Ambiente Jurídico

Covid-19, mudança do clima e perda da biodiversidade

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16 de maio de 2020, 11h10

Spacca
A Covid-19, sem dúvida alguma, é a maior chaga humanitária que o mundo já experimentou desde a Segunda Grande Guerra Mundial e será responsável pela maior crise econômica desde a Grande Depressão. A perspectiva de retração da economia mundial é de 3% até o final de julho, e ainda pode agravar-se. Assim não fosse, a pandemia, segundo Lawrence Summers, juntamente com os ataques terroristas ao World Trade Center (11 de setembro de 2001) e a Crise de 2008, faz parte dos três maiores choques globais do Século 21, sendo de longe o mais significativo.[1] As práticas utilitárias, o rentismo e os investimentos das nações na indústria dos combustíveis fósseis, armamentista, de produção de bens supérfluos e não essenciais acabou alocando trilionários recursos financeiros que seriam necessários para pesquisas aptas ao descobrimento de vacinas contra os vírus do estilo corona e, especialmente, para a fabricação de um antirretroviral de amplo espectro para o tratamento de pandemias como a atual.

Falta nos governos das nações e nos grandes grupos econômicos uma noção de solidariedade, de pertencimento e de uma cultura que pregue a resiliência para a vida neste novo normal. Aliás, não raras vezes, também falta prudência, serenidade e a necessária sensatez. Qualidades essas essenciais para o homem político idealizado por Aristóteles e imprescindíveis para o estadista pós-moderno inserido em uma sociedade de risco.

Relevante é o pensamento de cunho altruísta e generoso, capaz de responder aos desastres e as catástrofes humanitárias com base em constatações científicas, valendo-se de avanços tecnológicos. Este pensamento, justamente, guardado o distanciamento temporal, foi a base do Plano Marshall para reconstruir as nações e as economias arruinadas após a Segunda Guerra Mundial. A própria Organização das Nações Unidas foi criada neste cenário de reconstrução, pois é das crises que podem surgir os grandes avanços e as mudanças necessárias para a evolução da humanidade.

As externalidades negativas da pandemia, decorrente de uma zoonose[2], não são apenas econômicas, é bom que se grife, mas humanas, sociais, ambientais e políticas. Profundas são as chagas já deixadas pelo vírus que instalou-se na espécie humana via spillover.[3]

A ausência de observância dos princípios da precaução e da prevenção no plano internacional é a causa da dimensão alcançada pela Covid-19 globalmente.[4] Nações que adotaram medidas precautórias e preventivas estão sofrendo menos do que aquelas que realizaram um balanceamento entre o humano e o econômico e optaram pelo segundo, em uma visão de curto prazo. Caíram na armadilha do risco que abocanha e devora, sem nenhuma dificuldade, os pensamentos utilitários e imediatistas. Vieses, com efeito, são armadilhas perigosas nas decisões dos incautos nas políticas públicas. E o açodamento, não raras vezes, pode ser fatal e gerador do caos sem precedentes e de consequências imprevisíveis.[5]

A resposta contra a pandemia deve ser imediata, com uma perspectiva intergeracional, com o perdão da redundância, de longo prazo.[6] No momento, cabe aos governos informar à população sobre os riscos de contágio e da doença em si e buscar o achatamento das curvas de contaminação e das mortes priorizando a vida humana de acordo com as orientações da Organização Mundial de Saúde e com as disposições do Regulamento Sanitário Internacional (RSI).[7]

Não se pode perder de vista que existem outras duas questões que precisarão ser enfrentadas com seriedade, por precaução e prevenção: o aquecimento global e a perda da biodiversidade. Quase um milhão de espécies da fauna e da flora podem ser extintas nos próximos anos[8] e a mudança climática vai aumentar a intensidade e a frequência de eventos extremos como secas, enchentes, ciclones, furacões, precipitações e o aumento dos oceanos com devastadoras consequências sociais, ambientais e econômicas.[9] Uma visão obscurantista, pré-medieval e de negação da ciência não é a solução, aliás, esta linha de pensamento, destituído do necessário equilíbrio, nos colocou nesta situação periclitante e de ampliação dos mega riscos.

A Organização Meteorológica Mundial divulgou recentemente dados preocupantes, mostrando que as temperaturas já aumentaram 1,1 graus centígrados acima dos níveis pré-industriais (1750).[10] Vivemos em um novo antropoceno, cujas consequências para a espécie humana são imprevisíveis. A Terra não necessita dos seres humanos, mas os seres humanos necessitam do meio ambiente, dos ecossistemas e dos serviços ambientais.[11] É intuitivo, chegando as raias da obviedade, que o desequilíbrio climático e ambiental pode levar a maior incidência e intensidade desta e de novas pandemias.

