Diário de Classe

O MP e a sua responsabilidade política de não fazer política

Autores

  • Maicon Crestani

    é doutorando em Direito Público na Unisinos-RS e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Giovanna Dias

    é advogada mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

16 de maio de 2020, 8h00

Em recente entrevista à TV ConJur, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, respondeu questões extremamente relevantes no que diz respeito à legitimidade dos atos dos agentes do Ministério Público. A manchete, que carrega o título MP é agente político que escolhe meios para atingir o interesse público (ver aqui), salta aos olhos de qualquer leitor minimamente familiarizado com a atuação do órgão público.Como é sempre importante prestarmos atenção nos discursos das autoridades, na aula desta semana o assunto não poderia ser outro. Portanto, no "Diário de Classe" de hoje, analisaremos o que foi dito pelo PGR na entrevista e, com base nisso, tentar demonstrar que é preciso, mormente para a sua própria preservação, que a instituição não ultrapasse os limites de suas competências, de forma a desviar a função de suas atribuições.

A entrevista inicia com reflexões sobre o instituto da delação premiada e seus consequentes problemas, seguindo com algumas considerações acerca dos novos mecanismos de combate à criminalidade e da interação com o Tribunal de Contas. Aras afirma a autonomia do Ministério Público, enfatizando a sua importância na vida nacional, desde o nascedouro até “o processo sucessório na via econômica, na via ambiental, nos direitos e garantias fundamentais, na produção, consumo e distribuição de alimentos, remédios, armas”. Também enfatiza a função fiscalizadora e controladora que lhe é subjacente, atribuída constitucionalmente.

Em um determinado momento, quando perguntado sobre a atuação das Câmaras de Coordenação do MP, Aras efetua uma diferenciação entre o agente político e o servidor público, para quem “O agente político é aquele que pode escolher os meios para atingir o fim que há de ser sempre do interesse público”. Em seu entendimento, é em razão de serem agentes políticos que cada Câmara possui a escolha de suas pautas prioritárias. O desempenho da função dos agentes do Ministério Público, segundo o PGR, exige a indução de políticas públicas de fiscalização e controle, conforme o surgimento das demandas sociais, estabelecendo-se as prioridades, sempre com a finalidade de atendimento dos interesses públicos.

Inicialmente, é desnecessário destacar a relevância do Ministério Público como instituição capaz de induzir o controle sobre a democracia brasileira, com os poderes conferidos pela Constituição da República de 88, o que está consubstanciado, inclusive, como um de seus deveres. Notadamente, no seu mister de órgão de controle, a instituição é instância central para o reforço das premissas republicanas.

Augusto Aras, ao efetuar a diferenciação entre agentes políticos e servidores públicos, parte do pressuposto de que a natureza dos membros do MP se encaixa na primeira categoria. No entanto, não poderíamos deixar de ressaltar que a própria dogmática administrativista não possui unanimidade quanto ao fato de o parquet ser ou não um agente político. Nesse sentido, Carvalho Filho aduz:

[…] parece-nos que o que caracteriza o agente político não é só o fato de serem mencionados na Constituição, mas sim o de exercerem efetivamente (e não eventualmente) função política, de governo e administração, de comando e, sobretudo, de fixação das estratégias de ação, ou seja, aos agentes políticos é que cabe realmente traçar os destinos do país[1].

Maria Sylvia Zanella di Pietro também classifica os agentes políticos de forma mais restritiva, sustentando que tal conceito está vinculado ao exercício da função de governo com clara conotação política, o que não existiria nos cargos de magistrado e membro do Ministério Público:

[…] essas funções políticas ficam a cargo dos órgãos governamentais ou governo propriamente dito e se concentram, em sua maioria, nas mãos do Poder Executivo, e, em parte, do Legislativo; no Brasil, a participação do Judiciário em questões políticas praticamente inexiste, pois a sua função se restringe, quase exclusivamente, à atividade jurisdicional sem grande poder de influência na atuação política do Governo, a não ser pelo controle a posteriori. O mesmo se diga com relação aos membros do Ministério Público […][2]

Veja-se que apenas essa questão já é objeto de grande discussão. No entanto, aceitaremos o fato de que o PGR, diante da divergência doutrinária, adota a posição menos restritiva, considerando os membros do MP como agentes políticos, e passaremos a delinear o que mais chama atenção na fala de Aras, de que o agente político – leia-se, então, os membros do MP – é aquele que pode escolher os meios para atingir um determinado fim: o interesse público.

É fato que o Ministério Público tem se agigantado como instituição desde a redemocratização[3], sendo de extrema importância a sua autonomia funcional, para que possa exercer o seu dever não apenas de fiscalização e controle de tudo aquilo que lhe é pertinente constitucionalmente, mas também para a preservação do interesse público. No entanto, a fala do chefe maior da instituição é problemática no sentido de que se omite em relação aos limites de atuação dos membros do parquet.

