Opinião

Lockdown e controle penal da saúde pública no Brasil: há algo fora do lugar

Autor

  • Airto Chaves Junior

    é doutor e mestre em Ciência Jurídica pelo programa de pós-graduação stricto sensu em Ciência Jurídica da Univali doutor em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Ciência Jurídica (cursos de mestrado e doutorado) da Universidade do Vale do Itajaí e professor do curso de Direito da mesma instituição.

16 de maio de 2020, 13h01

Há tipos penais pouco percebidos nas práxis jurídica brasileira. O crime previsto no artigo 268 do Código Penal certamente é um desses. Tal como os delitos da Lei de Drogas (11.343/2006), a sua existência é justificada na proteção da saúde pública. É verdade que existem debates diversos no âmbito da dogmática penal que questionam a legitimidade desse bem jurídico coletivo [1]. No entanto, não é este o meu objetivo aqui. Vou partir da premissa (que reconheço duvidosa) de que a saúde pública é um legítimo bem jurídico coletivo para figurar no âmbito de proteção da norma penal.

A "infração de medida sanitária preventiva" teve para si os holofotes direcionados a partir dos meses de fevereiro e março deste ano de 2020, quando a Covid-19 chegou a categoria de pandemia. No Brasil de hoje, ninguém sabe ao certo quantas pessoas contraíram o coronavírus, quantas morrerão em decorrência dele ou, ainda, quando haverá um controle sanitário efetivo na forma de vacina ou outro método a partir do qual se possa estancar as contaminações e as mortes. Diante dessa realidade e, apostando no isolamento social como mecanismo de controle, governos locais [2] vêm apostando na técnica do confinamento absoluto (lockdown) emitindo-se determinações de bloqueio total de determinadas regiões, bairros ou cidades. A dúvida aqui é a seguinte: qual é a consequência penal para o agente que, intencionalmente, desrespeite essas determinações? Ou, melhor dizendo: considere alguém diagnosticado com a Covid-19 (doença sabidamente contagiosa) e que, diante dessa condição clínica receba determinação do órgão de saúde para que permaneça em isolamento domiciliar e, dolosamente, infringe essa determinação. Possivelmente esse comportamento encontraria tipicidade no deito do artigo 268 do CP, sobretudo tendo em vista a potencialidade dessa conduta em propagar a doença e contaminar outras pessoas. Mas qual seria a resposta penal possível para este sujeito?

O delito do artigo 268 do Código Penal incrimina a conduta de "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". Sobre ele, Cezar Roberto Bitencourt [3] esclarece que é necessário demonstrar a idoneidade do comportamento infrator para produzir um potencial resultado ofensivo à preservação do bem jurídico (saúde pública). Conforme o autor, caso não reste evidenciado esse perigo (ainda que abstrato) de lesão à saúde, não há crime, pois o contrário admitiria que a mera infração de norma administrativa fosse constitutiva de delito. Neste ponto, o delito do artigo 268 do Código Penal somente abrangeria as infrações significativas de determinações do poder público, ou seja, aquelas que coloquem em perigo a saúde de um número indeterminado de pessoas, diante da séria possibilidade de introdução e propagação de doença contagiosa. Mas, o que desafia os cânones mais elementares da razoabilidade é a consequência na forma de pena que esse dispositivo carrega: um mês a um ano de detenção, mais multa. Tem-se, portanto, uma infração penal de menor potencial ofensivo.

Fazendo-se um paralelo com a Lei de Drogas (que, em tese, protege o mesmo bem jurídico coletivo), é fácil verificar que essa cominação não faz qualquer sentido. Como pode alguém que, comprovadamente infectado, infringe determinação do poder público e coloca em perigo a saúde de um número indeterminado de pessoas estar sujeito a pena de um mês de detenção enquanto aquele que guarda droga [4] está sujeito a pena de cinco anos de reclusão? Se o bem jurídico tutelado é exatamente o mesmo, como pode o perigo consubstanciado na difusão de doença contagiosa (que comprovadamente pode levar a morte) e consequente possibilidade de infecção de um número indeterminado de pessoas ter pena muito menor do que aquela cominada a alguém que guarda droga?

Aliás, a tomar como exemplo o seu artigo 33 da Lei de Drogas, podemos verificar que a resposta que o legislador determina ao condenado por essa prática é superior ao crime de instigação, induzimento ou auxílio ao suicídio [5] (seis meses a dois anos de reclusão), ao delito de lesão corporal gravíssima [6] (reclusão de dois a oito anos de reclusão), ao tipo penal que prevê o crime de lesão corporal seguida de morte [7] (quatro a 12 anos de reclusão), ao crime de abandono de incapaz com resultado morte [8] (reclusão de quatro a 12 anos), ao delito de maus tratos com resultado morte [9] (reclusão de quatro a 12 anos), e, também, mais alta que a pena cominada ao crime de tortura qualificada pela lesão corporal grave ou gravíssima [10] (quatro a dez anos de reclusão). Caso se trate de tráfico (transporte de droga, por exemplo) interestadual [11], a pena mínima fica próxima aos seis anos (Lei 11.343/2006, artigo 33 c/c artigo 40, V), sanção aproximada àquela imposta ao sujeito que mata (dolosamente) uma pessoa (CP, artigo 121, caput [12]).