Abordar a mudança climática, a perda da biodiversidade e a Covid-19 simultaneamente e em escala suficiente requer uma resposta de governança efetiva na tutela da vida humana e não humana e dos correspondentes meios de subsistência. Nesta crise, salta aos olhos a real oportunidade para a construção de economias e de sociedades mais sustentáveis, menos egocêntricas, e mais inclusivas.

Aliás, a Agência Internacional de Energia Renovável divulgou dados que mostram que a transformação dos sistemas de energia poluente para limpa poderia impulsionar o PIB global para US$ 98 trilhões até 2050, gerando um aumento de 2,4% no mesmo se comparado aos padrões atuais de desenvolvimento carbonizado. Aumentar os investimentos em energia renovável, por si só, adicionaria 42 milhões de empregos em todo o mundo, e geraria uma economia em saúde oito vezes maior do que o custo do investimento e, assim, por certo, futuras crises seriam evitadas.[12]

Neste sentido, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, propôs, recentemente, seis ações positivas, em termos climáticos, para os governos considerarem em projetos de reconstrução das economias e da organização social após o fim desta primeira onda de pandemia da Covid-19:

Primeiro: como gastamos trilhões para nos recuperar do Covid-19, precisamos criar novos empregos e negócios por meio de uma transição limpa e verde. Os investimentos devem acelerar a descarbonização em todos os aspectos de nossa economia.

Segundo: onde o dinheiro dos contribuintes resgata empresas, ele deve criar empregos verdes, de crescimento sustentável e inclusivo. Não deve ser usado para salvar indústrias poluentes e de uso intensivo de carbono, sabidamente ultrapassadas.

Terceiro: o poder de fogo fiscal deve mudar as economias de cinza para verde, tornando as sociedades e as pessoas mais resilientes por meio de uma transição justa para todos e que não deixe ninguém para trás.

Quarto: os fundos públicos devem investir no futuro, fluindo para setores e projetos sustentáveis que ajudam o meio ambiente e o clima. Os subsídios aos combustíveis fósseis devem terminar e os poluidores devem pagar por sua poluição.

Quinto: O sistema financeiro global, quando molda políticas de infraestrutura, deve levar em consideração os riscos e as oportunidades relacionados ao clima. Os investidores não podem continuar ignorando o preço que nosso planeta paga por um crescimento insustentável.

Sexto: Para resolver ambas as emergências, precisamos trabalhar juntos como uma comunidade internacional. Como o coronavírus, os gases de efeito estufa não respeitam limites. O isolamento é uma armadilha. Nenhum país pode ter sucesso sozinho.[13]

Absolutamente lúcida e correta a colocação de Guterres, uma luz, ante os obscurantismos alimentados por fake news e contaminados por debates polarizados, com argumentos pré-secularizados, isolacionistas[14], que servem apenas para aumentar a desagregação no tecido social da humanidade e vulnerabilizar o princípio da fraternidade.[15]

O Estado Socioambiental de Direito, por fim, no âmbito das suas três funções (executiva, administrativa e judicial), deve, observados os princípios da precaução e da prevenção, priorizar à vida ao lucro; a visão de longo prazo ao imediatismo; o público ao privado; o comunitário ao utilitário: e, a generosidade à avareza. A experiência do combate à pandemia da Covid-19 deve fornecer, de modo integrado e integrador, com erros e acertos, as lições necessárias para o enfrentamento das crises do aquecimento global e da perda da biodiversidade em que estamos igualmente imersos e que irão, sem sombra de dúvida, caminhar para um agudo agravamento se nada for feito nos próximos anos.

A guinada da economia calcada nos combustíveis fósseis para a economia verde, movida pelas energias renováveis, precisa ocorrer imediatamente, observados os compromissos assumidos pelos signatários do Acordo de Paris e, igualmente, os 17 objetivos e as 179 metas da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. O engajamento das nações, da sociedade, das empresas e dos indivíduos é fundamental para a concretização de um mundo descarbonizado e rico (no aspecto da qualidade de vida e da felicidade) nestes tempos incertos de mudança do clima, de perda da biodiversidade e de pandemia.

[1] SUMMERS, Lawrence. Covid-19 looks like a hinge in history. In: Financial Times. Disponível em: https://www.ft.com/content/de643ae8-9527-11ea-899a-f62a20d54625. Acesso em: 15.05.2020.

