a segunda, mais dissimulada (as consequências piores começarão a ser sentidas, de fato três meses).

Postas as duas na balança, o peso maior recairá na saúde. Afinal, a vida é o bem maior e, não por acaso, o homicídio é o primeiro crime tratado na parte especial do Código Penal (artigo 121) e o furto vem bem depois (artigo 155).

Portanto, a atenção à saúde reclama os mais urgentes e diretos socorros. Mas isto não deve levar ao abandono da economia. Não só porque do seu funcionamento dependem milhões de brasileiros, mas também pela manutenção dos serviços públicos. Pesquisa do IBGE revela que em março passado bares, hotéis, transportes tiveram a mais acentuada queda de sua história.[v] Ora, sem comércio não tem tributos e sem estes não têm serviços públicos.

Fácil é ver que estados como RJ, RS e MG, que atravessam séria crise financeira, terão enormes dificuldades para cuidar de seus infectados. E assim, em um ciclo cruel, o desastre econômico reverterá contra a própria saúde.[vi]

Qual a melhor forma de enfrentar o problema? Com certeza, agindo com serenidade, prestigiando-se a área científica e pondo atenção nas iniciativas de países onde o problema está sendo controlado (e.g.,China, Alemanha e França).

Mas estas medidas não bastam. É preciso atentar para as peculiaridades de nosso país, sua extensão territorial (8.516.000 quilômetros quadrados) e as suas conhecidas diferenças econômicas, climáticas, sociais e culturais. Por isso mesmo, a forma de governo é a federal, assegurando-se autonomia aos estados membros, tal qual Estados Unidos e o Canadá.

Por óbvio, SC pouco tem em comum com o PA. Mas as diferenças não se medem pela distância. SP tinha, em 2019, 45.919.049 habitantes, enquanto seu vizinho, MS, contava com apenas 2.778.986.[vii] Em termos de coronavírus, pesquisa de 31 de março registrava que em São Paulo tinham ocorrido 58.378 mortes e, em Mato Grosso do Sul, apenas 479.[viii] No combate à pandemia, devem ambos receber o mesmo tratamento?

No sistema federativo brasileiro as competências para legislar e fiscalizar ora são privativas, ora concorrentes. Na competência concorrente cabe à União estabelecer normais gerais e aos estados exercer a competência legislativa para atender às suas peculiaridades. Paulo Luiz Neto Lobo ensina que as normas gerais “estão contidas pela finalidade de coordenação e uniformização”.[ix]

No caso em tela, o Plenário do STF, no dia 14 de abril passado, decidiu que “as medidas adotadas pelo governo federal na Medida Provisória 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios”.[x] Assim sendo, as competências são compartilhadas e cada estado membro pode legislar, adaptando às suas peculiaridades a Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas no enfrentamento do coronavírus.

E, da mesma forma, os municípios, pois gozam de autonomia político-administrativa, sendo-lhes permitido legislar em assuntos de interesse local, conforme artigos 18 e 30, inciso I, da Constituição da República.

Ainda que tudo isto possa originar dúvidas sobre o alcance da competência de uma ou de outra pessoa jurídica, que sentido teria dar solução única ao problema do coronavírus a estados com situações tão diferentes como SP e MS?

No entanto, em meio a esta realidade, sobreveio o Decreto federal 344, de 8 deste mês, autorizando a abertura de salões de beleza, barbearias, academias de esporte e outras atividades. Fácil é ver que ele colide com diversas leis estaduais e municipais que, baseadas na realidade local, dispõem de forma radicalmente oposta. Por exemplo, segundo notícia do dia 12 passado, “barbearias, salões de beleza e academias de Niterói e São Gonçalo também vão continuar sem obter autorização para funcionar durante a pandemia do coronavírus”.[xi]

O conflito de normas, em caso de autuações administrativas, certamente será solucionado no Judiciário e o resultado é previsível. Estados e municípios verão prevalecer suas leis, respaldados pelo precedente do STF. No entanto, muito tempo, dinheiro e energia serão despendidos em razão da diversidade de tratamento à matéria.

Certamente, existirão casos de autuações administrativas, principalmente as municipais, sendo anuladas no Poder Judiciário. Na preocupação de diminuir os casos de contaminação, poderão extrapolar os limites estabelecidos pela Constituição. Para estes excessos, o juiz de Direito da comarca, que é quem melhor conhece a realidade local, dará a solução.

