Direito Civil Atual

Medida Provisória 966 e (in)segurança jurídica

Autor

  • Guilherme Brenner Lucchesi

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) doutor em Direito pela UFPR e master of laws pela Cornell Law School presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico secretário-geral do Instituto dos Advogados do Paraná e sócio-fundador do escritório Lucchesi Advocacia.

16 de maio de 2020, 12h24

ConJur
O momento de pandemia da Covid-19 tem criado inúmeras dificuldades para todas as pessoas. Para os tomadores de decisão, públicos e privados, os desafios são ainda maiores. Na administração pública, há uma responsabilidade especial do gestor público, nos âmbitos federal, estadual e municipal, a quem compete dar as diretrizes de saúde pública à sociedade nesse momento sem precedentes. São muitas as dúvidas que surgem, principalmente quanto ao dilema de manter os estabelecimentos abertos ou fechados.

Nesse contexto preocupante e caótico – marcado por posicionamentos diametralmente opostos e conflitantes por parte de órgãos governamentais diversos —, as linhas que dividem o “certo” e o “errado” são tênues e ondulantes. Ainda mais quando, a cada novo dia, novos estudos quanto ao vírus e sua transmissão impõem a revisão estratégica de que se deve fazer.

Devemos considerar a sequência vertiginosa de leis e atos administrativos que tratam de medidas aplicáveis a setores públicos, estabelecimentos comerciais e à população em geral. Para evitar a aglomeração social, criamos verdadeiro aglomerado de leis. A dificuldade em compatibilizar todo esse novo regime jurídico pandêmico afeta todos, inclusive os agentes públicos responsáveis por regular o controle da transmissão em âmbito nacional, regional e local.

No âmbito federal, fora editada como primeira resposta à Covid-19 a Lei 13.979/2020 — já alterada e complementada por diversas medidas provisórias — que prevê (dentre várias outras providências) a possibilidade de implementação de medidas como isolamento e quarentena. Posteriormente, foi estabelecida a Portaria Interministerial 5/2020, prevendo que a inobservância de eventual determinação de quarentena configura crime (artigo 268 do Código Penal). Mas as normas gerais nacionais em matéria de saúde pública não esgotam as disposições normativas[1]. No âmbito regional, cada estado detém competência legislativa para determinar suas próprias regras, e o mesmo acontece em âmbito local com a legislação municipal.

Apenas para ilustrar, tomando-se por exemplo o estado do Paraná, onde lecionamos e militamos na advocacia, já foram editadas diversas normas, criando um regime jurídico em constante mutação, com diversas leis, decretos, resoluções e portarias[2] que ora restringem ora afrouxam as medidas de distanciamento social.

Quem, sem investir considerável tempo e estudo atento e constante, com auxílio jurídico-técnico, poderá dizer que conhece seguramente o teor das regras aplicáveis aos particulares e à iniciativa privada no combate à pandemia da Covid-19? Sequer os governos federal, estaduais e municipais estão em perfeita sintonia com relação às medidas que adotam dentro de suas esferas de competência. Exemplo disto foi o Decreto 10.344/2020, em que a Presidência da República inclui dentre os serviços considerados essenciais[3] as academias, barbearias e salões de beleza. Apesar de se tratar de norma federal, a disposição não foi seguida por muitos estados. Parece desarrazoado exigir que o particular, em um dado momento, tenha domínio completo sobre esse apanhado vertiginoso de leis, decretos e resoluções.

O cenário caótico de posicionamentos conflitantes por esferas diversas do Poder Público não traz segurança ao particular. Se, de um lado, a política do governo federal aparenta ser de maior flexibilidade nas medidas de isolamento e contenção, de outro, muitos estados e municípios adotam medidas mais rigorosas. Quando há publicidade de medidas em um ou outro sentido na mídia e nas redes, sempre há a dúvida de que fazer, principalmente do lado do particular.

As medidas restritivas costumam vir acompanhadas de disposição estabelecendo que o descumprimento das normas de controle da pandemia acarretará responsabilidade penal, nos termos da Portaria Interministerial 5, para o fim de configurar o crime de infração de medida sanitária preventiva[4]. Há claro uso do Direito Penal como “incentivo” para que as determinações da saúde pública regional ou local sejam cumpridas.

Sob o ponto de vista dogmático, não pode haver crime pelo particular ou gestor público sem que lhe seja imputada a infração a alguma determinação poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, disposta em lei.[5] No caso, a legislação federal nada impôs quanto à contenção da Covid-19, apenas estabeleceu regras gerais.

