Limite penal

A morte de Franco Cordero: o papa do processo penal

Autor

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

15 de maio de 2020, 8h00

Spacca
“La solitudine in cui gli inquisitori lavorano, mai esposti al contraddittorio, fuori da griglie dialettiche, può darsi che giovi al lavorìo poliziesco ma sviluppa quadri mentali paranoidi. Chiamiamoli 'primato dell'ipotesi sui fatti': chi indaga ne segue una, talvolta a occhi chiusi; niente la garantisce più fondata rispetto alle alternative possibili, né questo mestiere stimola cautela autocritica; siccome tutte le carte del gioco sono in mano sua ed è lui che l'ha intavolato, punta sulla 'sua' ipotesi. Sappiamo su quali mezzi persuasivi conti (alcuni irresistibili: ad esempio, la tortura del sonno, caldamente raccomandata dal pio penalista Ippolito Marsili; usadoli orienta l'esito dove vuole. Nelle cause milanesi de peste manufacta, giugno-luglio 1630, vediamo come giudici nient'affatto disonesti, anzi inclini a inconsueto garantismo, fabbrichino delitto e delinquenti: l'inquisito risponde docilmente; l'inquisitore gli scova in testa i fantasmi che vi ha proiettato.”1

Sexta-feira, 08 de maio de 2020, morreu Franco Cordero, o papa do processo penal. A notícia entristeceu todos os que com ele tinham uma relação pessoal ou de estudo. Aos 91 (nasceu em Cuneo, Piemonte, em 06.08.1928), já há algum tempo não andava bem de saúde, como me disse o caro professor Pasquale Bronzo, em setembro de 2019, quando estive em Roma para, entre outras coisas, tentar falar com ele. Cordero até o final manteve os estudos e estava pronto para lançar, nos próximos dias, seu último livro, La tredicesima Cattedra, pela Editora La Nave di Teseo, o qual, por certo, valerá ser lido porque envolve intrigas universitárias sobre um concurso de cátedra; e ainda há espaço para Hitler e o nazismo. Na sua última entrevista (a Antonio Gnoli), quando perguntado sobre o tema, respondeu tratando dele e, mais, sobre si mesmo, para não deixar dúvida da razão por que tinha tanto a dizer: “Ho sempre letto con interesse testi sul nazismo e sul fascismo e preso appunti. Sono sempre andato alle radici profonde degli argomenti che mi affascinano”.2

Fernando Fowler, que foi meu professor de DPP na UFPR, endereçou-me a ele quando lhe disse que queria sair do Brasil para fazer meu doutorado: “Jacinto, hoje tem dois professores com os quais vale a pena estudar: Figueiredo Dias, em Coimbra; e Franco Cordero, em Roma”. Sem bolsa para Coimbra (por conta da burocracia do CNPq à época) e sem poder sair sem ela, acabei na Università Degli Studi di Roma La Sapienza. Ela era, para mim, a cara dele. Vivendo processo penal o tempo inteiro, sempre que pensava nela, ele aparecia. Depois de estudar seu Manual (Procedura Penale), ainda na 5ª edição, de 19793, fui para Roma cheio de esperança em aprender muito e, quem sabe, interagir com ele. Foi, ma non troppo. Aprendi demais porque, formado meio como se japonês fosse (era o resultado do Judô e dos tatames), organizei uma agenda rígida de estudos que me mantinha, todos os dias úteis da semana, 8 ou 9 horas estudando no Istituto di Diritto Penale da La Sapienza. Isso fez toda a diferença tipo: um antes e depois de Roma.4

Interagir com Cordero era outra coisa. Ele não era muito disso; e logo aprendi — e com todos era a mesma coisa — a respeitar. Afinal, ele era muito tímido, esquivo, taciturno e como não devia nada a ninguém e falava — e escrevia — o que devia falar, era temido, muito temido. Os alunos que não estudavam alternavam-se entre um grande medo e um ódio que, como comprovei várias vezes, era deles para consigo, embora dirigido, por palavras, ao professor. Como passei dois anos acompanhando – também – as disciplinas dele na graduação (corso di laurea) e por isso conversava com os amigos que arrecadei entre os companheiros de sala, divertia-me porque, embora avisasse, os que deixavam para estudar depois, quem sabe em cima dos exames, invariavelmente vinham reclamar dele…

Havia nele, contudo, para todos (dos grandes professores aos alunos), algo que dizia muito, apesar de antes, aqui e ali, aparecerem os “poréns”: o respeito! Diziam dele: strano, eccecionale, mas sempre geniale; ou perto disso. Portanto, o respeito que tinham por ele, à unanimidade, era um marco que se podia e pode sentir. Escutei isso de Giorgio Marinucci a Massimo Pavarini; o hoje de Renzo Orlandi, o grande catedrático de Bolonha.