[2] WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO recommendations to reduce risk of transmission of emerging pathogens from animals to humans in live animal markets or animal product markets. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/coronavirus/who-recommendations-to-reduce-risk-of-transmission-of-emerging-pathogens-from-animals-to-humans-in-live-animal-markets. Acesso em: 15.05.2020.

[3] Sobre o fenômeno do spillover, ver o clássico: QUAMMEN, David. Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic. New York :W.W. Norton & Company, 2012.

[4] Para uma visão mais aprofundada do princípio da precaução na era das mudanças climáticas e do aumento das catástrofes, ver: WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução: como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública (de acordo com o direito das mudanças climáticas e o direito dos desastres).3a. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2020.

[5] Sobre os vieses comportamentais, ver: KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. New York: Farrar, Strasuss e Giroux, 2011.

[6] KRUGMANN, Paul. The Covid-19 Slump Has Arrived. In: The New York Times. https://www.nytimes.com/2020/04/02/opinion/coronavirus-economy stimulus.html?searchResultPosition=5. Acesso em: 10.04.2020.

[7] Desde o início da pandemia do novo coronavírus, os países têm tomado várias iniciativas para conter o avanço da doença. A maioria delas são baseadas no diploma mais importante no âmbito do direito internacional no combate as pandemias, o Regulamento Sanitário Internacional (RSI). Esse documento indica em quais situações se deve tomar medidas como a restrição nas fronteiras ou a quarentena, por exemplo.O RSI é um instrumento jurídico internacional vinculativo para 196 países, que inclui todos os Estados-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) — entre os quais, o Brasil. O documento estabelece conceitos e ferramentas a serem usados pela comunidade internacional para detectar precocemente e responder aos graves riscos à saúde pública que têm o potencial de atravessar fronteiras e ameaçar os seres humanos em todo o mundo.

[8] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório da Onu mostra que 1 milhão de espécies de animais e plantas enfrentam riscos de extinção. Disponível em: https://nacoesunidas.org/relatorio-da-onu-mostra-que-1-milhao-de-especies-de-animais-e-plantas-enfrentam-risco-de-extincao/. Acesso em:23.07.2019.

[9] UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAMME – (UNEP). Intergovernmental Panel on Climate Change. Global Warming of 1,5C. Disponível em: http://www.ipcc.ch/report/sr15/. Acesso em: 22.04.2020.

[10] WORLD METEOROLOGICAL ORGANIZATION. Earth Day highlights Climate Action. Disponível em: https://public.wmo.int/en/media/press-release/earth-day-highlights-climate-action. Acesso em: 14.05.2020.

[11] Ver: LOVELOCK, James. A Rough Ride to the Future. London: Penguin Group, 2014. p. 169.

[12] INTERNATIONAL RENEWABLE ENERGY AGENCY.
Renewable Energy Can Support Resilient and Equitable Recovery. Disponível em: https://www.irena.org/newsroom/pressreleases/2020/Apr/Renewable-energy-can-support-resilient-and-equitable-recovery. Acesso em: 14.05.2020.

[13] GUTERRES, António. A Time to Save the Sick and Rescue the Planet. In: The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/28/opinion/coronavirus-climate-antonio-guterres.html?smid=fb-share&fbclid=IwAR0TBid8sUXgpBuc_zWkC_W-HDGajG-Da0DT6uJTuIvbXzJzGwl5L9OSUoM. Acesso em: 14.05.2020.

[14] Joseph Stiglitz defende uma ação conjunta e coordenada das nações para o combate à pandemia. WORLD ECONOMIC FORUM. World Leaders Must Unite in Tackling COVID-19, says Joseph Stiglitz. Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2020/04/internationalizing-coronavirus-covid19-globalization-leadership. Acesso em: 10.04.2020.

[15] Sobre o princípio da fraternidade e sua relevância, consultar a recente e paradigmática obra do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca (STJ): FONSECA, Reynaldo Soares da. O princípio constitucional da fraternidade: seu resgate no sistema de justiça. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.

Autores

  • é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar na Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law e professor visitante na Universität Heidelberg- Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (2010-2012) e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (2008-2010) e representante da magistratura federal no Conselho da Justiça Federal (2010-2012) e no Conselho do Prêmio Innovare (2010-2012). Autor de diversos artigos jurídicos no Brasil e no exterior e de livros, entre os quais, "Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças Climáticas: um direito fundamental".

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