Opinião

Duração do processo põe a vida dos presos em jogo na Covid-19

Autores

  • João Marcos Braga de Melo

    é advogado criminalista em Brasília pós-graduado em Direito Penal Econômico e em Direito Penal pelo ICCrim em parceria com a Universidade de Coimbra pós-graduado em Direito Penal e em Processo Penal pelo IDP mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e ex-professor voluntário da instituição.

  • Jhonas de Sousa Santos

    é graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

16 de maio de 2020, 10h30

“Assim, o que nos permite analisar de forma integrada o regime punitivo dos delitos e o regime do trabalho é a relação do tempo de vida com o poder político”. (Foucault, Michel. A sociedade punitiva: curso no collège de France. P. 66/67)

Controlar corpos e punir por meio do tempo:essa é a essência da prisão moderna. Mas não só da prisão, o processo e o tempo são elementos que também estão em íntima correlação,“o processo não escapa do tempo, pois ele está arraigado na sua própria concepção, enquanto concatenção de atos que se desenvolvem, duram e são realizados numa determinada temporalidade” (LOPES, 2004, p. 67).

No processo penal, o prolongamento do procedimento interfere diretamente na esfera dos direitos fundamentais do indivíduo, gerando efeitos, às vezes, até mais graves do que a punição que se atribui ao final do processo. Como bem ressalta Pastor, “o simples início e, muito mais, o desenvolvimento do processo penal causa sofrimento: o sofrimento do inocente é, desgraçadamente, o custo insuprível do processo penal”.  (PASTOR, 2004, p. 91)

Foi no século 20, a partir da ratificação de vários tratados internacionais de direitos humanos, que o problema da demora processual foi objeto de regulação positiva. A fim de estabelecer limites precisos dos prazos de duração dos atos processuais, vários desses diplomas normativos fixaram o que se convencionou chamar de “prazo razoável”.

Dentre os vários tratados que recepcionaram e regularam o referido conceito, destaca-se a Convenção Interamericana de Direito Humanos — da qual o Brasil é signatário — que, em seus arts. 8.1 e 7.1, traz previsão expressa sobre a garantia fundamental da duração razoável do processo.

No direito brasileiro, foi, apenas, com a edição da Emenda Constitucional n° 45/04 que o direito ao prazo razoável passou a ter previsão expressa dentro do rol de direitos do art. 5° da Constituição Federal.

No entanto, como se sabe, há vários empecilhos que impediram e impedem a real efetivação do instituto do prazo razoável no sistema processual brasileiro. O congestionamento e a morosidade processual são problemas que assolam o Poder Judiciário brasileiro, especialmente o sistema de justiça criminal. Na justiça estadual, segundo dados do CNJ, um processo localizado no 1° grau de jurisdição leva, desde a data de ingresso, em média 3 anos e 7 meses para receber sentença (CNJ, 2019, p. 153). Este problema ocorre de maneira mais grave na justiça federal, onde um processo localizado também no 1° grau de jurisdição leva, desde a data de ingresso, em média 4 anos e 6 meses para receber sentença. (CNJ, 2019, p. 153).

Inclusive, tais problemas foram reconhecidos em âmbito internacional. Em julgamento histórico, a Corte Interamericana de Direito Humanos condenou o Estado Brasileiro pela violação dos direitos fundamentais à vida, à integridade pessoal, e às garantias judiciais mínimas, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes. Na ocasião, a Corte entendeu que houve uma injustificada demora na prestação da tutela penal e cível. Julgou-se que o prazo de desenvolvimento do procedimento penal não foi razoável, isso porque, após mais de seis anos, ainda não havia sido proferida sentença de primeira instância. Tal circunstância, no entendimento da Corte, violou o princípio de prazo razoável consagrado na Convenção Americana, bem como constituiu grave violação ao devido processo legal. (CIDH, 2006, p. 67)