Mas ele era doce, também. E sou prova disso. Logo que cheguei a Roma, em 1986, fui ao Istituto e conheci a secretária, signora Romani. Já naquele momento aprendi que era ela que (quase) mandava, embora respeitasse os professores e sobretudo Angelo Raffaele Latagliata (então Diretor) e, claro, Franco Cordero. Os alunos, se desse tempo. Pois bem, disse a ela que queria falar com Cordero… e ela riu. Senti o cheiro do problema. Disse-me que era “aconselhável” que eu tentasse falar com ele na presença de um Professor Assistente e, para conhecer, marcou um encontro com uma brasileira que estava lá estudando e que depois veio a ser uma grande amiga e cumà: Rita Voria. Rita conhecia tudo e todos e logo me apresentou Gianluca De Fazio, um garoto maravilhoso e filho de uma brasileira de Santos. Ele e outro grande amigo e então também Professor Assistente de Cordero, Pierfrancesco Bruno, foram meus “anjos” na relação com o professor e nas particularidades e dobras do sistema italiano de processo penal. Gianluca, assim, condoído com a minha aventura, marcou o encontro; e logo a querida Rita avisou: Jacinto, cuidado com o que você diz: ele é estranho! Aquilo me deixou ressabiado; mais, aquele ambiente parecia ser de “terror”. Dia e hora marcada, lá estávamos nós. Ele mandou entrar e Gianluca disse quem eu era (já professor de processo penal na UFPR e que tinha ido com a família para estudar… com ele sobretudo), tentando relaxar o ambiente, quem sabe. Senti a tensão; e estava nervoso. Mas não teria por que ter medo dele e comecei a falar, mas meu italiano não era bom e, mais nervoso, não saia nada direito. Três anos de Dante Alighieri – já tinha descoberto em Fiumicino quando cheguei e não conseguia comprar uma ficha telefônica – não foram suficientes. As palavras não vinham. Ele percebeu. Lá pelas tantas começou a falar inglês… e viu que era pior. Com calma disse-me: Você fala português? Sim, respondi. Pois bem, fale português devagar. E assim foi. Eu falava português – devagar — e ele respondia em italiano. Uma boa conversa, embora ele não se tenha interessado pela minha pesquisa porque estava pesquisando outra coisa e fui embora. Depois me disseram que ele não orientava na pós-graduação, mas tinha sido gentil e honesto. Enfim, saímos da reunião e perguntei ao Gianluca: mas ele fala português? E ele respondeu: aprendeu agora! Rimos muito, inclusive simulando o exame final.

Esta pequena história dá conta de uma faceta de Cordero que nem todos conhecem; e aponta para um lugar que mostra por que será difícil aparecer outro professor como ele. Explico. Ele fez aquilo porque conhecia muito Latim; assim como grego, antigo e novo. Dali, as línguas modernas, razão por que, quiçá, passe de uma para outra, nos textos, sem perceber (ao que parece) que está mudando. Isso, por sinal, ajuda a tornar difícil os seus textos e requer paciência para ir atrás. De qualquer maneira, quando um professor de processo penal, hoje, tendo que ganhar a vida para sobreviver, consegue aprender tantas línguas? Eis a questão. Ora, esse domínio fez com que ele tivesse lido quase tudo no original e fosse fiel aos seus apontamentos, o que se pode conferir buscando as citações: não há nada fora do lugar!

