Opinião

Audiências virtuais: A cloroquina judiciária para a Covid-19

Autores

  • Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave

    é doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Estágio pós-doutoral na Westifälische Wilhelms-Universität Münster (WWU). Membro da diretoria do IPPC. Membro da ABDPRO. Membro do IBDP. Membro do IBDFAM.

  • Alexandre Ogusuku

    é conselheiro federal OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia.

16 de maio de 2020, 17h29

Vivemos um tempo de exceção, tempo em que aflora a criatividade para os novos instrumentos na tentativa de restabelecer a normalidade e salvar a vida em todos sentidos. A busca pela vacina ou um remédio ao coronavírus é incessante, e experiências com diversos medicamentos são feitas sem qualquer estudo prévio sobre sua efetividade e “custo-benefício” dos efeitos colaterais. A medicação que ficou mais famosa recentemente é a cloroquina, medicamento usado para tratamento de malária, amebíase, artrite e lúpus[iii]. Foi aplicada em diversos pacientes sem se ter qualquer evidência científica acerca de sua eficácia[iv].

No Poder Judiciário não tem sido diferente. Para tentar conciliar o isolamento social com a manutenção do funcionamento do judiciário, muitas novidades têm sido apresentadas ao jurisdicionado e à advocacia.

Nos processos eletrônicos, cujos prazos retomaram o curso no último 4 de maio, a “cloroquina” encontrada pelos Tribunais para a Sars-Cov-2 é a da comunicação virtual. Despachos e sustentações orais à distância e audiências telepresenciais inovam a forma pelas quais os atos processuais são materializados. O uso da tecnologia dos meios de comunicação telepresenciais têm sido usados em larga escala, sem que os estudos e testes necessários a aferir sua eficiência e viabilidade fossem devidamente realizados.

Assim como na medicina a cloroquina se revela controversa com relação à efetividade no combate aos vírus, a prática de atos processuais de maneira virtual também se mostra controversa, e os efeitos colaterais, da mesma forma, podem se mostrar perversos, desequilibrando a relação de custo-benefício da sua utilização.

O primeiro ponto que chama a atenção é o fato de que nem todas as pessoas no Brasil, inclusive advogados, dispõem de tecnologia, de acesso à tecnologia e de conhecimento para o uso da tecnologia. O emprego da tecnologia na Justiça de forma imoderada produzirá a exclusão dos pobres, os que não tem acesso às redes, da Justiça. Será a nova onda de acesso à justiça[v].

Não foi por outro motivo que o Conselho Nacional de Justiça editou as Resoluções 313, 314 e 318, no sentido de que (i) não vivemos tempos de normalidade; (ii) o judiciário, fechado, funciona em regime de plantão extraordinário; (iii) sempre que receber da advocacia a simples comunicação da impossibilidade da prática de um ato o mesmo deve ser sobrestado.

É direito de todos aqueles que participam do processo, o acompanhar e participar dos julgamentos nos Tribunais. A pandemia e o isolamento social não justificam qualquer tipo de alteração nas garantias básicas estabelecidas pela Constituição Federal à advocacia e ao jurisdicionado.

Conforme dito, a implementação de audiências e julgamentos totalmente virtuais se deu em meio à pandemia e sem que fossem realizados estudos e testes avaliativos, tampouco foram os atores processuais munidos das ferramentas necessárias à sua utilização.

E aí cabe uma relevante advertência: nem todos os advogados possuem estrutura para a realização de audiências e sustentações orais à distância neste momento, especialmente considerando a recomendação de isolamento social que impede a utilização regular de espaços públicos e/ou compartilhados de trabalho.

Aos que não dispõem de acesso à tecnologia ou às condições necessárias à realização adequada de sustentações orais à distância é assegurado o direito ao reaprazamento do julgamento, para uma futura pauta presencial. Tal direito decorre das garantias asseguradas à advocacia (art. 133 da CF/88 e art. 7º, IX e X, da Lei 8.906/94).

Tornar obrigatória a sustentação oral eletrônica num momento de isolamento, além de inconstitucional e ilegal, pode significar um crime, na medida que impõe o deslocamento do profissional para locais que tenham recursos tecnológicos e materiais adequados, mas que apresentam risco de contaminação.

Não por outra razão o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu máxima cautela aos magistrados para determinar a prática dos atos nos processos eletrônicos, eis as regras vigentes:

(i) os atos processuais que eventualmente não puderem ser praticados pelo meio eletrônico ou virtual, por absoluta impossibilidade técnica ou prática a ser apontada por qualquer dos envolvidos no ato, devidamente justificada nos autos, deverão ser adiados e certificados pela serventia, após decisão fundamentada do magistrado. (§ 2º do art. 3º da Resolução CNJ nº 314);

(ii) eventuais impossibilidades técnicas ou de ordem prática para realização de determinados atos processuais admitirão sua suspensão mediante decisão fundamentada. (§ 1º do art. 6º da Resolução CNJ nº 314);