Tal como o crime do artigo 268 do Código Penal, o crime do artigo 33 da Lei de Drogas traz consigo a justificação de proteger a saúde pública e, numa atenta análise à sua redação, não é difícil concluir que vários dos 18 núcleos previstos no seu tipo penal não representam qualquer ameaça à saúde de qualquer pessoa [13]. E ainda que existisse uma ameaça à saúde de pessoa determinada (ou mesmo, determinável), as perguntas são quase automáticas: por que é que a pena do crime de tráfico de drogas (guardar droga, por exemplo) é mais alta do que aquelas previstas para os crimes de tortura, lesão corporal gravíssima, lesão corporal seguida de morte e induzimento ao suicídio [14]? Qual é a expressão máxima de lesão à saúde? Não seria a morte a falência completa dessa condição? Não se verifica qualquer critério razoável para que se tenha tão elevada cominação, sobretudo, porque o legislador impõe tais penas, inclusive, sobre comportamentos que não geram qualquer perigo para o bem jurídico. Numa análise crítica a essa tendência, Winfried Hassemer [15] registra que o injusto penal não é a causa provável de um dano, mas uma atividade que o legislador criminalizou.

Além disso, se o objetivo da norma é proteger a saúde pública, não há como incriminar o comportamento de guardar drogas para consumo próprio [16] (espécie de ato preparatório de autolesão) e deixar de incriminar a autolesão efetiva, ou mesmo, a autoexposição a perigo de lesão. Aqui, são flagrantes as contradições valorativas a partir daquilo que Wolfgang Frisch [17] chama de mandato de consistência, pois o legislador deixa, sem fundamento, de reconhecer certo princípio limitador da pena por ele aceito noutro setor.

O artigo 260, § 1º, do Código Penal [18] prevê penas entre quatro a 12 anos de reclusão para quem causa desastre ferroviário (crime de lesão contra a segurança do transporte e de outros serviços públicos), pena cominada menor do que aquela prevista para o sujeito que "guarda" ou "leva consigo" droga (crime de perigo à saúde), conforme se verificou.

A lesão é uma realidade; o perigo, uma possibilidade. Então, não há justificativa satisfatória para se ter como legítimas as incriminações de delitos de perigo abstrato com penas mais elevadas se comparadas aos crimes de lesão, mormente, quando o bem jurídico afetado no crime de lesão possui uma relação direta com o bem que se julga proteger com a norma do delito de perigo.

Ou seja, se a coerência é pretensão interna de um sistema, notadamente está longe de ser o caso do sistema de crimes e penas que declaram proteger a saúde no Brasil. Há quase 20 anos, Juarez Tavares [19] já diagnosticava a urgência de uma profunda reforma nessas cominações, não para aumentá-las, mas para limitar o arbítrio do legislador em fixar limites de penas em atenção ao dano social que as respectivas condutas acarretam.

Por fim, a qualidade (prisão simples, detenção ou reclusão) e a quantidade (tamanho) da pena cominada ao tipo (no âmbito abstrato) deve estar diretamente alinhado ao bem jurídico [20]. Se se admite que há controle penal da saúde e a pena é um dos instrumentos de prevenção, parece bastante natural que essa pena seja proporcional a potencialidade de lesão ao bem jurídico que a conduta seria capaz de provocar. Esse é um critério a partir do qual não se pode afastar o legislador. No Brasil, porém, ou não há critérios, ou há critérios divergentes para fatos iguais ou, finalmente, critérios mais rigorosos para fatos de menor e de nenhuma gravidade.

 


[1] Ver, por exemplo: Winfried Hassemer em sua Teoria Pessoal (HASSEMER, Winfried. Derecho Penal Simbólico y protección de Bienes Jurídicos. Pena y Estado. Santiago: Editorial Jurídica Conosur, 1995), e Roland Hefendehl com os critérios de “não distributividade” do bem jurídico coletivo (Hefendehl, Roland. ¿Debe ocuparse el derecho penal de riesgos futuros? Bienes jurídicos colectivos y delitos de peligro abstracto. In: Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (Universidad de Granada/ES), 2002, RECPC nº 4). No Brasil, a grande maioria da doutrina afirma que a saúde pública constitui não só um bem jurídico individual, mas, também, um bem jurídico coletivo de clara dimensão social, sendo, por isso, de interesse e dever do Estado zelar pela proteção da saúde pública.