Na atual crise ocasionada pelo novo coronavírus, a ausência de celeridade e efetividade do sistema de justiça criminal assumem feições ainda mais graves, poiso que está em jogo, neste momento, é o direito individual mais importante: a preservação da vida. Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, o sistema carcerário brasileiro é caracterizado pela superlotação, insalubridade, insuficiência de itens de higiene básicos e de atendimentos de saúde.No julgamento da ADPF n° 347, a Corte reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema carcerário brasileiro. Ressaltou o Ministro Relator Marco Aurélio que:

“A maior parte desses detentos está sujeita às seguintes condições: superlotação dos presídios, torturas, homicídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida imprestável, falta de água potável, de produtos higiênicos básicos, de acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho, bem como amplo domínio dos cárceres por organizações criminosas, insuficiência do controle quanto ao cumprimento das penas, discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual.” (STF, 2015, p. 23, )

Vê-se, portanto, que o próprio Judiciário reconheceu que os presídios brasileiros não são capazes de garantir medidas mínimas de proteção à saúde. Segundo levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen, 2017, p.53), 62% dos estabelecimentos penitenciários possuem modulo de saúde, o que significa dizer que, levando em conta o número total de detentos (704.245), 234.292 detentos estão segregados em unidades que não contam com módulo saúde.

Cita-se aqui o que ocorre no sistema prisional do Distrito Federal, que, pela ausência de espaço e condições salubres mínimas, contabiliza 444 casos confirmados de infecção pelo vírus Covid-19 (GDF, 2020, n.p) – número que representa 72% dos casos registrados nos sistemas prisionais de todo o país. (Depen, 2020, online)

Neste contexto, a dilação indevida no processo penal com réus presos, além de violar a garantia fundamental da duração razoável do processo, constitui grave ataque à saúde e a vida das pessoas segregadas.

Algumas medidas foram tomadas pelo Conselho Nacional de Justiça, com o intuito de garantir o funcionamento das atividades jurisdicionais no período de pandemia, bem como de preservar a saúde dos jurisdicionados.Dentre elas, destacam-se: a) instituição do regime de plantão extraordinário no Poder Judiciário (Resolução n° 313/2020; b) suspensão dos prazos processuais (Resolução n° 313/2020) e c) imposição de revisão de medidas socioeducativas de liberdade e semiliberdade (Recomendação n° 62/2020).

As recomendações do CNJ tiveram rápida adesão dos Tribunais nacionais, que passaram a adotar medidas alternativas para garantir a manutenção das atividades jurisdicionais nos tempos de pandemia, tais como: a adoção do regime de home office, a imposição de quarentena a juízes e servidores, a realização de sessões virtuais e proibições de visitas aos prédios da Justiça.

No entanto, é de se questionar se o emprego de tais medidas é capaz de assegurar uma prestação jurisdicional que se guie pela promoção da efetividade e celeridade processual, sem abdicar da manutenção das garantias processuais consagradas em nossa legislação e na Constituição Federal.

Em um processo penal adequado ao Estado Democrático de Direito, a busca de celeridade não tem como implicação a violação de outras garantias processuais de natureza constitucional. O direito a um julgamento no prazo razoável “não pode ser entendido, simplesmente, como o direito a um processo que busque celeridade processual a qualquer custo” (LOPES; BADARÓ, p. 44).

As atuais circunstâncias de calamidade exigem, portanto, o equilíbrio entre dois extremos: “de um lado, o processo demasiadamente expedito, em que se atropelam os direitos fundamentais; de outro, aquele que se arrasta, equiparando-se à negação da (tutela da) justiça e agravando todo o conjunto de penas processuais ínsitas ao processo penal”.(LOPES, 2004, p. 68)

O prolongamento indevido do processo, especialmente no atual contexto, pode ter consequências ainda mais nefastas. Odelongar do procedimento pode implicar, sem nenhuma dúvida, na morte de muitos presos, especialmente daqueles mais vulneráveis ao novo vírus e que estão encarcerados em estabelecimentos prisionais superlotados e insalubres.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!