Opinião

Da "lei anticrime" à pandemia: 2020 clama por uma moratória penal

Autor

  • Luiz Eduardo Dias Cardoso

    é advogado no escritório Guedes Pinto Advogados doutorando e mestre em Direito pela UFSC e especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Univali e pela ABDConst além de vice-presidente da Comissão Especial de Estudos sobre o pacote "anticrime" da OAB-SC.

16 de maio de 2020, 6h33

Se o grande desastre que marca 2020 é, sem dúvidas, a pandemia do coronavírus, o ano, pelo menos no âmbito da legislação penal, já começara com um mau presságio: a entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, a denominada Lei Anticrime. Oriunda de um pacote legislativo punitivista e populista, a lei promoveu alterações em diversos diplomas — da Lei de Execuções Penais aos Códigos Penal e de Processo Penal, chegando até mesmo à Lei de Improbidade Administrativa. Nada sistemática e pouco debatida, a "lei anticrime" aposta no recrudescimento do sistema penal e no aprofundamento da utilização da prisão como cerne da política criminal.

Algumas alterações, no entanto, geraram esperanças. O exemplo mais emblemático é o do juiz das garantias, cuja adoção — um pequeno passo na direção de um sistema processual acusatório — era almejada pelos estudiosos há longa data. Mas, diria Millôr Fernandes, "o desespero eu aguento; o que me apavora é essa esperança". Antes mesmo de entrarem em vigor, os dispositivos concernentes ao juiz das garantias foram indefinidamente suspensos por decisão monocrática do ministro Luiz Fux, do STF (ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305).

Com a eclosão da pandemia, duas situações têm chamado a atenção no âmbito da legislação penal: a prática e persecução dos crimes relacionados à saúde pública — especialmente aquele tipificado no artigo 268 do Código Penal — e a possível persecução de "crimes tributários" decorrentes do inadimplemento de tributos durante e após o período da crise sanitária (vale lembrar que o STF recentemente reescreveu a Constituição Federal ao apontar que é crime a mera sonegação de impostos, como no caso do ICMS — RHC 163.334).

Portanto, já em seus primeiros meses, o ano de 2020 tem sido uma eloquente demonstração das muitas idiossincrasias que circundam a legislação penal brasileira.

Muito se tem dito, invariavelmente com certo ar motivacional, que a pandemia deve servir para repensar velhos hábitos, rever certas práticas e inaugurar novas rotinas.

A passagem por esse difícil período pode servir, nesse sentido, para uma moratória penal. Cogita-se uma moratória, por exemplo, no âmbito tributário, por conta dos implacáveis reveses financeiros impostos pela pandemia. Mas também a legislação penal pode se valer de prática similar. O Direito Penal, no final das contas, também é uma política pública e, como tal, reclama dispêndios de recursos públicos; trata-se, na verdade, da mais gravosa — e, presumivelmente, mais onerosa — forma de exercício do poder estatal, que aqui recebe um epíteto próprio: ius puniendi.

Uma colcha de retalhos com mais de 1.600 tipos penais[1] e diversos “subsistemas” (da lavagem de dinheiro, das organizações criminosas, dos crimes contra o meio ambiente…) não raramente incompatíveis entre si, a legislação penal brasileira é repleta de incongruências, de forma que a proporcionalidade entre crimes e penas invariavelmente não é observada. Ademais, os Códigos Penal e de Processo Penal, adotados na década de 1940 e reiteradamente reformados desde então, convivem com diversas outras leis esparsas, a dificultar ainda mais a tarefa do intérprete das leis penais. Soma-se ao anacronismo legislativo, ainda, a importação de instrumentos e práticas até pouco estranhos à legislação criminal brasileira — como é o caso da perda alargada, do whistleblowing e do acordo de não-persecução penal —, que trazem consigo novos e mais complexos desafios.

Valendo-se, então, das digressões impostas pela pandemia, o Direito Penal e o Processo Penal brasileiros devem ser objeto de profunda reflexão por todos os atores do sistema penal — aí incluída a Academia, tão solenemente excluída do debate sobre o Pacote Anticrime.