Apesar disto, parece haver uma preocupação com a responsabilidade de gestores públicos, principalmente quando adotarem medidas de maior flexibilidade quanto ao distanciamento/isolamento social. Poderá haver responsabilidade civil, administrativa ou até criminal caso uma pessoa venha a adoecer ou morrer como produto das decisões tomadas?

Nesse sentido, a Medida Provisória 966/2020 parece buscar limitar ao máximo a responsabilização de agentes públicos, restringindo as hipóteses de responsabilidade civil ou administrativa aos casos de dolo ou culpa grave. É certo que no direito penal não cabe responsabilidade objetiva. Seria possível imputar a prática culposa[6] dos crimes de lesão corporal (artigo 129, parágrafo 6º, do Código Penal) ou homicídio (artigo 121, parágrafo 3º, do Código Penal) caso houvesse demonstração de nexo de causalidade[7] entre a ação ou omissão do gestor público e o contágio.

Ainda que a MP 966 se aplique somente às esferas civil e administrativa — não poderia, por vedação constitucional expressa (artigo 62, parágrafo 1º, I, “b”, da Constituição) dispor sobre matéria penal —, há uma importante chave interpretativa para o direito penal. O objetivo parece ser reduzir a responsabilidade dos gestores públicos nas esferas civil e administrativa. Tratando-se o sistema penal de ultima ratio para a proteção de bens jurídicos[8], seria um contrassenso permitir que a responsabilidade fosse limitada à demonstração de culpa grave (“erro grosseiro” – artigo 3º da MP 966) apenas para instâncias de controle social de menor gravidade, permitindo ampla responsabilização culposa no direito penal. O Direito Penal admite analogia in bonam partem que aproveitaria ao imputado.

O que preocupa na MP 966, contudo, não é a sua má técnica jurídica[9]. Ainda que concordemos com a necessidade de conter o controle social exercido pela repressão penal e punição, a medida apenas contribui para o pandemônio regulatório, pois estabelece um princípio de irresponsabilidade jurídica. A mensagem que pode ser captada pelo gestor público é a de que o afrouxamento das medidas de contenção não acarretará responsabilidade (nem mesmo criminal), independentemente de isto estar ou não no melhor interesse da saúde pública. É preciso salvaguardar os agentes públicos de indevida responsabilidade jurídica. O pêndulo, contudo, parece ter balançado para outro extremo, que não trará benéfico a ninguém.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] O STF reconheceu a competência concorrente de estados, DF, municípios e União no combate à Covid-19 no julgamento da ADI n.º 6341.

[2] (i) Decreto n.º 4.230, de 16 de março de 2020, que implementou medidas de enfrentamento à pandemia no âmbito do Estado do Paraná; (ii) Resolução n.º 338, de 20 de março de 2020, da Secretaria da Saúde do Estado do Paraná, que regulamentou o decreto anteriormente mencionado; (iii) Decreto n.º 4.301, de 19 de março de 2020, que alterou o Decreto n.º 4.230; (iv) Decreto Estadual n.º 4.317, de 21 de março de 2020, que dispôs sobre medidas de enfrentamento à pandemia por parte da iniciativa privada no âmbito estadual; e (v) Decreto n.º 4.545, de 27 de abril de 2020, que implementou alterações ao Decreto n.º 4.317.

[3] Importante ressaltar que este já é o terceiro decreto presidencial que alterou a regulamentação da Lei n.º 13.979/2020, para expandir o número de serviços considerados “essenciais”.

[4] “Art. 268. Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. Pena: 1 mês a 1 ano, e multa”

[5] No mesmo sentido, MONTENEGRO, Lucas; VIANA, Eduardo. Coronavírus: um diagnóstico jurídico-penal, JOTA. 23 mar. 2020 (https://bit.ly/3bT8N0j); LEITE, Alaor; GRECO, Luís. Direito Penal, saúde pública e epidemia, JOTA. 15 abr. 2020 (https://bit.ly/2Yj51JL).

[6] Poder-se-ia falar também em dolo eventual, o que demandaria estudo mais aprofundado.

[7] A discussão quanto à imputação objetiva em matéria penal é complexa e não cabe no presente artigo. Recomenda-se as seguintes leituras: GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4.ed. São Paulo: RT, 2014; MENDES, Paulo de Sousa. Causalidade complexa e prova penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.

[8] SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! Sobre os limites invioláveis do Direito Penal em um Estado de Direito liberal. Trad. Luís Greco. RBCCrim 53/9 (2005).

[9] Ventila-se, inclusive por ministros do STF, a inconstitucionalidade da medida provisória, por inviabilizar a responsabilidade de agentes públicos.

Autores

  • é advogado, professor do UniCuritiba, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), master of laws pela Cornell Law School e membro do New York State Bar e do Grupo de Pesquisa em Direito Privado Comparado da UFPR.

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