Opinião

Há indícios para investigar presidente por tentativa de interferência na PF?

Autor

  • Filipe Coutinho da Silveira

    é advogado criminalista e sócio fundador do escritório FS Advocacia especialista em Direito Penal & Criminologia pela PUC-RS em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) em Ciências Criminais pela UFPA em Direito Penal Tributário pelo Ibet/IBDT e vice-presidente da Abracrim-PA.

15 de maio de 2020, 18h01

Em meio à pandemia que assola o mundo, o Brasil possui a capacidade de agravar a situação caótica mergulhando em uma abismal crise política. Desde o dia 24 de abril, o país acresceu ao noticiário que se centrava nas lastimáveis notícias sobre o avanço da Covid-19 (Sars-Covid-2) reportagens sobre o possível crime de interferência do presidente da República na Polícia Federal. Noticiários televisivos e/ou escritos dedicam horas e páginas para demonstrar que o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública teria apresentado provas da prática de crime cometido pelo presidente Jair Bolsonaro. Comentaristas políticos e repórteres, em geral, a partir de argumentos divorciados da ciência jurídica, apressam-se em afirmar a existência de indícios de crime, em ode ao Direito punitivista, lançando ainda mais suspeitas sobre o já fragilizado Estado brasileiro.

É verdade também que a sociedade como um todo e o atual governo brasileiro possuem enorme responsabilidade sobre tudo isso. Desde as últimas eleições presidenciais, a manifestação de comportamentos de tendência autoritária foram largamente observados no cenário político-social do Brasil: de discursos sobre a rejeição das regras democráticas (como intervenções militares), passando pela deslegitimação de oponentes políticos, tolerância à violência até a propensão de restrição de direitos e garantias fundamentais, tem sido a tônica dos últimos anos.

Na polarização que se sucedeu a esses movimentos, todos passaram a ser presumidamente suspeitos de se posicionarem contra o bem e contra o lícito e, para isso, elegemos um salvador: o Direito Penal. Tudo é crime, até prova em contrário. Mesmo que essa escolha signifique menos liberdade e mais punição, não importa! Autoriza-se o alargamento dos tentáculos do Estado-policial em nome da moral e dos bons costumes ideológicos. O que importa é o processo de purificação que segue, sob aplausos, enfraquecendo os pilares democráticos do Estado brasileiro.

A análise deixa assim de ser racional, lógica e científica e passa a ser, sobretudo, política, subjetiva, ideológica e moral. E assim o foi, para ficar em dois exemplos, quando a Supremo Corte brasileira criou um tipo penal a partir de analogia (ADO 26 e MI 4733) e quando autorizou a execução provisória da pena privativa liberdade a partir de julgamento de segunda instância (HC 126.292), em ambos os casos, em franca contrariedade à Constituição Federal e aos princípios seculares da ciência penal.

Algo muito semelhante ocorre no episódio sobre a entrevista coletiva (e, também, sobre o depoimento na sede da Polícia Federal) concedida pelo agora ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, S. Exª Sérgio Moro. Ao apresentar as razões pelas quais pediria a exoneração do cargo de ministro, o ex-juiz afirmou que não concordara com a estratégia política adotada pelo presidente da República e que as modificações pretendidas no comando da Polícia Federal poderiam ser compreendidas como uma forma de interferência do governo nas ações desenvolvidas pela Polícia Judiciária. A partir de então, vozes surgiram para levantar a hipótese de que a conduta do presidente da República poderia ser equiparada ao crime de obstrução de justiça (Lei 12.850/2013, artigo 2º, §1º) ou ao crime de advocacia administrativa (CP, artigo 321).

É bastante claro que o presidente da República vem adotando posturas cada vez mais agressivas, que sinalizam traços extremistas de seu governo e de sua postura ideológica, o que por si só é bastante preocupante e exige atenção das instituições democráticas. Todavia, a análise jurídica de um fato, especialmente do crime, não deveria depender da postura ideológica do suspeito, nem de sua classe social, de sua raça, etnia ou orientação religiosa ou política. O crime depende da análise de seus pressupostos analíticos, nada mais.

E, nesse contexto, a primeira pergunta que se deveria fazer seria se o presidente da República possui autorização legal para nomear ou substituir as pessoas que ocuparão os cargos do alto escalão do governo. A Constituição Federal responde afirmativamente a essa questão dispondo ser competência privativa do presidente da República (artigo 84) a nomeação de ministros de Estado (I), nomear os comandantes das Forças Armadas aos cargos que lhes são privativos (XIII), nomear ministros do Supremo Tribunal Federal, dos tribunais superiores, o procurador-geral da República, o presidente e diretores do Banco Central, após aprovação do Senado Federal (XIV). Além disso, a escolha do diretor-geral da Polícia Federal é de escolha livre do presidente da República, conforme o artigo 1º do Decreto 73.332/1973.

Com esses dispositivos se pretende demonstrar que a substituição de ministro de Estado ou do diretor-geral da Polícia Federal não é antinormativa, não é ilícita, e nem contrária ao direito posto. Faz parte da regra do jogo democrático, e está na órbita de possibilidades de decisões discricionárias que o governante pode dispor. Não sendo contrária ao direito, isto por si só, a partir da estrutura clássica da teoria do crime, já seria suficiente para afirmar que o presidente da República teria agido no exercício regular do direito, ou seja, não se trata de conduta ilícita.