Por outro lado, sabe-se que ele foi descoberto por Francesco Carnelutti, que teria lido um texto seu, ainda quando estava em Torino, ficando impressionado, razão por que lhe escreveu uma carta dizendo que queria falar com ele. Eram férias e ele não recebeu a carta. Quando isso aconteceu, pegou o primeiro trem e foi a Roma. Dali começou uma estreita relação pessoal que o levou à cátedra de Trieste, mas nunca lhe retirou — apesar do respeito que tinha pelo maestro — a honestidade com seus princípios. Para perceber o que estou dizendo, basta ver que quando Carnelutti admite — como se chamou — La torture modérée, Cordero não perdoa.5 Amizade, amizade; princípios à parte. Consta, da mesma forma, que quem teria sido o grande articulador da sua ida para La Sapienza, depois que foi demitido da Università Cattolica del Sacro Cuore, de Milão (onde foi perseguido por oferecer um ensino que alegaram ser heterodoxo em relação àquilo que seria a ortodoxia religiosa católica, na visão de quem o demitiu), foi Giuliano Vassali. O grande catedrático de Diritto Penale tinha ciência do que se passara com Cordero e, com a influência que tinha, teria ajustado tudo para ser ele trazido para Roma. De uma confessional, passaria para a maior das estatais italianas. Pois bem. Para a Aula Magna de abertura do ano acadêmico 87/88, Angelo Raffaele Latagliata convida Giuliano Vassali, então Ministro di Grazie e Giustizia, um dos homens mais poderosos da República. Vassali, na sua humildade (tive o prazer de conhece-lo pelas mãos do querido Prof. Paulo José da Costa Junior), foi; e fez uma belíssima conferência. Estava em curso a grande ebulição política que levou muitas leis a serem promulgadas, dentre elas a da responsabilidade da magistratura pelos atos jurisdicionais e… o CPP. Ao final, Latagliata — que era verdadeiramente um gentleman — abre a palavra, quem sabe por educação. Mas estavam na conferência quase todos os professores e… Cordero. Amigo de Vassali, pediu a palavra. Minha querida amiga Rita Voria (que estava ao meu lado) disse logo: Vassali vai levar um pau! E levou! Cordero começou devagar, abrindo um leque e, com muita lógica e precisão, foi fechando, ponto por ponto. Quando acabou… silêncio. Vassali — o grande Vassali! — rompe o silêncio e retoma a palavra dizendo, antes de tudo: Cordero está certo! E sai costurando o resto para mostrar que a coisa deveria mudar. Quase uma nova conferência. Enfim, amigos, amigos; princípios, à parte. Fosse no Brasil — dissemos depois no café — teria havido tiros.


 

Como visto, meus contatos diretos com ele foram poucos, embora nos encontrássemos com frequência na biblioteca (às vezes não havia ninguém no Istituto e ele vinha ver se eu estava lá, sempre fazendo companhia para Enrico Ferri, em busto… cumprimentava e saia sem dizer uma palavra sequer, o que já era uma grande conversa) e na porta pantográfica da entrada porque com frequência eu chegava antes dele e como — ainda — não tinha a chave, ficava ali, na escada, esperando. Umas duas ou três vezes ele passou e me viu (ou não?), cumprimentou com um buon giorno ou algo assim e entrou, abrindo a porta que fazia barulho. Um dia ele chegou e eu estava ali, sentado na escada. Como sempre, com o mesmo casaco de couro e sem gravata. Aquele dia ele estava “presente” (como se “não estivesse em outro lugar”) e ao me ver, perguntou: O que o senhor está fazendo aqui? Respondi: Como faço sempre quando chego e elas não estão: fico esperando para poder estudar na biblioteca. Ele se virou, fez um Hã, abriu a porta e me disse: Acomode-se no banco, por favor! Vou tentar resolver isso! E eu fui. Passados uns dias, ganhei uma chave; acho que da signora Romani, e me senti como se fosse, de verdade, um membro daquele Istituto. Para quem não tem nada, um pouquinho serve para satisfazer um desejo. Ele, Cordero, por certo, não era o “terror” que falavam.

 

Ele era, sim, um gênio.

O texto que escolhi para a epígrafe é, a meu juízo, senão o mais importante, seguramente um dos mais importantes de todos os que eu poderia escolher para representar a força do pensamento de Cordero. Nele, ele mostra não só porque estudava e escrevia sobre Filosofia como, também, porque ela e a área Psi são tão importantes para o processo penal. O processo do sistema inquisitório, diante de um Estado Democrático de Direito, capitulou ali. Interessante que tal passagem está na Guida alla Procedura Penale, um livro pouco lido, mas absolutamente vital para entender um Cordero da maturidade. E que trabalhou, em um grande esforço, para permitir que os alunos conseguissem melhor entender o que escrevia. Por evidente que não foi bem assim; e os alunos voltaram para o Procedura Penale. O Guida, porém, veio em 86 e foi, em Roma, meu livro de estudo e, assim, acompanhou-me por toda a vida, justo porque o tenho como um capolavoro. Era o Cordero da maturidade achando que estava falando para os alunos… ou seja, nós todos, para sempre. Ademais, tal passagem — quem sabe por minha culpa — é a mais conhecida, hoje em dia, no Brasil. Tem gente que não sabe nada de Cordero, mas conhece aquele texto. Aury Lopes Junior e Alexandre Morais da Rosa são, também, responsáveis por isso.