(iii) os prazos processuais para apresentação de contestação, impugnação ao cumprimento de sentença, embargos à execução, defesas preliminares de natureza cível, trabalhista e criminal, inclusive quando praticados em audiência, e outros que exijam a coleta prévia de elementos de prova por parte dos advogados, defensores e procuradores juntamente às partes e assistidos, somente serão suspensos, se, durante a sua fluência, a parte informar ao juízo competente a impossibilidade de prática do ato, o prazo será considerado suspenso na data do protocolo da petição com essa informação. (§ 3º do art. 3º, da Resolução CNJ nº 314)

No plano das audiências em que se colhem depoimento das partes e testemunhas a situação é ainda mais sensível. Na sistemática processual atual, são os advogados os responsáveis pelas comunicações das audiências às suas testemunhas por carta registrada ou pelo compromisso de conduzir as mesmas até as salas de audiências voluntariamente.

É o próprio advogado ou o seu cliente, salvo os casos de condução sob vara, o encarregado de orientar as testemunhas do dia e hora das audiências e os locais de suas realizações, mais das vezes transportando-as até os fóruns. Em período de pandemia não pode o advogado ser obrigado a deslocar-se de seu isolamento para postar cartas às testemunhas, bem como transportá-las de um local para outro, ou mesmo deslocar-se até as residências dessas pessoas para ensiná-las o uso da tecnologia base das audiências.

Daí porque as audiências somente poderem ser realizadas sempre que for possível ao advogado contatar as testemunhas pelos meios eletrônicos, bem como tenham as testemunhas recursos tecnológicos para acessarem as salas eletrônicas disponibilizadas pelos Tribunais. Quando não for possível que tal aconteça, a simples informação prestada pelo advogado é de ser considerada pelo Judiciário para sobrestamento do ato. Esse é a prescrição do CNJ:

(i) as audiências em primeiro grau de jurisdição por meio de videoconferência devem considerar as dificuldades de intimação de partes e testemunhas, realizando-se esses atos somente quando for possível a participação, vedada a atribuição de responsabilidade aos advogados e procuradores em providenciarem o comparecimento de partes e testemunhas a qualquer localidade fora de prédios oficiais do Poder Judiciário para participação em atos virtuais. (§ 3º do art. 6º da Resolução CNJ nº 314)

Deve-se ressaltar ainda que a responsabilidade pela estabilidade da rede e pelos eventuais problemas de conexão não pode ser imputada aos advogados ou às partes, sendo certo que os Tribunais são responsáveis pelo ato e pelos instrumentos necessários à sua realização, o que encontra fundamento no 453, §2º. do CPC, que estabelece a obrigação dos juízos manterem os equipamentos necessários à oitiva remota de testemunhas (“Art. 453, (…) §2º Os juízos deverão manter equipamento para a transmissão e recepção de sons e imagens a que se refere o § 1º.”).

Respeitando-se os limites legais e constitucionais, e agindo em colaboração com a advocacia, é possível aos Tribunais proporcionar o andamento regular dos processos judiciais. Sem atropelos, sem exageros e sem imposições ilegais. As cautelas determinadas pelo CNJ para a prática de atos processuais nesse período – especialmente no tocante à necessária suspensão de atos requerida por advogados fundada na impossibilidade de realização adequada pela via telepresencial – são imperativas para se evitar nulidades decorrentes de ofensa à ampla defesa e ao contraditório.

O atual regime de exceção impõe a todos os membros da sociedade o espírito colaborativo para que os novos e excepcionais instrumentos que propõem salvar vidas tenham eficácia. É tempo de compreender e de tolerar. Compreender que nem todos estão preparados para sustentações orais à distância e audiências por videoconferência. E tolerar os pedidos de sobrestamento dos atos. Assim, dosando a cloroquina judiciária, usando com moderação as novidades tecnológicas, todos terão direito à jurisdição, como manda a Constituição.

 


[iii]A cloroquina é indicada para profilaxia e tratamento de ataque agudo de malária causado por Plasmodium vivax, P. ovale e P. malarie. Também está indicada no tratamento de amebíase hepática e, em conjunto com outros fármacos, tem eficácia clínica na artrite reumatoide, no lúpus eritematoso sistêmico e lúpus discoide, na sarcaidose e nas doenças de fotossensibilidade como a porfiria cutânea tardia e as erupções polimórficas graves desencadeadas pela luz.” (informações retiradas da bula, disponível em https://consultaremedios.com.br/difosfato-de-cloroquina/bula, consultado em 15/05/2020).

[v] O tema foi abordado recentemente por uma das autoras desse texto em https://www.conjur.com.br/2020-mai-02/opiniao-videoconferencia-teleaudiencia

Autores

  • Brave

    é doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Estágio pós-doutoral na Westifälische Wilhelms-Universität Münster (WWU). Membro da diretoria do IPPC. Membro da ABDPRO. Membro do IBDP. Membro do IBDFAM.

  • Brave

    é Conselheiro Federal OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Prerrogativas do CFOAB.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!