É possível, no entanto, avançar na análise. Formulações teóricas como a tipicidade conglobante [1] demonstra que condutas fomentadas e autorizadas pelo ordenamento jurídico afastam a possibilidade da concreção do juízo de tipicidade, primeiro elemento a ser analisado no conceito analítico de crime. E a moderna teoria da imputação objetiva, especialmente aprofundada pelas teorias funcionalistas [2], pontua que a conduta do presidente de substituir o diretor-geral da Polícia Federal, por si só, e independentemente de sua motivação, não criaria ou incrementaria risco proibido para a produção de um resultado ilícito, já que prevista e autorizada pelo ordenamento jurídico. Em síntese, por qualquer prisma que se olhe, não há sequer indícios de tipicidade ou de conduta ilícita que possibilite a alegação de prática criminosa. Em outras palavras, a realização de um ato permitido e previsto em lei (como a nomeação do diretor-geral da Polícia Federal) não pode ser confundido com embaraçar ou impedir investigação criminal que envolva organização criminosa (Lei 12.850/2013, artigo 2º, §1º) e nem como patrocínio de interesse privado, direto ou indireto perante a administração pública (CP, artigo 321).

Ademais disso, é preciso ter cuidado com o sentido e dimensão de certas expressões da linguagem coloquial e seus efeitos na seara penal. Afirmar existir "tentativa de interferência" na Polícia Federal possui conotações bastante claras e graves na interpretação da lei penal brasileira. Isso porque o Código Penal brasileiro prevê a punição do crime consumado (CP, artigo 14, I) quando todos os elementos da definição legal do crime estão presentes no fato analisado , bem como do crime tentado (CP, artigo 14, II) ou seja, iniciada a execução do tipo penal, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Diferenciar, portanto, o crime consumado do crime tentado depende da identificação das etapas percorridas pelo suspeito para a prática do crime. A etapa nitidamente intelectual, ou de cogitação, por óbvio não é punida, pois, se assim não fosse admitir-se-ia a punição de meros pensamentos. O Direito Penal, em verdade, ocupa-se da etapa externa da prática criminosa que compreende os atos de preparação (comprar uma arma), de execução (disparar a arma contra alguém) e a consumação (matar alguém) do delito, propriamente dita. Da dicção do artigo 14 do Código Penal, é possível observar que será considerado tentado o crime quando iniciado os atos de execução, sendo impuníveis os atos preparatórios, salvo quando se constituírem em figuras criminosas autônomas (como portar ilegalmente uma arma).

A hipótese de tentativa de interferência na Polícia Federal decorreria do desejo do presidente da República de substituir o diretor-geral daquela instituição. Como já mencionado, a conduta de nomeação ou substituição constituem-se em atos privativos do presidente da República absolutamente lícitos, não sendo razoável equiparar o ato de impedimento de investigação criminal ou de patrocínio de interesses privados com o exercício regular de um direito. Nesse panorama, os fatos até aqui divulgados revelam que havia o desejo de substituir o delegado-geral, isto é, a mera cogitação, não sendo possível sequer vislumbrar um único ato executório, quer para a figura da obstrução de justiça, quer para a figura da advocacia administrativa, que justificassem afirmar qualquer tentativa idônea de prática criminosa.

Também não é demais recordar que desejo e dolo, pelo menos na ciência penal, não são conceitos idênticos e merecem tratamentos distintos. Desde Hans Welzel [3], a ciência penal aprendeu que o desejo (instituição pré-jurídica) não poderia ser confundida com o dolo (instituição jurídica). No clássico exemplo da enfermeira que injeta em um paciente, sem saber, veneno e não remédio, diz-se que sua ação final foi de injetar e não de matar. Em outras palavras, o dolo não é um elemento ontológico, trata-se, pois, de um elemento normativo que resulta na intenção de praticar a conduta descrita no tipo penal.

Com isto, o presidente que deseja substituir determinado ministro de Estado ou diretor-geral da Polícia Federal, quando o próprio ordenamento jurídico assim lhe permite, não atua com o dolo de embaraçar investigação que envolva organização criminosa e nem com dolo de patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, mas, sim, atua com a intenção final de exercer regularmente um direito que lhe é posto pela legislação vigente.

Já passa da hora de a sociedade brasileira amadurecer. O Direito Penal não descerá do Olimpo para libertar. Como instrumento de força e ultima ratio deveria atuar para proteger bens jurídicos e estabilizar as finalidades sociais, jamais para desestabilizar governos ou afirmar posição ideológicas.

 


[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[2] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general. Tradução e notas Miguel Diaz y Garcia Conledo, Javier de Vicente Remesal. Madri: Civita, 1997. t. I

[3] WELZEL, Hans. El nuevo sistema del Derecho Penal. Montevideo-Buenos Aires: Editorial Bdef, 2004.

Autores

  • é advogado criminalista, sócio e head da Área Criminal do Escritório Silveira, Athias, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, em Portugal, especialista em Ciências Criminais pela UFPA, vice-presidente da Abracrim-PA e juiz-membro do Tribunal de Ética da OAB-PA.

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