[2] Conforme se noticiou, os Estados do Maranhão, Ceará e Pará adotaram essa técnica na última semana.

[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial (4). 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014 (Versão digital), p. 293.

[4] Lei 11.343/2006, artigo 33 – Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. (…).

[5] CP, Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça: Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. (…).

[6] Código Penal Brasileiro, Art. 129 – Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. (…) § 2º – Se resulta: I – Incapacidade permanente para o trabalho; II – enfermidade incurável; III perda ou inutilização do membro, sentido ou função; IV – deformidade permanente; V – aborto: Pena – reclusão, de dois a oito anos.

[7] CP, Artigo 129 – Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. (…) § 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo: Pena – reclusão, de quatro a doze anos. (…).

[8] CP, Artigo 133 – Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: (…) § 2º – Se resulta a morte: Pena – reclusão, de quatro a doze anos.

[9] CP, Artigo 136 – Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina: (…) § 2º – Se resulta a morte: Pena – reclusão, de quatro a doze anos.

[10] Lei 9.455/97, artigo 1º, §3º, primeira parte – Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos (…).

[11] Lei 11.343/2006, Artigo 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se: (…) V – caracterizado o tráfico entre Estados da Federação ou entre estes e o Distrito Federal; (…).

[12] CP, Artigo 121: Matar alguém. Pena- reclusão, de seis a vinte anos.

[13] O tratamento ofertado pelos Tribunais Brasileiros ao crime de tráfico de drogas é, também, marcado pelo desprezo aos postulados do Princípio da Intervenção Mínima. Em grande medida, a tipicidade do comportamento é verificada tão somente em razão da letra fria e abstrata da lei, desprezando-se por completo as peculiaridades de cada caso e a impossibilidade material de qualquer ofensa ao Bem Jurídico no caso concreto. Ver: CHAVES JR., Airto. O esvaziamento dos critérios teórico-dogmáticos da intervenção mínima em matéria penal no Brasil: duas reflexões acerca do abandono do conteúdo material do crime pelos tribunais superiores. Católica Law Review (Lisboa/Porto) Volume III, nº. 3, nov. 2019.

[14] Conforme registra Luís Greco, possivelmente se objete: quem vende drogas causa inúmeras mortes, o que tornaria sua conduta mais desvaliosa. Conforme o autor, que responda, então, pelos homicídios, que se configurarão nos casos em que o consumo da droga não represente uma autocolocação responsável em perigo, que exclui a imputação objetiva. Porém, puni-lo por mortes que só remotamente pode vir a causar seria o mesmo que punir os fabricantes de carros pelos homicídios a que o tráfico rodado dá causa. (GRECO, Luís. Tipos de autor e Lei de Tóxicos, ou: interpretando democraticamente uma lei autoritária. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=191. Acesso em 24 de agosto de 2006).

[15] HASSEMER, Winfried. Derecho Penal Simbólico y protección de Bienes Jurídicos. Pena y Estado. Santiago: Editorial Jurídica Conosur, 1995, p. 23-36

[16] Lei 11.343/2006, Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: (…).

[17] Ver: FRISCH, Wolfgang. Bien Jurídico, Derecho, Estructura del Delito e imputación em el contexto de la legitimación de la pena estata. In: La teoria del Bien Jurídico ¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Traducción Rafael Alcácer, María Martin e Íñigo Ortiz de Urbina. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 2007, p. 334-336.

[18] CP, Art. 260 – (…) Desastre ferroviário. § 1º – Se do fato resulta desastre: Pena – reclusão, de quatro a doze anos e multa. (…)

[19] TAVARES, Juarez. Critérios de seleção de crimes e cominação de penas. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Número Especial de Lançamento. Dez. 1992, p. 84.

[20] Não são raras as situações em que, mesmo nos crimes de lesão, a desproporcionalidade das penas faz saltar os olhos.  Veja-se, por exemplo, o crime de furto qualificado (com penas entre 02 e 08 anos de reclusão) comparado ao crime de lesão corporal grave (com penas entre 01 e 05 anos de reclusão). Levando-se em consideração a importância do bem jurídico referência de cada delito, não há qualquer justificativa racionalmente legítima que explique que um crime contra o patrimônio (sem qualquer violência ou mesmo grave ameaça contra a pessoa) tenha pena mínima duas vezes maior do que a pena mínima prevista para o agente que, por exemplo, fura dolosamente o olho de determinada pessoa.

Autores

  • Brave

    é professor do programa de pós-graduação strito sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí (mestrado e doutorado) e doutor em Ciência Jurídica (Univali) e em Direito (Universidade de Alicante, Espanha).

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