Quando o PGR diz que o agente político é aquele que pode escolher os meios para atingir determinado fim, ele desloca o debate que, anteriormente, estava restrito à escolha das pautas prioritárias pelas Câmaras de Coordenação para um sentido de maior amplitude. Isso porque não há qualquer hipótese que autorize a escolha indiscriminada dos meios para atingir determinado fim, ainda que este seja de interesse público. Trata-se do pressuposto utilitarista de que os fins podem justificar os meios. Faz-se, portanto, a seguinte pergunta: e se os meios selecionados pelos membros do MP na atuação diária forem, inclusive, contrários ao próprio interesse público, por desconsiderarem direitos fundamentais e os limites que a Constituição impõe?

Nota-se como a fala do PGR é desafiadora do ponto de vista de uma compreensão do papel democrático do Ministério Público. Os relatos de manipulação de provas na operação Lava-jato, os diálogos publicados pelo The Intercept Brasil, apenas à título exemplificativo, desnudam atuações pouco ortodoxas da instituição nesse sentido. Raymundo Faoro desenvolveu toda a sua reflexão com os olhos voltados aos agentes que se utilizam das esferas públicas para o alcance de interesses privados, o que ele chamou de patrimonialismo[4]. As escolhas privadas acerca de meios adotados pelos agentes públicos para o alcance de fins específicos são, em sua maioria, fundamentadas no interesse público, ainda que isso signifique a violação de garantias fundamentais.

É certo que os fins perseguidos pelos membros do parquet devem ser de interesse público, da mesma forma que os meios empregados também devem estar de acordo com os pactos legislativos e constitucionais. Afinal, se a ocorrência de abusividades dos agentes institucionais em pequenos atos processuais for gradativamente se normalizando na prática, cada vez mais tais posturas serão alastradas no cotidiano.

É evidente que o Ministério Público é órgão fundamental para a democracia. E é justamente em razão disso que deva existir um constrangimento em relação às suas atividades, sobretudo para o seu resguardo enquanto instituição. A propósito, sua finalidade é crucial. Ocorre que, conquanto crucial, a atuação do MP não pode ir além do pacto constitucional, não pode traduzir um comportamento arbitrário sob o argumento de fiscalização da lei. Não pode ser construído um perfil institucional enredado em voluntarismo e ativismo com a finalidade de atingir interesses públicos. Ao contrário disso, a principal função do MP é a defesa constitucionalmente orientada dos direitos difusos e coletivos, bem como a fiscalização dos direitos fundamentais.

O Ministério Público é instituição permanente, autônoma e essencial à Justiça, com respaldo robusto no texto constitucional, de forma que os meios pelos quais se dá a sua atuação já estão previamente dispostos constitucionalmente. O seu atuar político apenas enfraquece a Instituição. Essa questão, simples, não parece estar sendo devidamente compreendida por alguns de seus integrantes, tendo em vista as muitas investidas dessa natureza recentemente. Em resumo, membros do MP possuem atribuições significativas e status de magistratura[5], mas não podem se utilizar de qualquer meio. É necessário que isso seja dito, de forma a proporcionar o constrangimento ao exercício de subversão dos princípios republicanos.

Enquanto instituição de envergadura constitucional, o Ministério Público deve assumir responsabilidade política, não um agir político-estratégico.


[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 30. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 620.

[2]  ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Ed. Atlas, 1995. p. 354.

[3]CARVALHO, Ernani; LEITÃO, Natália. O Novo Desenho Institucional do Ministério Público e o processo de Judicialização da política. Rev. direito GV, v. 6, n. 2, p. 399–421, 2010, p. 399: "A história do Ministério Público mostra que algumas de suas prerrogativas foram adquiridas antes da Constituição de 1988. Por exemplo, o Código de Processo Civil de 1973 determinou que o Ministério Público deveria atuar em todas as causas que houvesse interesse público o que, segundo arantes (2002), já demonstra o início do afastamento do Poder Executivo. Mas é somente na década 1980 que a instituição sofre as modificações mais importantes. Destaca-se, neste sentido, a Lei nº 6938/81 de Política nacional de Meio ambiente, que incluiu novos instrumentos processuais e deu legitimidade ao Ministério Público para proposição de ação de responsabilidade civil e criminal por danos causados ao meio ambiente".

[4] NEVES, Isadora; LIMA, Danilo Pereira. A atualidade de Raymundo Faoro e dos clássicos do pensamento político. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. São Paulo, 2 fev 2019. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-fev-02/diario-classe-atualidade-raymundo-faoro-classicos-pensamento-politico>.

[5]CANOTILHO, J.J. Gomes et al (Orgs.), Comentários à Constituição do Brasil, 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação (Série IDP), 2018, p. 1633.

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