Ele, como sabem todos, foi muito além do processo penal, embora nele, como já disse, fosse o seu papado. De qualquer forma, gostaria de falar sobre Gli Osservanti: fenomenologia delle norme, que estava esgotado há muito e só fui conhecer por uma fotocópia que me deu gentilmente o querido Massimo Pavarini, anotado em cada passagem porque havia sido o livro no qual estudou e que, de certa forma, ajudou-lhe a ser como era. Só mais tarde, quando é reeditado (por Nino Aragno Editore), em 2008, ganhei um livro do caro amigo André Giamberardino, então estudando em Bolonha. O livro é dedicado a Francesco e Giuditta, seus filhos. Não é pouco. Mas coloca a pensar: não deve ter sido fácil ser filho de um homem como Franco Cordero.

Precisaria falar, também, do Risposta a Monsignore (De Donato Editore, Bari, 1970), mas esse livro e a história que está em torno dele devo contar em outra oportunidade, mesmo porque preciso falar do saudoso Franco Miglino, que me deu uma cópia (está esgotado há muito tempo, embora tenha a tradução para o inglês6) dizendo: “aqui ele acaba com a hipocrisia, porque fé é outra coisa”. De fato, há uma passagem belíssima, quando trata da fé: “Io conosco un’altra fede, che non teme i discorsi in regola con la logica: accecare l’intelligenza è un’ingiuria a Dio”.7

 

Por fim, não tenho dúvida que fui um dos responsáveis pela difusão do pensamento de Cordero no Brasil, mormente no processo penal, embora antes de mim alguns tenham trabalhado com ele e, dentre eles, o caro Prof. Antonio Acir Breda. De qualquer maneira, a minha participação foi relevante, quem sabe, porque ninguém, no mundo, estudou os sistemas processuais penais – de verdade – como ele. E é disso que se trata hoje, no Brasil, quando se fala de refundação (Fauzi Hassan Choukr) do processo penal: largar o sistema inquisitório e adotar o sistema acusatório. O que se quer dizer com isso? Sem tal resposta, não se vai a lugar nenhum. Os italianos sabiam disso desde os anos 50, mormente da chamada Riformetta (Leggi n. 517, de 18.06.1955), quando se introduziu o chamado “garantismo inquisitório”, como se algo assim, mesmo lá, fosse possível. De qualquer forma, como a situação não ia bem e os problemas se acumulavam, a questão da reforma do CPPI começou a vir à tona.

Por isso, Carnelutti, com a liderança que tinha, convocou um Congresso que reuniu muitos dos grandes professores de então (o ano era 1961) e, promovido pelo Centro di Cultura e Civiltà, da fundação Giorgio Cini, aconteceu em Veneza nos dias 15,16 e 17 de setembro. No final do primeiro dia, um tanto fazendo um apanhado da disputa que se formara entre Carnelutti e Giovanni Conso (que queria tão só acabar com a chamada Istruzione Formale, isto é, aquela que era conduzida pelo Juiz de Instrução), Franco Cordero explica a questão e mostra por que é necessário caminhar na direção do sistema acusatório. A Itália, sobre tal assunto, nunca mais pensou diferente, embora o sistema do CPPI de 88 possa ter sido sabotado, o que é um outro assunto. Cordero tinha 32 anos e recém havia chegado na Católica de Milão. Daí para frente mergulhou na História dos Sistemas e, como ninguém, mostrou por que o processo do sistema inquisitorial não presta se o assunto é democracia processual. Eis suas palavras:

“Na intervenção meditada e perspicaz de Conso se percebe as marcas de uma profissão de fé nos atuais textos legislativos: o remédio às deficiências do processo penal, foi dito, é dado não tanto por uma reforma que subverta o sistema quanto por um melhor uso dos institutos vigentes: em particular, a crise de hipertrofia da istruzione poderia ser resolvida tirando do caminho aquela anacrônica figura que é o juiz istruttore. Uma inovação do gênero representaria sem dúvida um apreciável progresso; mas há de se perguntar se essa basta para extirpar o vício de origem, do qual se ressente a disciplina do processo. Os termos do problema foram colocados incisivamente pelo prof. Carnelutti: deferir relevância a uma prova adquirida sem contraditório é coisa que repugna à sensibilidade do jurista moderno; mas uma intervenção sem restrições da defesa nessa fase, na qual toma corpo as raízes do processo, comportaria o risco de se ter obstáculos não indiferentes à investigação judicial. Formulado o dilema deste modo, intui-se como de uma reforma orientada no sentido de suprimir a istruttoria formale não se possa esperar nada de resolutivo: pouco importa que a istruzione seja conduzida pelo ministério público e não pelo juiz se as provas nela constituídas se cristalizam a tal ponto de reduzir o dibattimento a um rito vazio de significado. O remédio, tanto radical quanto necessário, foi aditado pelo prof. Carnelutti: aludo à proposta de amputar a dita istruzione do processo, para reduzi-la nos seus confins naturais de atividade preparatória (usou-se o vocábulo o ‘procedimento preliminar’) entendida, sem mais nem menos, como a iluminar o ministério público sobre o ponto, ou seja, se existe ou não matéria para sujeitar ao processo uma determinada pessoa: uma investigação, em suma, exclusivamente dirigida a recolher o material de fato, graças à qual se leva a cabo, no dibattimento, com a proteção do contraditório entre as partes, a assunção das provas. Despida de relevância processual as iniciativas que o órgão de acusação explica nesse prelúdio ao processo, é natural que se enfraqueça a exigência de uma intervenção preventiva da defesa: à salvaguarda do acusado é suficiente que o fruto das investigações conduzida em referido preâmbulo seja, em si e por si, processualmente ineficaz; trata-se de uma matéria tosca, destinada a ser elabora no dibattimento, segundo os procedimentos de aquisição probatória prescritos em lei. Uma reforma feita assim, é supérfluo precisar, postula a adoção do princípio acusatório: de resto, que o processo, por antonomásia, inicie no momento em que o juiz é investido por uma demanda, é verdade absolutamente óbvia; e não é difícil se dar conta de quanto seja artificioso conceber, em termos de experiência processual, a atividade de parte desenvolvida pelo ministério público na instruzione sommaria: aqui está ausente uma demanda e, mais do que tudo, falta aquele protagonista necessário que é o juiz”8.


Enfim, Franco Cordero morreu. Depois do dia 8 de maio li muitas coisas bonitas sobre ele, começando pelo texto belo de Roberto Esposito e terminando naquele sentimental de Raffaella Bonsignori. Nenhum deles, porém, conseguiu mostrar por que Cordero não era só deles e sim, também, do Brasil e, claro, do mundo. Ele sempre foi muito maior que o escritório de Via Palermo 49, em Roma, desde sempre transformado em uma biblioteca; sempre foi muito maior que o gabinete do Istituto; sempre foi muito maior que os inúmeros livros que escreveu. E é assim porque habita em nós e seguirá como uma sombra nos indicando o caminho da democracia.

E viva Franco Cordero!


1 CORDERO, F. Guida…, pp. 51-52: “A solidão na qual os inquisidores trabalham, jamais expostos ao contraditório, fora dos grilhões da dialética, pode ser que ajude no trabalho policial, mas desenvolve quadros mentais paranoicos. Chamemos a isso de ‘primado das hipóteses sobre os fatos’: quem indaga segue uma delas, às vezes com os olhos fechados; nada a garante seja mais fundada em relação às outras alternativas possíveis, nem esse trabalho estimula uma cautela de autocrítica; assim como todas as cartas do jogo estão na sua mão e é ele que as coloca na mesa, aponta para a ‘sua’ hipótese. Sabemos com quais meios persuasivos conte [alguns irresistíveis: por exemplo, a tortura do sono, calorosamente recomendada pelo pio penalista Ippolito Marsili]; usando-a orienta o êxito para onde quer. Nos processos milaneses sobre a peste manufaturada, junho-julho de 1630, vemos como juízes por nada desonestos, antes inclinados a um incomum garantismo, fabriquem delito e delinquentes: o inquirido responde docilmente; o inquisidor lhe retira da cabeça os fantasmas que lhe há projetado”.

2 “Sempre li com interesse os textos sobre o nazismo e sobre o fascismo e fiz anotações. Sempre andei às raízes profundas dos argumentos que me fascinavam.” (tradução livre).