Projetos de lei referentes a novos Códigos Penal e de Processo Penal, nesse sentido, devem suscitar discussões globais a respeito da matéria, em experiência semelhante àquela recentemente vivenciada no âmbito do Processo Civil. Além disso, as leis e políticas criminais atualmente adotadas devem ser objeto de intenso escrutínio, com a realização de estudos de impacto legislativo e político-criminal e a participação de profissionais de múltiplas áreas. O debate, muito mais do que jurídico, deve ser transdisciplinar.

A par de avaliações ex post, as análises ex ante[2] devem nortear a proposição de novas leis penais, a serem adotadas apenas em caso de extrema necessidade – o Direito Penal, afinal de contas, é ultima ratio do poder estatal. Nesse sentido, os estudos de impacto legislativo e político-criminal devem ser sistemática e compulsoriamente instituídos como práticas ínsitas à proposição de qualquer lei em matéria criminal. O Direito Penal, repita-se, também é política pública e, como tal, deve ser precedido de estudos prévios (inclusive orçamentários, como apontou — talvez inadvertidamente — o ministro Luiz Fux ao suspender o juiz das garantias[3]), que lhe confiram uma mínima eficiência, em uma relação de custo-benefício positiva.

Se em ramos como o Direito Tributário e o Direito Bancário a moratória é uma solução duvidosa — despe-se um santo para vestir outro[4] —, no Direito Penal e Processual Penal ela é uma providência inadiável. Apenas com a revisão das leis e políticas atuais e com a submissão de propostas futuras a critérios rígidos haverá um Direito Penal e Processual Penal minimamente racional.

 


[1] Em pesquisa patrocinada pelo Ministério da Justiça, apontou-se, em 2009, a existência de 1.688 tipos penais (MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; MACHADO, Maíra Rocha. Penas Alternativas. Série Pensando o Direito. Brasília, 2009. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/06Pensando_Direito3.pdf). Com a profícua produção legislativa verificada desde então em matéria penal – não acompanhada de processos de descriminalização no mesmo ritmo –, seguramente ultrapassou-se a barreira dos 1.700 tipos penais.

[2] Sobre a avaliação de impacto legislativo, ex ante e ex post, v. SCALCON, Raquel L. Avaliação de impacto legislativo: a prática europeia e suas lições para o Brasil. Revista de Informação Legislativa, v. 54, n. 214, p. 113–130, 2017. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/214/ril_v54_n214_p113. Como a autora destaca, é possível afirmar, “com segurança, que o Decreto n. 4.176 (BRASIL, 2002) introduziu, no ordenamento brasileiro, uma série de questões próprias da Legística formal e material”, inclusive “um sofisticado modelo de avaliação legislativa ex ante ou prospectiva”. O Decreto mencionado foi sucedido pelo Decreto n. 9.191/2017; ambos regulamentam, no âmbito do Poder Executivo Federal, “a redação, a alteração, a consolidação e o encaminhamento ao Presidente da República de projetos de atos normativos” – aí incluídos projetos de lei, como é o caso do Pacote Anticrime.

[3] A respeito do aspecto orçamentário na proposição de projetos de lei em matéria penal, v. CARDOSO, Luiz Eduardo Dias. A inconstitucional falta de análise de impacto político-criminal. Consultor Jurídico. 23. fev. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-fev-23/luiz-cardoso-inconstitucional-ausencia-analise-impacto-politico-criminal; e SARMENTO, D.; BORGES, A. Avaliação de Impacto Regulatório, normas penais e segurança pública. Jota, p. 1–28, 2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/avaliacao-de-impacto-regulatorio-normas-penais-e-seguranca-publica-21072019.

[4] Sobre os efeitos deletérios de uma pretensa moratória generalizada, remete-se à abordagem jurídico-econômica delineada em MENEGUIN, Fernando B.; OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Moratória e serviços essenciais: medida bem-intencionada com efeitos indesejáveis. Jota. 16. abr. 2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/moratoria-e-servicos-essenciais-medida-bem-intencionada-com-efeitos-indesejaveis-16042020. Os autores clamam por um “exercício sóbrio de busca de solução racional e baseado em evidências científicas”, na linha daquilo que se sugere, no presente artigo, em relação às políticas e leis criminais.

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