No mais, custa a crer que, em meio a situação de tamanha gravidade, com milhares de brasileiros sendo levados a estado de miserabilidade, “o procurador-geral de Justiça de Mato Grosso, José Antônio Borges Pereira, decidiu criar uma “ajuda de custo” para procuradores, promotores e servidores desembolsarem gastos com a própria saúde”.[xii]

Outros se aproveitam para alcançar ganhos ilícitos. Segundo a Agência Brasil, o ex-deputado estadual Paulo Melo foi preso em operação deflagrada dia 14 pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal para apurar fraudes em contratos de terceirização de mão de obra nos últimos 10 anos no estado do Rio, inclusive durante a pandemia do novo coronavírus.[xiii]

De tudo o que foi comentado, fácil é ver que estamos diante de uma situação grave e que tende a tornar-se pior. Cabe ao Ministério da Saúde o importante papel de atuar como o maestro, o coordenador, articulando iniciativas, dando apoio aos casos extremos (v.g., Amazonas) e intermediando interesses entre estados (v.g., uns têm UTIs sobrando, outros as têm esgotadas).

Quanto aos estados, que muitas vezes são maiores que muitos países (v.g., Bahia é maior do que a Espanha), devem ter reconhecida a autonomia para enfrentar os problemas de acordo com as suas realidades. E aos prefeitos municipais cabe agir com os olhos postos na situação local, restringindo a liberação dos serviços e do comércio quando necessário e permitindo-os quando possível a conciliação, focando no interesse público e não nos apoiadores de suas campanhas.

Os Tribunais de Justiça têm uma grande responsabilidade em tudo isto. Não é o momento de se concederem vantagens pessoais como fez o TJ de Goiás, atribuindo aos seus magistrados R$ 1.280,00 a título de auxílio-saúde,[xiv] mas sim de orientar, em jurisprudência segura e firme, o que pode e o que não pode ser feito no âmbito da unidade federativa (artigo 926 do CPC). Neste momento, nada será pior do que uma jurisprudência vacilante.

Em última análise, é preciso mais bom senso (algo que tem se tornado raro) e menos voluntarismo.

[i] https://epoca.globo.com/mundo/com-falta-de-caixoes-vitimas-do-coronavirus-serao-enterradas-em-caixas-de-papelao-no-equador-24353630 . Acesso em 15/5/2020.

[ii] https://www.ted.com/talks/bill_gates_the_next_outbreak_we_re_not_ready?language=pt-br. Acesso em 15/5/2020.

[iii] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/04/17/com-ocupacao-de-95percent-nas-utis-publicas-governo-de-pe-contrata-leitos-em-hospitais-particulares.ghtml. Acesso em 15/5/2020.

[iv] O Estado de São Paulo, País supera os 200 mil casos e é o 6º do mundo, 15/5/2020, A15.

[v] O Estado de São Paulo. Com pandemia serviços tem queda de 6,9% em março, 13/5/2020, B3.

[vi] STF, ADI 6.341. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-24/marco-aurelio-reafirma-competencia-excepcional-anvisa. Acesso em 15/5/2020.

[vii] https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2019/08/28/ms-ganha-em-um-ano-309-mil-novos-moradores-o-equivalente-a-uma-cidade-como-caarapo-aponta-ibge.ghtml. Acesso em 16/5/2020.

[viii] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/veja-o-numero-de-casos-e-mortes-decorrentes-do-coronavirus-em-cada-estado-brasileiro.shtml. Acesso em 16/5/2020.

[ix] LOBO, Paulo Luiz Neto. Competência legislativa concorrente dos Estados-membros na Constituição de 1988. Revista de Informação Legislativa, vol. 101, p. 98

[x] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441447. Acesso em 16/5/2020.

[xi] https://oglobo.globo.com/rio/niteroi-sao-goncalo-nao-aderem-decreto-de-bolsonaro-academias-barbearias-saloes-de-beleza-seguem-fechados-24422799. Acesso em 16/5/2020.

[xii] https://exame.abril.com.br/brasil/procuradores-de-mato-grosso-recebem-bonus-covid-19-de-r-1-mil/

[xiii] https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2020-05/ex-deputado-e-preso-em-operacao-contra-fraudes-em-contratos-no-rio. Acesso em 16/5/2020.

[xiv] https://www.opopular.com.br/noticias/politica/tribunal-de-justi%C3%A7a-de-goi%C3%A1s-vai-dar-r-1-280-de-aux%C3%ADlio-sa%C3%BAde-a-ju%C3%ADzes-e-a-desembargadores-1.2052884. Acesso em 16/5/2020.

Autores

  • Brave

    é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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