3 Esse Manual foi renovado integralmente por ele depois do novo CPPI, de 24.10.88, e se tornou mais denso.

4 A todos que me perguntam uso este exemplo para mostrar como – imagino – deve-se estudar no exterior, mormente se com o dinheiro público. E tem produzido bons resultados…

5 CORDERO, Franco. Riti e sapienza del diritto. Laterza: Roma-Bari, 1985, p. 410.

6 CORDERO, Franco. Against the Catholic System. Trad. De Anthony Johnson. London: Calder & Boyars, 1972, 144p.

7 CORDERO, Franco. Risposta a Monsignore. Bari: De Donato Editore, 1970, p. 84: “Eu conheço uma outra fé, que não teme os discursos de acordo com a lógica: cegar a inteligência é uma ofensa a Deus.

8 CORDERO, Franco. In DE LUCA, Giuseppe (org.). Primi problemi della riforma del processo penale, Quaderni di San Giorgio n.19, Firenze: Sandoni, 1962, pp.111-113: “Nell’intervento meditato ed acuto di Conso si è colta la traccia di una professione di fede negli attuali testi legislativi: il rimedio alle deficienze del processo penale, si è detto, è offerto non tanto da una riforma che sovverta il sistema quanto da un migliore uso degli istituti vigenti: in particolare, la crisi d’ipertrofia dell’istruzione potrebbe essere risolta, togliendo di mezzo quell’anacronistica figura che è il giudice istruttore. Un’innovazione del genere rappresenterebbe senza dubbio un apprezzabile progresso; ma vi è da chiedersi se essa basti ad estirpare il vizio d’origine, di cui risente la disciplina del processo. I termini del problema sono stati posto incisivamente dal prof. Carnelutti: accordare rilevanza ad una prova acquista senza contraddittorio, è cosa che ripugna alla sensibilità del giurista moderno; ma un intervento senza restrizioni della difesa in questa fase in cui prendono corpo le radici del processo, comporterebbe il rischio di non indifferenti ostacoli all’indagine giudiziale. Formulato il dilemma a questo modo, s’intuisce come da una riforma orientata nel senso di sopprimere l’istruttoria formale non ci si possa attendere nulla di risolutivo: poco importa che l’istruzione sia condotta dal pubblico ministero piuttosto che dal giudice, se le prove in essa costituite si cristallizzano a tal segno da ridurre il dibattimento ad un rito vuoto di significato. Il rimedio, radicale quanto necessario, è stato additato dal prof. Carnelutti; alludo alla proposta di amputare la cosiddetta istruzione dal processo, per ridurla nei suoi confini naturali di attività preparatoria (si è usato il vocabolo < procedimento preliminare>) a nient’altro intesa che ad illuminare il pubblico ministero sul punto se vi sia o meno materia per assoggettare a giudizio una data persona: un’investigazione, insomma, esclusivamente volta alla raccolta del materiale di fatto, grazie alla quale si compirà nel dibattimento, con la salvaguardia del contraddittorio tra le parti, l’assunzione delle prove. Spogliate di rilevanza processuale le iniziative che l’organo dell’accusa spiega in questo preludio al giudizio, è naturale che si affievolisca l’esigenza di un intervento preventivo della difesa: alla salvaguardia del giudicando è sufficiente che il frutto delle indagini condotte in siffatto preambolo sia, in sé e per sé, processualmente inefficace: si tratta di una materia grezza destinata ad essere elaborata nel dibattimento, secondo i procedimenti d’acquisizione probatoria prescritti dalla legge. Una siffatta riforma, è superfluo precisarlo, postula l’adozione del principio accusatorio: del resto, che il processo per antonomasia inizi del momento in cui il giudice è investito di una domanda, è verità addirittura ovvia; e non è difficile rendersi conto di quanto sia artificioso concepire in termini di esperienza processuale l’attività di parte svolta dal pubblico ministero nell’istruzione sommaria: qui è assente una domanda ed addirittura manca quel protagonista necessario che è il giudice.”

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  • Brave

    é advogado e professor titular de Processual Penal na Universidade Federal do Paraná (UFPR), da pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS e do mestrado em Direito da Faculdade Damas. Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli Studi di Roma, mestre em Direito pela UFPR e especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Membro da Rede de Direito Público Brasil-Itália-Espanha (REDBRITES) e pesquisador e presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória.

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